Inquérito policial : ratio essendi

23/02/2021 às 00:24
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Sobre o inquérito policial e a atividade do Delegado de Polícia


 O Estado, para atender demandas e necessidades da sociedade, precisa estabelecer instituições especializadas. Como forma de prover segurança, o Estado dispõe de um complexo aparato especializado. Este corpo técnico denominado Polícia, é a face do Estado legitimada a usar a força (potestas coercendi) com a finalidade pública de previnir, reprimir e apurar delitos.

 Dentro dessa complexa estrutura, há centros ainda mais especializados de atividade. Na verdade, há várias "Polícias". A Constituição Federal atribui a direção das tarefas de Polícia Judiciária aos delegados de polícia de carreira, denominado de Autoridade Policial pelo Código de Processo Penal. Ele preside o inquérito policial.

 Diante da ocorrência de um delito, e da natureza repressiva do direito penal, tem início a persecutio criminis. A persecução penal é um mecanismo de Justiça do Estado tornado disponível com o desiderato de exercer o seu poder coercitivo. Coibindo condutas que ofendam ou exponham a perigo, de forma grave (ultima ratio), intolerante (ofensividade) e transcendental (intervenção mínima) bens juridicamente relevantes, protegendo o indivíduo das reações sociais que o crime desencadeia e ainda previnindo ameças às garantias fundamentais.

 O inquérito policial é um processo, não um mero procedimento. Trata-se de um processo administrativo sui generis, de titularidade da Autoridade Policial, o delegado de polícia. Visa à elucidação da autoria e a comprovação da materialidade delitiva.

 O inquérito policial  tem a sua previsão legal no Decreto-Lei nº 3689/41, o Código de Processo Penal, seu rito, bem como seu processamento, estão descritos no Livro I, Título II, artigos do 4º ao 23º.

 Especialmente depois das leis nº13.344/2016 e 13.964/2019, a natureza de processo tem ficado mais evidente, uma vez que o instituto da citação passou a integrar o inquérito policial.

 Modernamente, podemos concluir que o inquérito policial passou de um mero caderno policial, como muitos chegaram a diminuir a sua deferência, a uma fonte de prova fundamental produzido pelo Estado-Polícia. O que chamamos de Estado-Polícia é neutro e não faz juizo de valor subjetivo. Persegue o crime e não a pessoa. 

 O inquérito é destinado a formar externa e secundariamente a opinio delicti do MP e do Poder Judiciário.

 Hoje, a doutrina evoluiu ao reconceituar o inquérito policial. Ele tem as características de ser apuratório, informativo, de valor probante, preparatório e preservador.

 O inquérito policial é, ao mesmo tempo, preservador e preparatório. Preservador, pois tem aptidão de promover a preservação das provas flagranciais. Preparatório porque serve de preparação à ação penal. O inquérito não possui compromisso exclusivo com a denúncia. Senão uma relação de simbiose com todas as sucessivas fases do processo penal. O inquérito faz parte de um encadeamento sucessivo de formalidades que impõe o sistema criminal numa visão abrangente. Seu objetivo é buscar a verdade real.

 Um breve da história nos faz verificar que o Delegado de Polícia exerce uma verdadeira magistratura, pois tem o poder de intervenção em favor da sociedade. Em Roma, na República, o ius intercessionis era exercido por um magistrado especial que reprimia, coibia e punia as trangressões das leis penais. Também tinha amplos poderes administrativos e servidores que cumpriam as suas determinações de manutenção da ordem e segurança. O delegado de polícia, é, na grande maioria das vezes, diante da ofensa a um bem jurídico, o primeiro a exercer iuris dictio. Profissional do Direito, é o primeiro a aplicar a lei ao caso concreto, 

 Bastante interessante são os juízos de cognição que realiza o delegado dentro do inquérito policial.

 Houve a notitia criminis, e diante do fato, o delegado realiza cognição de possibilidade e probabilidade, não exige o inquérito a certeza (pro societate). Ele verifica os elementos colhido diacrônicamente, ou seja, considerando os fatos na sucessão de tempo. Vislumbra o iter criminis em profundidade. Realiza também juízo de prognose o delegado de polícia. Prognose é o conhecimento ex ante dos fatos, a identificação das causas do problema (crime) e a sua documentação.

 Todos esses juízos que faz a Autoridade Policial no desempenho de suas atribuições são também de sua exclusividade. Não cabendo a nenhum outro componente do sistema criminal interferir ou embaraçar essa atividade, sob pena de abuso de autoridade. Mesmo sem nenhuma previsão legal expressa, é possível inferir a independência funcional do delegado de polícia, ao menos no que tange às suas competências e atribuições dentro do inquérito policial.

 Houve uma grande celeuma em torno da possibilidade de investigação direta por parte do MP. Acredito na inviabilidade da tese. Primeiro porque o titular da ação penal não pode produzir prova que aproveite a sua própria ação. O Ministério Público tem o seu delineamento constitucional muito bem definido. Não foi vontade do constuinte ver o MP investigar. O teria feito expressamente. Segundo porque o MP não tem a mesma estrutura especializada da Polícia, e terceiro porque deixa a defesa em franca posição de desvantagem. Na Polícia o advogado pode acompanhar a investigação. No MP não, o que é uma grande desvantagem para o investigado. Toda essa celeuma se deu por uma interpretação bastante extensiva do CPP, quando este dispensa o inquérito verificadas a autoria e materialidade delitivas. O que ocorre muito raramente, na prática.

 O inquérito policial é científico, pois utiliza meios e métodos científicos. O método jurídico é o da lei penal e processual penal.

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 O processamento do inquérito policial demanda o trabalho de diversos profissionais da Polícia. O escrivão auxilia a Autoridade Policial documentando todos os atos materiais e formais e a um todo forma processado. O agente executa as ordens da Autoridade e também participa do inquérito com suas impressões por meio da parte de serviço.

 Por muito tempo a doutrina atribuiu capacidade postulatória ao delegado. É que alguns acreditavam que ele detinha uma capacidade postulatória especial. O delegado não postula. Atualmente, o delegado propõe representações. Trata-se de uma apresentação motivada e fundamentada endereçada ao Estado-Juiz com a finalidade de alguma medida de cautela constritiva com a finalidade de garantir a aplicação in totum da lei penal.

 Finalmente, imagino, com um novo Código de Processo Penal, um regramento mais abrangente do inquérito policial. Assim, acredito em um substancial aumento da qualidade da prova criminal, e, como resultado disso, maiores garantias.

 

 Zaffaroni, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral / Eugenio Raul Zaffaroni, José Henrique Pierangeli - 14ª ed. rev. atual. - São Paulo : Thomson Reuters, Brasil, 2020.


 

 

 

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