O atual panorama da hediondez dos crimes de posse e porte de arma de fogo de uso restrito e proibido, previstos no Art. 16 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento)

22/02/2021 às 12:28
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Análise sob o enfoque da Lei 13.964/19 - Pacote Anticrime - acerca da hediondez dos crimes de porte e posse de arma de fogo de uso restrito, proibido e figuras equiparadas, previstos no Art. 16, caput, §1º e 2º do Estatuto do Desarmamento - Lei 10.826/03.

A Constituição Federal de 1988 dispõe no inciso XLIII de seu Art. 5º acerca dos crimes hediondos, vejamos: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. A doutrina especializada sustenta que a expressão “e os definidos como crimes hediondos” se trata de um mandado constitucional expresso, isto é, o Poder Constituinte Originário responsável pela confecção do texto constitucional impôs ao legislador, naquela oportunidade, a obrigação de elaborar uma lei específica definindo e elencando os crimes hediondos.

Para tanto, em 1990, surgiu a Lei 8.072, conhecida como lei de crimes hediondos, a fim de materializar esse mandamento constitucional. Em breve síntese, esta lei se utiliza do sistema legal para a classificação de quais crimes devem ser considerados hediondos. Por esse sistema, o legislador é o responsável por “etiquetar” quais dos crimes do ordenamento jurídico brasileiro devem fazer jus à reprimenda penal mais grave.  A lei, portanto, taxativamente prevê quais dos crimes do ordenamento jurídico sofrerão os consectários previstos em seus dispositivos. 

Nesse sentido, Renato Brasileiro, ensina que “O critério adotado pela legislação brasileira para rotular determinada conduta como hedionda é o sistema legal. De modo a saber se uma infração penal é (ou não) hedionda, incumbe ao operador tão somente ficar atento ao teor do art. 1º da Lei nº 8.072/90: se o delito constar do rol taxativo de crimes ali enumerados, a infração será considerada hedionda, sujeitando-se a todos os gravames inerentes a tais infrações penais, independentemente da aferição judicial de sua gravidade concreta. Lado outro, se a infração penal praticada pelo agente não constar do art. 1° da Lei nº 8.072/90, jamais será possível considerá-la hedionda, ainda que as circunstâncias fáticas do caso concreto se revelem extremamente gravosas. Afinal, por força da adoção do sistema legal, os crimes hediondos constam do rol taxativo do art. 1 ° da Lei nº 8.072/90, que não pode ser ampliado com base na analogia nem por meio de interpretação extensiva”¹.

Por vezes, a redação empregada pelo legislador para o ‘etiquetamento’ não é das melhores, fato esse que ocasiona reiteradamente divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca de quais crimes são efetivamente elencados como hediondos. Sem maiores delongas, uma dessas polêmicas está presente nos crimes de posse e porte de arma de fogo de uso restrito e as de uso proibido, previstos no Art. 16 do Estatuto do Desarmamento.

A perspectiva da hediondez dos crimes mencionados anteriormente e suas nuances devem ser analisadas sob dois cenários: antes e depois da Lei 13.964/19, conhecida como Pacote Anticrime.

Anteriormente a entrada em vigor do Pacote Anticrime, o Art. 16 do Estatuto do Desarmamento e o §único do Art. 1º da Lei dos Crimes Hediondos tinham as seguintes redações:

ESTATUTO DO DESARMAMENTO

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:

I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;

II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;

III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e

VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.

 

LEI DE CRIMES HEDIONDOS

Art. 1º (...) Parágrafo único.  Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados. (Redação dada pela Lei nº 13.497, de 2017)

            Como se pode observar, a Lei de Crimes Hediondos não mencionava a figura das armas de fogo de uso proibido, e, portanto, nesse primeiro momento (anterior ao pacote anticrime) a análise se atentará à figura do crime de porte e posse de arma de fogo de uso restrito (caput do Art. 16) e figuras equiparadas (parágrafo único).

            O Art. 16 do Estatuto do Desarmamento previa em seu caput o crime de posse e porte de arma de fogo de uso restrito – trata-se de norma penal em branco, a ser complementada por ato do poder executivo, classificando quais armamentos são de uso restrito. Por sua vez, o parágrafo primeiro previa as figuras equiparadas ao crime do caput. Significa dizer que, ainda que os objetos ali previstos não sejam definidos como arma de fogo de uso restrito na acepção do termo, sofrerão a mesma reprimenda penal.

            A divergência existente se dava justamente na classificação da hediondez do Art. 16 do Estatuto do Desarmamento. A Lei de Crimes Hediondos, em seu Art. 1º, parágrafo único, mencionava o nome do crime de “posse e porte ilegal de arma de fogo de uso restrito” e etiquetava genericamente o Art. 16 do Estatuto do Desarmamento, sem incluir o §1º do mesmo artigo. Surgiu, à época, então, o seguinte questionamento: é hediondo apenas o caput do Art. 16 do Estatuto do Desarmamento ou inclui-se, também, as figuras equiparadas, previstas no §1º?

Daí posicionaram-se duas correntes. A primeira delas entendia que quando o §único do Art. 1º da Lei de Crimes Hediondos mencionava o genericamente Art. 16 do Estatuto do Desarmamento, isto, por si só, já abrangeria também as figuras equiparadas previstas no §1º. O principal argumento dessa corrente é o de que quando o legislador se utilizou da expressão “nas mesmas penas incorre quem (...)” teve a intenção de destinar o mesmo tratamento gravoso previsto no caput às figuras equiparadas e, portanto, não caberia ao intérprete da lei fazer a restrição das condutas onde o legislador não o fez.

Essa primeira corrente era a adotada pelo professor Rogério Sanches Cunha, que ensina: “ainda que se considere a natureza diversa de algumas das condutas tipificadas no parágrafo único, trata-se de figuras equiparadas ao caput por expressa disposição legal. Se, ao elaborar tipo do art. 16, o legislador utilizou a fórmula ‘nas mesmas penas incorre’, isso se deu porque as condutas ali elencadas eram consideradas da mesma gravidade das anteriores. É, afinal, o que fundamenta as formas equiparadas nos tipos penais. Ignorar isso e destacar, para os efeitos da hediondez, o caput do parágrafo único seria nada mais do que conferir tratamento diferenciado a figuras penais que o legislador erigiu à categoria de equivalentes”².

Por sua vez, a corrente em sentido oposto (que defendia a hediondez apenas para a figura do caput do Art. 16 do Estatuto do Desarmamento) utilizava-se do argumento – dentre outros – de que a Lei de Crimes Hediondos vale-se o sistema legal de etiquetamento dos crimes. Por esse motivo, quando o legislador na Lei de Crimes Hediondos mencionara apenas o Art. 16 do Estatuto do Desarmamento, estaria restringindo os consectários da lei apenas ao caput, que tipifica os crimes de porte e posse de arma de fogo de uso restrito, não abrangendo as figuras equiparadas.

O STJ, filiava-se à primeira corrente, como no julgamento do HC 526.916/SP, em 2019, em decisão proferida pelo ministro Nefi Cordeiro. Na oportunidade, decidiu que “o crime de porte de arma de fogo com numeração suprimida foi considerado equiparado a hediondo, baseado na inclusão do parágrafo único da Lei 8.072/90, que passou a considerar hediondo o porte de arma de uso restrito”.

Com o advento da Lei 13.964/19 – Pacote Anticrime – houve alteração na redação do Estatuto do Desarmamento e Lei de Crimes Hediondos, no tocante ao tema. As redações passaram a ser as seguintes:

ESTATUTO DO DESARMAMENTO - LEI 10.826/03

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

 Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;

II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;

III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e

VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.

§ 2º Se as condutas descritas no caput e no § 1º deste artigo envolverem arma de fogo de uso proibido, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

LEI DE CRIMES HEDIONDOS – LEI 8.072/90

Art. 1º. (...) Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:

(...)

II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

(...)

           

Na edição da Lei 13.964/19, o legislador se viu diante da oportunidade de sanar, de uma vez por todas, as divergências anteriormente existentes. No entanto, como era de se esperar, a nova redação dos dispositivos mencionados foi mal feita, fato esse que fez emergir novas discussões, dessa vez baseadas na nova redação.

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Como se pode observar, a nova redação do Art. 16 do Estatuto do Desarmamento retirou do caput a figura do porte e posse de arma de fogo de uso proibido e transportou-a para o §2º, agora classificada como qualificadora do delito previsto no caput. Por sua vez, a redação do inciso II, do Art. 1º, da Lei de Crimes Hediondos deixou de mencionar a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, passando a constar apenas expressamente o crime de porte e posse de arma de fogo de uso PROIBIDO.

Desse modo, há um conflito evidente na redação do inciso II do Art. 1º da Lei de Crimes Hediondos. O nomen juris utilizado pelo legislador é “crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido. No entanto, logo em seguida, menciona genericamente o Art. 16 do Estatuto do Desarmamento. A nova redação ao mesmo tempo em que atribui a hediondez apenas ao porte e posse de arma de fogo de uso PROIBIDO, aponta como fundamento legal o Art. 16, artigo esse que abrange o crime de posse e porte de arma de fogo de uso RESTRITO (caput) e as figuras equiparadas (§1º).

Tal fato fez ressurgir a discussão anteriormente existente. De um lado, aqueles que defendem a aplicação dos consectários da hediondez a todas as figuras previstas no Art. 16 do Estatuto do Desarmamento (armas de fogo de uso restrito, proibido e figuras equiparadas). Doutro lado, a aqueles que se apegam ao nomen juris do crime, dessa vez utilizado expressamente pelo legislador na redação do inciso II, do Art. 1º da Lei 8.072/90.

Diante disso, o STJ novamente veio a se manifestar. Há divergência entres 5ª e 6ª turmas, tendo ambas proferido decisões conflitantes no final do ano de 2020. A 5ª Turma no julgamento do HC 624.903/SP manteve o entendimento que já havia sendo adotado, isto é, tanto os crimes de posse e porte de arma de fogo de uso restrito e proibido (caput e §2º) quanto as figuras equiparadas (§1º) devem ser considerados hediondos.

Por sua vez, a 6ª turma no julgamento do HC 525.249/RS, em dezembro 2020, operou um OVERRULING (mudança de entendimento). Nesse caso, houve a concessão da ordem de habeas corpus para afastar a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, figura equiparada prevista no §1º, inciso I, do Art. 16, do Estatuto do Desarmamento. 

Portanto, como exarado no julgamento, ao alterar a redação do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, a Lei 13.964/2019 atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento. É de se observar que houve novatio legis in mellius, devendo, no entendimento da 6ª Turma, a hediondez ser aplicada exclusivamente aos crimes de porte e posse de arma de fogo de uso PROIBIDO, prevista no §2º do Art. 16 do Estatuto do Desarmamento, apegando-se ao nomen iuris utilizado pelo legislador no texto do inciso II, do parágrafo único, do Art. 1º da Lei de Crimes Hediondos.

É de se concluir que, a meu ver, a decisão da 6ª turma no HC 525.249/RS é a mais correta e certamente passará a ser a predominante, tanto no STJ quanto no STF, caso instado a se manifestar. Isso porque, como visto, o legislador foi displicente na elaboração do texto, não podendo tal fato repercutir na seara dos direitos individuais do suspeito/investigado/réu. Veja que não se trata de pleitear a punição mais branda de crimes graves. Trata-se, em verdade, de ‘mensagem’ direcionada aos legisladores, a fim de que haja cuidado na elaboração de textos legislativo, evitando tantas outras divergências de interpretação, assim como ocorre em outros assuntos no ordenamento jurídico.

 

¹LIMA, Renato Brasileiro de. LEGISLAÇÃO CRIMINAL ESPECIAL COMENTADA: volume único. 8. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. Pág. 324.

²CUNHA, Rogério Sanches. STJ: Lei 13.497/17 tornou hediondas todas as figuras do art. 16 do Estatuto do Desarmamento. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2018/11/12/stj-lei-13-49717-tornou-hediondas-todas-figuras-art-16-estatuto-desarmamento/ Acesso em 21/02/2021.

Sobre o autor
Rafael Godoi de Vasconcelos

Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo Instagram: @rafaelgodoi_

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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