Genocídio legal, com o STF com tudo

25/02/2021 às 12:07
Leia nesta página:

Nossa Constituição obriga o Estado a garantir o direito a vida dos cidadãos e a proporcionar assistência médica à população. O presidente Bolsonaro não só desrespeitou o texto constitucional como trabalhou para garantir uma maior letalidade da pandemia.

No dia 24/02/2021, o Ministro Marco Aurélio de Mello proferiu a seguinte decisão na denúncia de genocídio feita por mim contra o presidente Jair Bolsonaro:

“PETIÇÃO - NOTÍCIA-CRIME -PRESIDENTE DA REPÚBLICA - PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA - MANIFESTAÇÃO - ARQUIVAMENTO. 1. O assessor William Akerman Gomes prestou as seguintes informações: Fábio de Oliveira Ribeiro, advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil sob o nº 107.642/SP, por meio da petição/STF nº 2.826/2021, denominada "denúncia", afirma haver o Presidente da República, Jair Bolsonaro, cometido o crime do artigo 1º (genocídio) da Lei nº 2.889/1956. Refere-se a pronunciamento no qual mencionada covid-19 como "gripezinha". Destaca ter incentivado a população a descumprir medidas de isolamento recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. Realça indicação de medicamentos de eficácia não comprovada no tratamento da doença. Salienta não estabelecida restrição ao funcionamento do comércio e à circulação de pessoas. Aponta que o Presidente se reuniu com diversas pessoas durante o período no qual esteve contaminado. Aludindo a óbitos no Estado do Amazonas, ante desabastecimento de oxigênio hospitalar, sustenta omissão do Governo Federal. Frisa haver dificultado a aquisição de vacinas e de seringas. Ressalta a omissão do Procurador-Geral da República no tocante à atribuição de oferecer, nos crimes de ação penal de iniciativa pública incondicionada, denúncia. Requer a prisão preventiva do Presidente da República. Pretende que a Procuradoria-Geral da República assuma o polo ativo da demanda. Busca, alfim, a condenação. O Procurador-Geral da República, mediante a petição/STF nº 7.617/2021, diz não caber ao requerente o oferecimento de denúncia. Sustenta a própria atribuição para investigação e deflagração da ação penal de iniciativa pública incondicionada. Sublinha incabível a ação penal privada subsidiária da pública, ausente inércia do Ministério Público. Cita procedimentos envolvendo Jair Bolsonaro e o enfrentamento da pandemia. Alude à notícia de fato nº 1.00.000.001985/2021, em curso na Procuradoria- Geral da República, na qual averiguada a imputação, ao Presidente da República e ao Ministro de Estado da Saúde, da prática dos crimes de prevaricação e de perigo para a vida ou saúde de outrem. Sucessivamente, realça que a legitimidade quanto a ação penal privada subsidiária não pertence a qualquer cidadão, mas àquele que sofre as consequências do crime. Evoca precedente. Preconiza o arquivamento desta petição. 2. O requerente não possui legitimidade para oferecer denúncia, peça inaugural de ação penal de iniciativa pública incondicionada. Não caracterizadas inércia e situação legitimadora para a ação penal privada subsidiária - artigos 5º, inciso LIX, da Constituição Federal, 100, § 3º, do Código Penal e 29 do Código de Processo Penal, recebo a petição como notícia-crime. O titular de possível ação penal, o Ministério Público Federal, por meio do Procurador-Geral da República, ressaltou a própria atuação na apuração dos fatos narrados. Observado o artigo 3º, inciso I, da Lei nº 8.038/1990, compete ao Relator: I - determinar o arquivamento do inquérito ou de peças informativas, quando o requerer o Ministério Público, ou submeter o requerimento à decisão competente do Tribunal; Ante a manifestação do Ministério Público, mediante ato do Órgão de cúpula, arquivem. 3. Publiquem. Brasília, 23 de fevereiro de 2021. Ministro MARCO AURÉLIO Relator”

(PETIÇÃO 9.387 (1044), ORIGEM : 9387 - SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, PROCED. :DISTRITO FEDERAL, RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO, REQTE.(S) : FÁBIO DE OLIVEIRA RIBEIRO, REQDO.(A/S) : JAIR MESSIAS BOLSONARO)

O texto da denúncia foi divulgado no Jornal GGN https://jornalggn.com.br/opiniao/denuncia-contra-o-presidente-genocida-no-stf-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/. O teor da manifestação do PGR também foi publicado na internet https://www.linkedin.com/posts/f%C3%A1bio-de-oliveira-ribeiro-272376155_pgr-diz-que-est%C3%A1-tomando-provid%C3%Aancias-activity-6763842340135215105-71Z-.

A imprensa repercutiu a manifestação do PGR no processo:

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/aras-diz-ao-stf-que-tem-sido-zeloso-e-que-ja-abriu-9-apuracoes-sobre-conduta-de-bolsonaro/

https://www.sbtnews.com.br/noticia/justica/160569-pgr-diz-que-tem-9-apuracoes-preliminares-sobre-bolsonaro-na-pandemia

https://noticias.uol.com.br/colunas/josias-de-souza/2021/02/05/zeloso-aras-fica-nas-preliminares-com-bolsonaro.htm

Os fundamentos da denúncia de genocídio feita ao STF, entretanto, foram ignorados pelos jornalistas. O desinteresse deles pelo tema funciona como um perdão tácito ao presidente que ajudou a causar 250 mil mortes sabotando a vacinação da população, fazendo propaganda de remédios ineficazes, realizando campanhas de desinformação e promovendo a propagação de um vírus letal.

Nenhum tirano jamais conseguiu concretizar sozinho um genocídio. Em qualquer país, para que o extermínio de uma parcela da população se torne realidade é preciso o engajamento político de muitas pessoas e a condescendência de outras autoridades. A imprensa desempenha um papel importante no mundo moderno. Mesmo não estando em condições de interromper sozinhos o morticínio, os jornalistas podem pelo menos minimizar seu impacto denunciando-o ao mundo para que algo seja feito contra seus perpetradores.

O PGR, o STF e a imprensa se recusam a interromper a matança aleatória promovida no Brasil para atender uma demanda do mercado. Um crime deixa de ser crime porque todos ou a maioria das instituições participaram dele? A resposta obviamente é não.

Desde ontem estou tentando protocolar o Agravo Regimental contra a decisão do Ministro Marco Aurélio de Mello. O sistema do STF se recusa a aceitar a interposição do recurso. Sempre que tento realizar a operação, me são fornecidas as seguintes respostas:

Ocorreu um erro: Ocorreu um erro ao deslocar processo!

Erro na validação do captcha! Marque novamente a caixa de verificação.

Quando realizo a operação sugerida na segunda mensagem, o sistema me fornece a mesma reposta. Isso é intolerável. O art. 317, do Regimento Interno do STF garante aos interessados o direito recorrer das decisões singulares proferidas pelos Ministros da Corte. O Tribunal é Colegiado. Portanto, o arquivamento determinado pelo Ministro Marco Aurélio de Mello deveria ser sujeito a recurso.

Mesmo que admitíssemos hipoteticamente a rejeição do recurso por qualquer motivo, o sistema do Tribunal não deveria impedir a parte de recorrer. Quem presta a jurisdição são os Ministros do STF e não o programador que concebeu o sistema informatizado. Por essa razão, protocolei o Agravo Regimental como se fosse uma nova petição inicial. Isso obrigará o Tribunal a resolver o problema criado pelo sistema.

Abaixo o texto integral do Agravo Regimental através do qual impugnei a decisão que acolheu a tese do Procurador Geral da República. Em 25 de fevereiro de 2021 consultei o sistema do STF e constatei que o recurso foi anexado ao processo e os autos mandados novamente à conclusão. Fiz o que estava ao meu alcance para tentar interromper um genocídio. E você?


EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

PETIÇÃO 9.387/DF - ELETRÔNICO

Número Único 00376549720211000000

FÁBIO DE OLIVEIRA RIBEIRO, já qualificado nos autos da DENÚNCIA POR CRIME DE GENOCÍDIO feita em face do presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO, inconformado com a decisão de fls., vem, respeitosamente, a presença de V.Exa. interpor AGRAVO REGIMENTAL pelas razões que passa a expor:

O ilustre Ministro Marco Aurélio acatou a manifestação do ilustre PGR Augusto Aras e mandou arquivar a denúncia ofertada pelo recorrente.

Os fundamentos oferecidos para o arquivamento do feito, colhidos basicamente da manifestação do PGR, são aparentemente legítimos. Na prática, entretanto, eles contrariam o espírito humanitário que anima o sistema constitucional brasileiro.

A lição do saudoso Dalmo de Abreu Dallari é inesquecível. A observância do princípio da legalidade não deve impedir o juiz de distribuir justiça.

Um ponto comum às Constituições modernas é o aumento das competências do Poder Judiciário, sendo importante assinalar que lhe vêm sendo dadas atribuições que acentuam sua responsabilidade política e social. Para que o Judiciário cumpra esse papel constitucional é necessária a atualização de concepções, inclusive a superação do legalismo formalista. Por um vício que se liga a anacronismos do ensino jurídico e que se agrava pela mentalidade dos juízes, é comum que os julgadores se preocupem quase que exclusivamente com os aspectos formais de suas decisões. São freqüentes as sentenças e os acórdãos recheados de citações eruditas, escritos em linguagem rebuscada e centrados na discussão de formalidades processuais, dando pouco ou nenhuma importância à questão da justiça das decisões.” (O poder dos juízes, Dalmo de Abreu Dallari, Editora Saraiva, São Paulo, 3ª edição 2007, 3ª tiragem 2010, p. 99)

Após fazer uma digressão histórica acerca do surgimento e da consolidação do que chamou de mentalidade legalista anacrônica dos juízes, o jurista paulista e professor da USP apresenta um argumento irrefutável que o STF pode levar em conta para reformar a decisão agravada.

“… No caso do Brasil não existe sequer, o pretexto de que o legislador prendeu o juiz numa camisa de força e não lhe deu meios para agir com alguma liberdade na procura da solução legal e justa dos conflitos jurídicos. Basta lembrar que a inapropriadamente chamada “Lei de Introdução ao Código Civil”, que é, na realidade, uma lei que fixa critérios para a interpretação e aplicação da legislação brasileira, estabelece que 'na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum'. Como está bem claro, o juiz não só pode, mas na realidade deve procurar alternativas de aplicação que, preservando a essência das normas legais, estejam mais próximas da concepção de justiça vigente no local e no momento da aplicação.” (O poder dos juízes, Dalmo de Abreu Dallari, Editora Saraiva, São Paulo, 3ª edição 2007, 3ª tiragem 2010, p. 101)

Durante 10 meses o acusado Jair Messias Bolsonaro ignorou as recomendações da Organização Mundial de Saúde, desprezou a ciência, sabotou o combate à pandemia e dificultou a aquisição de vacina, combateu o uso de máscara e recomendou o contato social para propagar o vírus (que segundo ele seria a verdadeira vacina). Ele também fez campanha contra a vacinação e propaganda de remédios ineficazes.

A intenção do acusado de transformar a pandemia numa arma de destruição em massa fica ainda mais clara quando levamos em conta que ele se livrou dos dois médicos colocados à frente do Ministério da Saúde que se recusaram a instrumentalizar um genocídio. É evidente, portanto, que o denunciado não respeitou os fins sociais e as exigências do bem comum ao exercer o poder presidencial que lhe foi outorgado pela população.

O princípio da legalidade não protegeu as vítimas inocentes do genocídio em curso. Deve esse princípio proteger o presidente da república só porque ele não foi denunciado pelo PGR? A resposta é não.

Exceto se o próprio STF decidir legitimar um genocídio ou não interrompê-lo, a alternativa ofertada pelo agravante deve ser considerada juridicamente plausível. Ela atende aos fins sociais e às necessidades do bem comum que devem basilar a aplicação dos princípios constitucionais (os direitos à vida e à saúde dos cidadãos e o dever do Estado de preservar a saúde pública) que foram triturados pelas operações especiais de desinformação e de desabastecimento que foram colocadas em prática pelo presidente da república.

Ultrapassado o obstáculo do princípio da legalidade, vejamos agora os motivos pelos quais o STF deve considerar legítimo o overlap que o agravante deu no dispositivo que confere ao PGR a prerrogativa para denunciar o presidente da república.

Segundo o caput do art. 5º, da Constituição Cidadã, todos são iguais perante a Lei. Essa igualdade não pode ser apenas formal.

O art. 301, do Código de Processo Penal, prescreve que:

Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Como a igualdade prescrita no art. 5º, da Constituição Cidadã é substancial, ninguém pode excluir a possibilidade de um cidadão prender até mesmo o presidente da república. Apesar de juridicamente admissível, essa hipótese acarreta alguns problemas práticos. O mais evidente é que o presidente comanda as Forças Armadas e a guarda presidencial poderia facilmente impedir a prisão dele por um cidadão. Ainda que o cidadão estivesse coberto de razão as “razões” dos armamentos dos militares seria maior.

A invulnerabilidade do presidente em virtude dele estar cercado de militares armados, muitos dos quais dispostos a morrer para manter ele no poder apesar ou justamente por causa dele ser um criminoso provoca um dilema importante. Se quiser cumprir e fazer cumprir o disposto no art. 301, do CPP, o cidadão convicto de que o presidente cometeu um crime e deve ser preso teria que organizar uma milícia para atacar o Palácio do Planalto violando, assim, diversos princípios constitucionais e o próprio Código Penal.

O direito de sedição e de rebelião armada não é e não poderia ser tutelado pelo sistema legal. Portanto, voltamos à estaca zero. Mesmo que tenha cometido um crime o presidente não poderia ser preso por um cidadão na forma do art. 301, do Código de Processo Penal.

A Corte não pode agir porque o PGR se recusa a exercer sua competência. O cidadão, a quem a Constituição Cidadã proíbe de organizar uma milícia para interromper um genocídio, não pode cumprir e fazer cumprir o art. 301, do CPP. Protegido por sua guarda pretoriana, o presidente segue sabotando o combate à pandemia e engajando seus aliados num culto de morte.

Antes do início do ano judiciário, Jair Bolsonaro voltou a publicamente fazer ameaças contra o sistema democrático, no que foi apoiado publicamente pelo PGR. A situação paradoxal em que o país se encontra remete o STF a um fragmento do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes num dos casos da Lava Jato:

Hoje, os parâmetros da lei tem valor meramente literário – é algo lítero-poético recreativo.” (STF -PET 7.074/DF – DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DA ATUAÇÃO DO RELATOR EM COLABORAÇÕES PREMIADAS, Julgamento do Plenário em 28 de junho de 2017)

Enquanto as autoridades se divertem os cemitérios seguem devorando as vítimas inocentes de uma pandemia que poderia estar sob controle ou, no mínimo, sendo combatida de maneira efetiva. O Tribunal tem competência para julgar a conduta do presidente, mas não pode fazer isso, pois ele é apoiado por Augusto Aras.

Esse apoio do PGR ao presidente, escandalosamente dado em público como se fosse motivo de orgulho, pode ser considerado uma prova de que nossas instituições não estão funcionando? A resposta do agravante à pegunta anterior é NÃO. A resposta do STF a essa mesma pergunta também foi NÃO. Isso ocorreu quando o PGR tentou arquivar a investigação das Fake News insufladas contra a Corte pelo presidente da república e seus apoiadores mais fanáticos.

O curso da história não é predeterminado. A história é feita por homens, sejam eles altivos e corajosos ou subservientes e covardes. Felizmente ninguém pode dizer que os subprocuradores que se rebelaram contra o PGR são covardes. Na nota que eles divulgaram ao público consta dois parágrafos que merecem ser aqui mencionados:

É importante recordar as espécies de responsabilidade dos agentes políticos no regime constitucional brasileiro. A possibilidade de configuração de crimes de responsabilidade, eventualmente praticado por agente político de qualquer esfera, também não afasta a hipótese de caracterização de crime comum, da competência dos tribunais.

Nesse cenário, o Ministério Público Federal e, no particular, o Procurador-Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo – independentemente de “inquérito epidemiológico e sanitário” na esfera do próprio Órgão cuja eficácia ora está publicamente posta em xeque –, e sem excluir previamente, antes de qualquer apuração, as autoridades que respondem perante o Supremo Tribunal Federal, por eventuais crimes comuns ou de responsabilidade (CF, art. 102, I, b e c).” (doc. anexo)

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em sua manifestação, o PGR afirma que está tomando todas as providências cabíveis para investigar supostos crimes cometidos pelo presidente da república. Ele cita as investigações acerca do desabastecimento de oxigênio hospitalar que causou várias mortes em Manaus pouco antes do ajuizamento desta denúncia. Todavia, e isso é importante, o PGR somente se movimentou após a rebelião dos sub-procuradores e não depois que o escândalo das mortes por asfixia nos hospitais de Manaus veio a público.

Num debate televisionado pela CNN, o advogado Marcelo Feller creditou 10% das mortes da pandemia ao presidente Jair Bolsonaro. Imediatamente o Ministro da Justiça tomou providências criminais não para apurar a acusação de genocídio feita por aquele advogado e sim para puni-lo. O agravante tem consciência de que também corre o risco de sofrer represália semelhante ou maior. Mesmo assim, decidiu assumir o risco de obrigar o STF a debater a conduta do presidente e a omissão do PGR.

Apesar de conter regras que o transformam num sistema fechado, todo e qualquer sistema constitucional deve ser capaz de resistir às pressões políticas decorrentes dos abusos cometidos porl uma autoridade. Especialmente quando essa autoridade é protegida por outras autoridades, caso do presidente Jair Messia Bolsonaro.

Desde que começou a fazer operações especiais de desinformação e de desabastecimento para maximizar o número de mortos pela pandemia, o presidente da república Jair Messias Bolsonaro não foi incomodado pelo Procurador Geral da República.

Antes de prosseguir chamo atenção dos Ministros para uma matéria jornalística importante:

O PGR provavelmente tem conhecimento dessa matéria. As palavras do presidente do Banco Central parecem ter convencido Augusto Aras de que a economia reagirá de maneira positiva se a letalidade da pandemia for maior ou se o Estado combater de maneira eficaz a pandemia. O mesmo se aplica ao presidente Bolsonaro, homem rude que gosta de dizer que a especialidade dele é matar e que não afastou o presidente do BC após aquela declaração incompatível com o disposto nos arts.1º a 5º da CF/88.

Os princípios basilares da Constituição Cidadã são o respeito à vida e à dignidade humana. O Estado brasileiro não pode transformar a pandemia numa arma de destruição em massa, mas é exatamente isso o que está ocorrendo em virtude das operações especiais de desinformação e desabastecimento conduzidas pelo presidente da república desde abril de 2020. A omissão do PGR é inadmissível. Ele também parece ter esquecido que não pode deixar de cumprir suas obrigações institucionais.

A omissão do PGR e a impossibilidade de sedição ou rebelião armada do cidadão não podem impedir o Judiciário de conhecer um crime ou, de pelo menos, de julgar se um crime ocorreu ou não. Esses são os fundamentos pelos quais o presente recurso merece ser processado, julgado e provido.

Desde que a Constituição Cidadã foi promulgada o STF proferiu inúmeros Acórdãos interpretando seu conteúdo. Alguns deles restringiram direitos constitucionais outorgados aos cidadãos, outros conferiram privilégios questionáveis aos administradores públicos. A interpretação pró-mercado dada ao constitucional já o desfigurou de tal maneira que é impossível reconhecer na sua versão interpretada pelo STF a Constituição Cidadã promulgada por Ulisses Guimarães.

Há algo mais que pode ser dito sobre a situação em que o STF se colocará caso não dê provimento ao recurso.

A imprensa comemorou o fato do Ministro Lewandowski ter dado 48 horas para o presidente Jair Bolsonaro normalizar o abastecimento de oxigênio em Manaus. Absolutamente correta, essa decisão evidencia a suspeita de que um genocídio está em andamento. É inegável que o Estado tem o dever de garantir o direito à saúde dos cidadãos, proporcionando acesso universal igualitário às ações e serviços que promovam sua promoção, proteção e recuperação (art. 196, da Constituição Cidadã).

Na prática, referida decisão é ineficaz. Na verdade, o STF deu ao genocida mais 48 horas para continuar matando a população. E como o governador do Amazonas se recusa a impor restrições ao funcionamento do comércio e à circulação das pessoas, os hospitais continuarão superlotados. Em algum momento futuro os cidadãos amazonenses começarão a morrer em suas casas ou nas ruas, sendo irrelevante o fato dos hospitais estarem ou não sendo abastecidos de oxigênio.

Para compreender a ineficácia das decisões judiciais nesse momento não podemos recorrer aos conceitos de anomia ou de hipernomia. O Direito não foi suspenso por um ato (iustitium, na terminologia adotada por Giorgio Agamben), nem tampouco estamos diante da inserção de mecanismos da exceção no interior do Estado democrático (autoritarismo líquido, como costuma dizer o jurista Pedro Estevam).

O avanço da pandemia, que está sendo facilitado pela omissão estatal no Amazonas e diariamente amplificado pelas operações de desinformação conduzidas pelo presidente da república, criaram um cenário em que qualquer decisão judicial proferida pelo STF (ou pela Justiça Estadual ou pela Justiça Federal) em benefício da população se tornará inútil. Mesmo que seja cumprida, o conteúdo jurídico e humanitária da decisão será esvaziado.

Válida e eficaz, a decisão do Ministro Lewandowski não poderá produzir efeitos práticos porque a realidade da reação antijurídica em expansão deixou de ser um fenômeno controlável pelo Sistema de Justiça. Ela é um fenômeno político que adquiriu vida própria e continuará se expandindo como se estivesse sujeito apenas às leis da física.

O universo em expansão é o melhor exemplo de reação em cadeia produzida por um impulso inicial (Big Bang). O crescimento de um buraco negro segue o mesmo padrão, até mesmo um fóton que se aproximar “evento horizonte” acabará sendo tragado pela força irresistível que ele produz. A entropia também é um fenômeno inexorável, cujo avanço não pode ser interrompido sem que algo ou alguém interfira no sistema que está sujeito à sua ação.

A promulgação da Constituição Cidadã interrompeu uma ditadura militar sanguinária que se expandiu até ser politicamente derrotada pelos seus adversários que souberam explorar as contradições que o poder militar criou e não foi capaz de solucionar. O golpe de 2016 disfarçado de Impeachment iniciou a reação antijurídica em expansão que está dissolvendo todos os direitos e garantias prescritos na Constituição Cidadã e tornando ineficazes as decisões do STF.

Transformados em armas políticas para interromper o mandato de Dilma Rousseff, comprometer o sucesso eleitoral do PT e inviabilizar a reeleição de Lula, o Direito e o Sistema de Justiça são vítimas da falta de seriedade e de raciocínio prospectivo dos juízes lavajateiros (entre os quais se destacam vários membros do TRF-4, STJ e do próprio STF). Uma realidade abissal incontrolável se fecha sobre aqueles que provocaram a ruptura democrática.

O genocídio colocado em marcha por Bolsonaro é a hubris do golpe de 2016. O presidente é um legítimo representante do zeitgeist criado pelo neoliberalismo jurídico. Mesmo que ele seja de alguma maneira retirado da presidência, o novo fenômeno jurídico e político que resultou no genocídio em Manaus continuará a produzir efeitos na capital do Amazonas e em outras regiões do nosso país. Todavia, é necessário minimizar os danos e salvar a credibilidade do Sistema de Justiça e do Estado. Isso não poderá ser feito se o STF se recusar a admitir essa denúncia contra o presidente genocida.

Na petição em que defendeu a competência do MPF para ofertar denúncias criminais, o PGR afirma que:

Não há que se cogitar, por outro lado, de hipótese excepcional de ação penal privada subsidiária da pública, a qual, antes de mais nada, exige a comprovação de inércia do Ministério Público.”

Augusto Aras disse que tomou providências para investigar o fato de Manaus ter ficado sem oxigênio hospitalar. Nenhuma palavra sobre os demais fatos notórios graves que foram alinhavados na denúncia (o presidente impulsionar uma pandemia minimizando sua letalidade, a propaganda que ele fez de um medicamento inócuo contra o vírus COVID-19, as ações e campanhas de desinformação para deixar a população sem ser vacinada, etc…).

Entretanto, o PGR normalizou o comportamento genocida de Jair Bolsonaro para normalizar sua própria omissão frente aos fatos graves que ele se recusou a conhecer. A manifestação dele parece ser juridicamente impecável. Todavia, ela é extremamente desumana. Convém lembrar aqui as palavras de um grande filósofo francês:

A lucidez que provoca a revolta ética se tornou capital para compreender a própria realidade. Isso é o que expressavam as mensagens dos dissidentes soviéticos, desde Soljenítsin. Ali estava a lucidez, ali estava a compreensão. Com frequência, é preciso ser um desviante minoritário para estar no real. Embora, aparentemente, nele não haja nenhuma perspectiva, nenhuma possibilidade, nenhuma salvação, a realidade não está paralisada para sempre, ela tem seu mistério e sua incerteza. O importante é não aceitar o fato consumado.” (Rumo ao abismo, Edgar Morin, editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2011, p. 143/144)

O agravante se recusa a aceitar o fato consumado que Augusto Aras tenta esconder ao minimizar a conduta genocida presidencial. Estar sozinho diante do STF e contra o dispositivo constitucional que garante ao PGR o direito de denunciar ou não um presidente criminoso não é um problema para o agravante. Ele se sentiria muito pior se ficasse calado, se não fizesse o que está ao seu alcance.

Ao repelir a denúncia feita pelo recorrente sem adentrar ao mérito dos fatos notórios levados ao conhecimento do STF, que sugerem a necessidade do réu seu julgado por genocídio, Augusto Aras parece ter repetido a sentença que a Inquisição proferiu em 1555 no caso do teólogo francêes Guillaume Postel (1510-1581). Bolsonaro é “non malus se amens”, ou seja, não mau e sim demente.

O reconhecimento da demência do presidente que desrespeita as recomendações da Organização Mundial de Saúde e que politizou uma questão sanitária, demitindo dois Ministros da Saúde e colocando um general para cuidar do SUS durante a pandemia, também é juridicamente relevante. Todavia, e isso precisa ser dito, o PGR ignorou os alertas da imprensa nesse sentido deixando de ajuizar a competente Ação de Interdição. Na prática, a inação de Augusto Aras condena uma parcela da população brasileira a ser exterminada por um homem “non malus se amens” que, no entanto, não foi afastado de suas funções.

Após o oferecimento desta denúncia, a ANVISA aprovou a vacina que está sendo produzida pelo Butantã. Na sequência ocorreu a cerimônia d vacinação da primeira brasileira, uma enfermeira que coloca a vida em risco lutando contra a pandemia desde que ela começou.

Inconformado, o presidente brasileiro voltou a fazer propaganda da cloroquina. Segundo ele, o tratamento precoce da doença seria um substituto à vacina. Esse fato evidencia uma vez mais a disposição do denunciado de continuar realizando operações de desinformação para desautorizar a vacinação, convencer as pessoas a não aceitá-la e, pior, a usar um medicamento ineficaz. Não existe tratamento precoce para o COVID-19, o remédio propagandeado pelo presidente não funciona e ele não deveria fazer campanha contra um que tem eficácia comprovada pelos cientistas.

Desmascarado o argumento sobre o tratamento precoce, o denunciado seus filhos e deputados da base do governo começaram a remover da internet fotos e comentários promovendo o uso da cloroquina. Ao que parece o acusado pretende reposicionar sua imagem como defensor da vacina. Essa decisão, entretanto, foi tomada por um cálculo político e não porque o presidente está preocupado com o aumento do contágio e do número de vítimas fatais.

Após o início do ano judiciário e do protocolo da manifestação do PGR nos autos, Jair Bolsonaro passou a dizer que a cloroquina é um placebo e que ao incentivar o uso dela ele não matou ninguém. Duas coisas causam espante nesta declaração. A primeira é que a cloroquina não é um placebo e sim um medicamente extremamente tóxico cujos efeitos no organismo podem causar a morte do paciente. A segunda diz respeito à subjetividade do presidente brasileiro.

O acusado se recusa a manter qualquer contato com a realidade. Confirmando as palavras de Freud, Bolsonaro demonstrou acreditar que o julgamento subjetivo que ele fez da própria conduta é uma verdade impossível de ser contestada.

A neurose é caracterizada pelo fato de colocar a realidade psíquica acima da factual, por reagir a pensamentos com a mesma seriedade com que as pessoas normais reagem apenas a realidades.” (Totem e Tabu, Sigmund Freud, L&PM Editores, Porto Alegre, 2013, p. 229)

Todavia, Bolsonaro não é apenas um neurótico. A avaliação que ele faz da própria conduta é digna de um genocida. O presidente brasileiro sabotou a vacinação do povo e insistiu na distribuição de um medicamento que ele sabia ser ineficaz enquanto incentivava aglomerações sociais, atacava a adoção de restrições ao comércio/indústria/transportes e se recusava a usar máscaras. Apesar de já ter causado milhares de mortes e, no entanto, acredita que é absolutamente inocente e esse fato não pode ser ignorado.

O genocídio é um crime complexo cuja consumação depende do engajamento de colaboradores e da omissão daqueles que estão em posição de interromper sua concretização. Não sendo consumado por um ato singular, o genocídio se prolonga durante um longo período de tempo (3 meses no caso do genocídio de tutsis em Ruanda; 3 anos e alguns meses no caso do genocídio de judeus e ciganos pelo III Reich). Enquanto as condições que possibilitaram o início desse crime não são superadas o genocídio segue em frente produzindo vítimas.

A partir do momento em que se transforma numa dinâmica social, o genocídio se torna tão incontrolável que até mesmo as vítimas dele acabam colaborando de alguma maneira para o seu extermínio. Isso já está ocorrendo no Brasil, pois acreditando nas operações especiais de desinformação conduzidas pessoalmente pelo presidente da república uma parcela significativa da população rejeita usar máscara e desdenha o distanciamento social. Entre os cadáveres produzidos pelo COVID-19 já existem vários eleitores e apoiadores de Bolsonaro.

Durante meses o presidente brasileiro fez propaganda na internet contra a vacina. Ele tem dezenas de milhões de seguidores e muitos deles provavelmente se recusarão a ser vacinados. Isso comprometerá a eficácia da imunização coletiva, permitindo ao vírus COVID-19 continuar circulando e provocando vítimas em nosso país.

E assim chegamos à beira do abismo. Ao se aferrar a um aspecto formal para impedir o julgamento do crime noticiado pelo recorrente, os Ministros do STF darão um passo final em direção à legitimação do genocídio em curso. A Constituição Cidadã que deveria proteger a vida será transformada num instrumento da morte nas mãos de um presidente especialista em matar e do PGR que inexplicavelmente o protege.

A questão levada ao conhecimento do plenário do STF é de alta indagação: pode o Supremo Tribunal Federal, em razão de uma exceção (a omissão do PGR em denunciar o presidente da república pelo crime de genocídio), adotar uma solução excepcional (admitindo a denúncia do crime feita pelo agravante). A resposta do saudoso Ministro Eros Grau seria sim.

15 -De mais a mais, a violação de uma norma é expressão não apenas de uma conduta adversa ao que está escrito em um texto, no plano abstrato do mundo do dever ser, mas violação de uma ordem concreta, histórica, situada no espaço e no tempo.

Estamos, no caso, diante de uma situação de exceção, que --- embora não prevista pelo nosso direito positivo --- há de ser decidida em coerência com a ordem concreta da qual a Constituição é a representação mais elevada no plano do direito posto. Esta ordem concreta é anterior ao direito posto pelo Estado. Arranca de um direito pressuposto e expressa a visibilidade de um nomos.” (STF, ADI 2.240-7 Bahia, Relator Ministro Eros Grau – documento incluso)

Essa jurisprudência, da lavra do Ministro Eros Grau é extremamente importante. Numa situação normal, o STF poderia seguir a orientação do Acórdão citado pelo PGR na sua manifestação (STF – PET 6.071 AgR/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 30.3.2017) para inadmitir o prosseguimento da denúncia de genocídio feita com evidente violação do art. 129, I, da CF/88.

Todavia, nós estamos diante de uma situação excepcional. O Brasil mergulhou numa pandemia e o presidente fez e continua fazendo tudo o que não deveria para sabotar o dever do Estado de garantir a saúde e a vida dos cidadãos. Seguindo a orientação do presidente do Banco Central (que disse textualmente que reduzir as mortes por coranavírus é pior para a economia) o presidente da república se esforçou e se esforça para maximizar as mortes.

Ao discursar durante a abertura do ano judiciário de 2021, o Ministro Luiz Fux disse que "A ciência, que agora conta com a tão almejada vacina, vencerá o vírus; a prudência vencerá a perturbação; e a racionalidade vencerá o obscurantismo...". O acusado estava presente e provavelmente fez de conta que não ouviu o que foi dito pelo presidente do STF.

Até a presente data Jair Bolsonaro não alocou os recursos necessários para acelerar a produção e distribuição de vacinas. O ritmo de vacinação no Brasil é extremamente lento. Segundo os cientistas, nosso país corre o risco de se tornar um foco produtor e propagador de novas variantes do COVID-19. Enquanto mais de mil brasileiros morrem por dia, o presidente da república segue com sua política de distribuição de medicamentos ineficazes.

Bolsonaro age como se uma parcela da população brasileira fosse indigna de receber cuidados Estatais. E o PGR se recusa a tomar as providências necessárias para interromper o genocídio em curso. No afã de agradar o mercado, ambos jogaram a Constituição Cidadã na lata do lixo. Ao julgar o genocida presidencial o STF pode deixá-la no lixo ou resgatá-la para reconhecer a dignidade humana das vítimas do comportamento presidencial.

O direito à vida dos cidadãos não pode ser impunemente violado por um presidente da república que, ignorando as recomendações da Organização Mundial de Saúde, faz tudo que pode para facilitar a propagação de um vírus mortal, dificultando a aquisição de vacina e fazendo propaganda de medicamentos ineficazes que podem causar intoxicação medicamentosa fatal. O PGR falhou ao criar uma situação excepcional, o STF não pode falhar ao interpretar a Constituição Cidadã.

No dia 10 de fevereiro de 2021, a imprensa noticiou o alerta dramático da OMS: a variante brasileira do coronavírus tem potencial de afetar eficácia da vacina; em Manaus, a proporção da variante encontrada nas amostras aumentou de 52% em dezembro para 85% em janeiro de 2021. Bolsonaro sabotou a aquisição de vacina e fez o que não podia para atrasar a vacinação da população brasileira obrigando o STF a proferir decisões sobre esse assunto. Agora que começou, a vacinação pode ser inútil para deter o tsunami de cadáveres decorrente ao surgimento e à propagação de uma variante mais letal do COVID-19.

Nos últimos dias vários pedidos de Impeachment foram apresentados no Poder Legislativo. Alguns deles mencionam os fatos notórios aqui mencionados. Todavia, Jair Bolsonaro usou recursos orçamentários escassos (que poderiam ser destinados ao combate da pandemia) para comprar a maioria dos parlamentares. Foi assim que ele conseguiu eleger o presidente da Câmara dos Deputados.

Inexiste qualquer possibilidade política do parlamento iniciar o Impeachment e afastar o presidente do cargo. Portanto, recaiu no STF a tarefa de fazer uma escolha que não deveria ser difícil: proteger o presidente genocida ou interromper o genocídio aleatório em curso?

Essa escolha, entretanto, não poderá ser feita levando os interesses do mercado. Os brasileiros não são cidadãos do mercado. Eles são cidadãos do Brasil. Os direitos deles não são definidos pelos banqueiros e pelos investidores internacionais, mas pela Constituição Cidadã. O STF é guardião dessa Constituição e não dos balancetes financeiros que registram os lucros privados das empresas e dos bilionários.

O jurista Ran Hirschl faz um alerta importante:

“… o elo inextricável entre a concepção predominante de direitos como liberdades negativas e o atual credo macroeconômico antiestatista impede essencialmente o avanço de noções progressistas de justiça distributiva. Para ser franco, há uma chance mínima de se reduzirem as grandes disparidades nas condições de vida dentro e entre as sociedades na era neoliberal, enquanto se mantiver uma concepção de direitos que vê a proteção da esfera privada como seu objetivo final e que considera a regulamentação por parte do Estado e a 'descomoditização' por lei dos serviços sociais como maiores ameaças à liberdade e à igualdade humanas; e que considera tais ameaças mais graves do que as relações e instituições sociais potencialmente opressivas e exploradoras de uma esfera 'privada' expandida.” (Rumo à juristocracia, Ran Hirschl, editora E.A.D., Londrina, 2020, p. 268/269)

Dalmo de Abreu Dallari foi ainda mais enfático:

...com frequência, a cumplicidade e a indiferença dos juízes e cúpulas judiciais são elementos com os quais contam os governos injustos para assegurar a impunidade dos violadores de direitos humanos.” (O poder dos juízes, Dalmo de Abreu Dallari, Editora Saraiva, São Paulo, 3ª edição 2007, 3ª tiragem 2010, p. 41)

Muito embora possa ser inutilizado pela falta de acesso à educação, o direito à liberdade de expressão pode ser e geralmente é considerado um direito negativo. Várias outras liberdades garantidas pela nossa Constituição também são indiscutivelmente negativas (liberdade de imprensa, liberdade de credo religioso, liberdade de consciência política e ideológica, etc…).

Todavia, num país que proíbe expressamente a pena de morte e garante o direito a saúde, o direito à própria vida é positivo. O Estado brasileiro não pode matar os cidadãos. Nenhum governante deve abandonar os brasileiros à própria sorte, deixando-os morrer durante a pandemia sem fazer o que é necessário para proporcionar-lhes vacina e assistência médica indispensável.

Portanto, ao apreciar a denúncia de genocídio a cúpula do Judiciário brasileiro não deve ceder à tentação de endossar o credo macroeconômico antiestatista (Bolsonaro não tem o privilégio de fazer campanhas de desinformação para maximizar as mortes causadas por um vírus letal ou de sabotar a vacinação da população para impedir a preservação das vidas que são desprezadas pelo mercado). Ao julgar o recurso o STF não pode ignorar ou minimizar o direito positivo à vida e à assistência médica dos brasileiros, cujo inadimplemento pelo acusado durante a catástrofe global pode ser, no mínimo, considerado suspeito de configurar crime de genocídio.

Mesmo tendo sido ignorada pelo PGR, a justa causa para a denúncia feita ao STF é evidente. Ao julgar o caso, o Tribunal terá que fazer sua escolha pesando dois princípios constitucionais que não são igualmente relevantes. De um lado temos o direito à vida e à saúde conferida a todos os cidadãos que foram obliterados pelo acusado acarretando mais de 230 mil mortes, de outro o poder/dever outorgado ao PGR que se recusa a denunciá-lo ou a admitir o processamento desta denúncia. Qual deles tem mais relevância jurídica e constitucional?

Mesmo correndo o risco de ser ridicularizado pela imprensa, o agravante continuará defendendo o direito à vida dos brasileiros. Se não fizer essa escolha, o STF se exporá ao ridículo de legitimar um genocídio. O aumento da propriedade e da esfera privada dos ricos que defendem o neoliberalismo (Ran Hirschl) não pode ser feita à custa do extermínio dos pobres por um governo que se recusa ativamente a respeitar a Constituição Cidadã e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Dalmo de Abreu Dallari).

Após o golpe de 2016, a interpretação da Constituição Cidadã se tornou cada vez mais problemática. Fiador do golpe de estado em última instância, o STF as vezes aplica o texto tal como ele foi escrito. Outras o Tribunal simplesmente se afasta do conteúdo da constituição colocada em vigor em 1988. O resultado da interpretação dada pelo STF à nossa constituição se tornou um “mer d”infini chiffrements à guise d'un autre Archipel tout parsemé d'isles […] un embrouillement plus malaisé à s'en depestrer que de tous les labirinthes de Crete ou d'Egypte.” (Traité des chiffres, de Vigenère, de 1587, citado originalmente em francês por Umbeto Eco em “A busca da língua perfeita na cultura europeia, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 146. – tradução dada pelo autor: “...um mar de infinitos criptogramas, como um novo arquipélago, todo repleto de ilhas, um imbróglio do qual é mais difícil de escapar do que de todos os labirintos de Creta e do Egito”).

Convém, portanto, fazer aqui um exercício cabalístico de interpretação para extrair todos os conteúdos possíveis dos art. 5º, da Constituição Cidadã.

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Séries combinatórias:

1ª letra de cada palavra, excluídas as partículas de ligação

Resultado: TSIPLSDDQNGABAERPIDDVLISPNTS

2ª letra de cada palavra, excluídas as partículas de ligação

Resultado: oãgeeeiuaoroseaniiigereea

A começar pela 1ª palavra, pular a seguinte e incluir a terceira, repetindo o procedimento até o final do texto, excluídas as partículas de ligação.

Resultado: Todos iguais lei distinção natureza brasileiros residentes inviolabilidade vida igualdade propriedade seguintes.

É possível repetir esse exercício cabalístico à exaustão, empregando diversas outras formas combinatórias. Todavia, parece evidente que em nenhum dos casos o art. 5º da Constituição Cidadã produzirá algo compreensível de cujo texto seja permitido extrair uma mensagem malsã como: o presidente pode impunemente deixar centenas de milhares de brasileiros morrer ou facilitar a morte deles de alguma maneira.

Suponhamos, entretanto, que a análise cabalística do art. 5º não tenha convencido o Tribunal a descartar a hipótese de que “o presidente pode impunemente deixar centenas de milhares de brasileiros morrer ou facilitar a morte deles de alguma maneira.” Nesse caso convêm fazer o teste da similitude, sendo indispensável citar o art. 196, da CF/88:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.”

“Quomodo multis modis, aliqua res alteri sit similis.” (Cosme Rosselli, Thesaurus artificiosae memoriae, 1579, citado originalmente em latim por Umbeto Eco em “A busca da língua perfeita na cultura europeia, editora Unesp, São Paulo, 2018, p. 146. – tradução dada pelo autor: como cada coisa - a partir de um determinado ponto de vista - pode ser semelhante a uma outra.)

De um lado nos temos uma Constituição que garante ao cidadão o direito a vida e à saúde obrigando o Estado a prestar assistência médica, o que obviamente inclui a vacinação em caso de epidemia ou pandemia (primeira proposição). De outro a hipótese de que o presidente pode impunemente deixar centenas de milhares de brasileiros morrer ou facilitar a morte deles de alguma maneira (segunda proposição). As duas proposições não podem ser consideradas semelhantes ou equivalentes, pois a predominância da segunda anula os direitos consagrados na primeira. Além disso, a predominância da primeira proposição inequivocamente obriga o Judiciário a considerar potencialmente criminosa qualquer ação baseada na segunda proposição.

248.529 mortos em decorrência da pandemia até 24/02/2021. Se o Parlamento aprovar uma Lei para obrigar o Estado a registrar a memória do genocídio dedicando 10 páginas impressas para cada cidadão morto hoje seriam necessárias 2.485.290 páginas. Acondicionadas em livros de 300 páginas cada elas resultariam 8.285 volumes. Se acrescentarmos ao registro os prontuários médicos dos pacientes mortos nos Hospitais, incluindo uma página dedicada a cada equipe médica que atendeu as vítimas, a biblioteca ficaria ainda maior. À medida que cresce, a montanha de cadáveres produz um Tsunami de informação indesejada. Augusto Aras, que rejeitou a hipótese de genocídio, deveria ser obrigado a revisar caso por caso para apurar se existiu ou responsabilidade de alguém em algum momento. Ao contrário de normalizar a matança é preciso refletir sobre o que poderia ser feito.

Finalizo lembrando aos Ministros do STF quatro notícias muito recentes que merecem ser levadas em consideração para avaliar a conduta do acusado: a primeira é a interrupção da vacinação porque o presidente brasileiro se recusa a comprar o lote de vacinas fabricados pelo Butantã (Bolsonaro gastou apenas 9% da verba reservada para esse fim); em segundo, o alerta feito pelo médico Drauzio Varella no sentido de que no Brasil a vacinação virou bagunça; a terceira é a matéria publicada na prestigiosa revista The Lancet, em que vários pesquisadores renomados acusaram o presidente brasileiro de praticar uma política da morte; e a última refere-se à carta aberta divulgada pelos professores e servidores da Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) pedindo a responsabilização do governo e de agentes públicos pelo fracasso do combate à pandemia.

As evidências que sustentam a acusação feita pelo agravante não podem ser ignoradas. Não só isso.

É fato notório que Bolsonaro já foi acusado do crime de genocídio no Tribunal Penal Internacional. A investigação preliminar que está sendo conduzida naquele órgão não deixará de levar em conta o artigo publicado na revista The Lancet. Isso coloca o STF numa posição extremamente vulnerável. Caso aceite os argumentos do PGR e arquive o caso, a Suprema Corte brasileira fornecerá prova indiscutível que a instância local foi encerrada, legitimando uma “full investigation of the genocide charge” no Tribunal Penal Internacional.

O processamento da acusação de genocídio contra Jair Bolsonaro no TPI afetará negativamente a economia do nosso país, interrompendo investimentos e afugentando investidores. Além disso, a escandalosa cumplicidade entre o PGR, o STF e o presidente genocida também destruirá o que resta da credibilidade do Sistema de Justiça brasileiro.

Refletindo sobre o espaço vital gótico (ou germânico), Oswald Spengler afirma que “A cultura faustiana é uma cultura da vontade.” (A decadência do ocidente, Oswald Spengler, editora Forense Universitária, 4ª edição, Rio de Janeiro, 2014, p. 163). Não somos nem góticos, nem faustianos. O que anima o espaço vital brasileiro é a preguiça. Portanto, podemos dizer que somos “macunaímicos”.

Isso explica tanto o pouco apego que as autoridades brasileiras têm à letra da Lei e quanto perpetuação do abismo social apesar do princípio da igualdade ter sido consagrado desde a Constituição do Império, em cujo art. 179, está expresso:

XIII. A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um.”

Cito a Constituição do Império porque do referido art. 179. consta um curioso dispositivo.

II. Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade publica.”

Qual é a utilidade pública do direito à vida e à saúde que foram consagrados na Constituição Cidadã se um presidente puder, impunemente, sabotar a vacinação da população, fazer propaganda de remédios ineficazes, desrespeitar recomendações da Organização Mundial de Saúde e realizar campanhas de desinformação para facilitar a propagação de um vírus letal? A Lei brasileira que considera o genocídio um crime tem utilidade pública ou macunaímica?

248.529 mil mortos e nenhuma reação enérgica do Sistema de Justiça. Enquanto o presidente genocida vai nadar, correr, ogar futebol ou pilotar jet ski, milhões de pessoas choram seus mortos, os doentes padecem nos hospitais. E população brasileira condenada a fazer escolhas dignas do herói sem caráter que simboliza a alma nacional: entrar “...pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas.” (Macunaíma, o herói sem caráter, Mário de Andrade – edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez, editora LTC, Rio de Janeiro, 1978, p. 93) correndo o risco de ser contaminado e morrer por causa do COVID-19 ou ir apenas “… na praça Antônio Prado meditar sobre a injustiça dos homens” (Macunaíma, o herói sem caráter, Mário de Andrade – edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez, editora LTC, Rio de Janeiro, 1978, p. 104).

Tentando fornecer um álibi plausível para o presidente genocida, um grupo de médicos publicou nos jornais de grande circulação um manifesto em favor do uso de cloroquina no tratamento preventivo à pandemia. A Organização Mundial de Saúde rejeita essa tese e faz duas recomendações importantes: 1º não existe tratamento preventivo para a pandemia; 2º a cloroquina é ineficaz para tratar pacientes de COVID-19 e pode causar danos sérios à saúde dos usuários. Ao avaliar e julgar a conduta do acusado o STF pode escolher entre a ciência e o charlatanismo.

Face ao exposto, requer o processamento e o PROVIMENTO do presente recurso, para, reformando-se a decisão do ilustre Ministro Marco Aurélio, autorizando-se o processamento da denúncia formulada pelo agravante, tudo como medida da mais indispensável justiça!

São Paulo, 24 de fevereiro de 2021.

Fábio de Oliveira Ribeiro, OAB/SP 107.642

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos