A matrix da “realidade jurídica simulada”

25/02/2021 às 21:33
Leia nesta página:

Analisa as questões referentes as constantes decisões judiciais que reinterpretam a Constituição Federal, e lhe conferem aplicação diferente das prescrições literais que estão expressamente consignadas.

Vários cientistas renomados (como o gênio Elon Musk) vem sustentando categoricamente, haver uma grande probabilidade de estarmos vivendo no que chamam de “realidade simulada”. O raciocínio é complexo, mas, em uma síntese muito apertada, sugerem que a Inteligência Artificial das máquinas (AI) pode já ter evoluído tanto, que se tornaram entes superinteligentes. E que, neste cenário (por razões que não serão aqui abordadas), a humanidade teria sido submetida a uma simbiose / integração de tal envergadura com estas máquinas inteligentes, que não se saberia mais se o que estamos vivendo no momento é de fato a “realidade” ou, pelo contrário, um ambiente virtual “simulado”, desenvolvido por estas Inteligências Artificiais (“singularidades”). Tal qual como os jogos e simuladores já existentes.

Se estamos mesmo, ou não, vivendo em um mundo virtual de “realidade simulada” é difícil saber. Porém, analisando os recentes acontecimentos ocorridos na área jurídica, parece razoável afirmar (metaforicamente) que, pelo menos no “mundo jurídico”, estamos sem dúvida imersos em uma “realidade simulada”, cuja MATRIX seria o Supremo Tribunal Federal (STF).

Isto porque, a respeitada Corte / STF, vem reiteradamente reescrevendo / reinterpretando a Constituição Federal e demais leis sub-constitucionais, de uma maneira tal que, mais se assemelha a um desenvolvedor de programas de informática, escrevendo as linhas de um programa computacional.

Mudam-se as regras com um simples toque na tecla “delete”, e as “anomalias” que se insurgem contra estas constantes modificações na aplicação das normas regradoras da matéria, não raro são rotuladas de estarem praticando atos antidemocráticos.

São várias as situações que se encaixam neste contexto, como os contornos que o STF vem dando ao denominado “foro privilegiado”, ou a criação de leis penais com base em interpretações / analogias (como os crimes de homofobia). Mas abaixo são indicados dois casos recentes emblemáticos, em relação aos quais as “linhas do programa” estão sendo reescritas para ser executado nesta “realidade simulada”.

1) Como noticiado, no dia 16/02/2021, um Deputado Federal foi preso por ordem expedida da Suprema Corte, em razão de comentários ofensivos que teria feito contra a própria Suprema Corte (STF). Primeiramente, fique registrado que não concordamos com a maneira pela qual este Parlamentar manifestou suas opiniões sobre o STF. Todavia, a argumentação jurídica empregada para fundamentar esta ordem de prisão merece cuidadosa análise (são inúmeros os aspectos controversos, mas que não serão endereçados aqui). Isto porque, certo ou errado, o fato é que a Constituição Federal estabelece várias restrições a decretação da prisão de um Parlamentar Federal. Prestigiando, assim, as liberdades democráticas expressadas na escolha popular deste agente político, conforme se infere da leitura do seu art. 53, na parte que interesse a este contexto:

“Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos...”

E, apesar de a CF, art. 53, caput, estabelecer a intitulada “imunidade contra os delitos de opinião”, assim referenciada por prever que o parlamentar não pode ser responsabilizado criminalmente pelo conteúdo de seus pronunciamentos (posto que inerente a atividade política legislativa), o STF acabou por limitar esta “imunidade”, estabelecendo que esta sorte de “escudo” contra a responsabilização criminal não se estende aos pronunciamentos ofensivos que forem proferidos. Noutras palavras, o STF condicionou esta “imunidade”, que não mais prevalece tal qual definida no Texto Constitucional. Como se verifica do recente julgado de 2020, abaixo transcrito:

“...o fato de o parlamentar estar na Casa legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, nos casos em que as ofensas são divulgadas pelo próprio parlamentar na Internet. (...) a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. (...) O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para o livre mercado de ofensas. A liberdade de expressão política dos parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade. Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação .

[ PET 7.174 , rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, Informativo 969 .]”

2) Na denominada Operação Spoofing, deflagrada pela Polícia Federal para apurar o crime de invasão de celulares de autoridades (várias delas atuantes na denominada Força Tarefa da “Lava Jato”), foram apreendidas mensagens que, ao que consta, teriam sido trocadas por essas autoridades fazendo uso do aplicativo “TELEGRAM”, e que teriam vazado para a imprensa, no que ficou conhecido como “Vaza Jato”.

Pois bem, estas mensagens (se acaso forem verdadeiras, e se não tiverem sido alvo de posterior adulteração e reedição pelo criminoso que as teria obtido), são consideradas provas ilícitas / ilegítimas (originárias / derivadas). E, nesta condição, não poderiam ser utilizadas para fins outros, senão os de prova contra os próprios responsáveis pela invasão destes telefones celulares. Ou seja, somente poderiam ser utilizadas como prova de que houve a invasão e obtenção ilegal (sem ordem judicial) destas mensagens. Para mais nenhuma outra finalidade processual / penal poderia ser empregada. A Constituição Federal (artigo 5º, LVI) e o Código de Processo Penal (art. 157) são expressos a este respeito.

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Aliás, o próprio STF consolidou seu entendimento sobre este tema, como se verifica do precedente abaixo:

“Ilicitude da prova. Inadmissibilidade de sua produção em juízo (ou perante qualquer instância de poder)... A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual)...Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária. A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do due process of law e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal...”. Precedentes do STF (RHC 90.376/RJ, rel. min. Celso de Mello, v.g.)...

Vide HC 91.867 , rel. min. Gilmar Mendes, j. 24-4-2012, 2ª T, DJE de 20-9-2012

Mesmo assim, o STF (por maioria de votos da Segunda Turma), franqueou o acesso destas mensagens ilegais para que réus na operação “Lava Jato” (AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 43.007 DISTRITO FEDERAL) possam potencializar suas defesas. E está, inclusive, sinalizando para o uso destas mensagens ilegais para declarar eventual anulação de condenações proferidas na “Lava Jato”, e a suposta responsabilização penal dos agentes públicos que teriam mantido esses diálogos.

É bem verdade que o STF tem autorizado, em certas situações, o uso de provas que, em regra, seriam ilícitas, mas tão e somente para a defesa. Como a gravação de conversa telefônica por um dos interlocutores mesmo sem ordem judicial (o que se diferencia de interceptação telefônica, e de violação da privacidade pelo vasculhamento de dados armazenados nestes aparelhos telefônicos - AI 578.858 AgR , RE 630.944 AgR , RE 453.562 AgR). Mas, mesmo em tais cenários, jamais se tratou de fatos tão graves como a invasão de dados de autoridades estatais.

Enfim, neste mundo jurídico virtual de “realidade simulada”, não apenas o passado é incerto, mas o futuro também é completamente aleatório. Ficando na dependência das “linhas dos programas” que estão sendo constantemente escritos e reescritos.

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Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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