O holocausto brasileiro.

Controle biopolítico e demais mecanismos de limpeza social como fatores determinantes para o genocídio no Hospital Psiquiátrico de Barbacena (MG)

28/02/2021 às 22:43

Resumo:


  • O Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, foi cenário de um dos maiores casos de violações de direitos humanos no Brasil, com a morte de mais de 60.000 pacientes no século XX, em um contexto de práticas desumanas e eugênicas.

  • A instituição funcionava como um depósito de indivíduos considerados indesejáveis pela sociedade, como alcoólatras, homossexuais, prostitutas e negros, onde eram submetidos a tratamentos cruéis, trabalhos forçados e condições deploráveis, muitas vezes resultando em morte.

  • O genocídio ocorrido no Hospital Colônia reflete a influência de teorias eugênicas e de controle biopolítico, que justificavam a segregação e extermínio de pessoas com base em critérios discriminatórios, sob a égide do Estado e com a omissão da sociedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente trabalho tem como objetivo compreender os fatores que levaram ao acometimento de práticas tão cruéis, como a tortura e assassinato de milhares de inocentes, no maior hospital psiquiátrico de nosso País, o Hospital Colônia de Barbacena-MG.

INTRODUÇÃO

Ao longo de toda a história, as práticas de extermínio contra grupos de pessoas determinadas estiveram presentes. Contudo, tais processos nem sempre se encontram vinculados à guerra, ocorrendo essa materialização também em períodos de paz, o que torna ainda mais execrável a configuração do genocídio. No ordenamento jurídico brasileiro encontram-se vários dispositivos que versam sobre a repreensão à prática do crime de genocídio, tanto no âmbito constitucional, quanto no infraconstitucional.

Nota-se que a nossa Carta Magna de 1988, em seu art. 3º, inciso IV, reprime as práticas de nazismo, em respeito à dignidade da pessoa humana e ao princípio constitucional de igualdade de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Estabelecendo, assim, a promoção do bem comum de forma equitativa, independente de etnia ou raça. Já no tocante à norma infraconstitucional, ressalva-se os dispositivos da Lei nº 2.889 de 01 de outubro de 1956, que define e pune esse tipo Penal, o parágrafo único da Lei nº 8.072/1990, que atribui um caráter hediondo a esse tipo penal, bem como o art. 208 do Código Penal Militar.

Dessa forma, trata-se de um crime contra a humanidade e a ordem internacional, que tem por intento acabar com uma raça, uma etnia, um grupo religioso, entre outros. Em relação à prática do crime de genocídio no Brasil, embora não se encontre muito respaldo na historiografia como tal, pode-se citar como exemplo, no início do Século XX, o extermínio dos mais de 60.000 mil pacientes internados no chamado Hospital Colônia de Barbacena, localizado em Minas Gerais, cenário de uma das maiores atrocidades perpetradas contra determinado grupo ocorridas no Brasil.

Nesse sentido, quanto aos métodos de seleção de pessoas para o ingresso no hospital, pode-se dizer que grande parcela dos indivíduos que adentravam na instituição não possuíam diagnóstico de doenças psicológicas, apenas eram considerados indesejáveis, por algum motivo aparente, pela sociedade, tais como: alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas que perdiam a virgindade antes do casamento, negros, mendigos, entre outros. Cumpre destacar que, durante aquele século, as inserções nos estabelecimentos manicomiais tinham como finalidade principal a exclusão, e eram realizadas de modo aleatório, destinando-se a qualquer indivíduo que não se enquadrava, de alguma forma, aos padrões impostos pela sociedade na época, e, principalmente, aos tidos como loucos, tunantes e mendigos.

Assim, havia um verdadeiro distanciamento da finalidade hodierna de recuperação e ressocialização das medidas de segurança, ao passo que havia uma necessidade de segregação dos indivíduos considerados incorrigíveis. Portanto, o ingresso ao Hospital era determinado por uma degradação moral e exclusão social, com o fito de manter os indesejados longe do convívio com a sociedade e, uma vez inseridos nesse meio, os pacientes submetiam-se também a um mecanismo de desumanização e descaracterização de corpos, sendo reduzidos a condições deploráveis, entregues ao esquecimento, barbárie e violência, que, na grande maioria das vezes, tinham como resultado a morte.

Partindo de uma análise jurídico-social, depara-se com o questionamento acerca dos reais motivos que levaram práticas tão cruéis a serem estabelecidas no dito Hospital Psiquiátrico. E com fundamento no pensamento do Filósofo Michel Foucault, considera-se o controle biopolítico e diversos mecanismos de controle social utilizados na época, em sua articulação com as Teorias Eugenistas, como sustentáculo do ocorrido, na qual Estado usa exatamente dessas ferramentas sociais como meio para legitimar a dizimação de cidadãos considerados indesejados pela sociedade. A realização desse trabalho justifica-se na necessidade de compreender os fatores que levaram à tortura e assassinato de milhares de inocentes nessa instituição, bem como, na importância do entendimento acerca da cultura que o corpo carrega e as consequências de sua desumanização, de forma a traçar um paralelo desta com a biopolítica e com o pensamento eugênico-higienista. Por fim, cumpriu-se demonstrar um apanhado sobre os métodos de seleção de pessoas e aplicação dos institutos de medidas de segurança, que resultaram no ingresso dos indivíduos no Hospital Colônia. A partir dessa compreensão, tornou-se possível contribuir para um melhor desenvolvimento de uma visão jurídica, social e filosófica, ao analisar as práticas que envolveram esse Holocausto do século XX, fatos que, para muitos, são até hoje desconhecidos. Quanto à metodologia, a presente pesquisa pode ser classificada como bibliográfica. Isto porque se trata de uma revisão sistemática da literatura disponível relativa ao tema, tendo como principais fontes de informação livros, artigos de internet, sites, teses, dissertações, monografias, entre outros referentes ao assunto. Quanto ao método optou-se pelo dedutivo. Na medida em que se tem como análise uma verdade geral, para que se possa identificar nesta, uma verdade particular implícita. No que diz respeito à abordagem utilizada, preferiu-se pelo estudo qualitativo, por se tratar de uma abordagem mais flexível para compreensão do tema, que permitiu ir ao fundo do significado e de estar na perspectiva do sujeito, abrindo assim margem para a interpretação. Enquanto procedimento, esse trabalho fora realizado por meio de observação indireta, na medida em que se consistiu no levantamento de todos os dados possíveis sobre o assunto a ser pesquisado, por intermédio de fontes secundárias. 1 GENOCÍDIO 1.1 Contexto histórico do crime de Genocídio. A importância da evolução do tipo penal de genocídio no plano do Direito Penal Internacional é notória, visto que, representa grande passo da comunidade Internacional na Proteção dos Direitos Humanos, representando verdadeiro alicerce na construção de uma justiça penal Internacional. De acordo com Chiganer (2006, p.247): Desde os primórdios da humanidade tem sido comum o massacre de povos inteiros, motivados por ódios nacionais, religiosos, raciais e políticos, pela busca da dominação e pela vingança. Como exemplo, pode-se citar a sentença do Senado romano, que condenou a cidade de Cartago e todo a sua população à destruição em 146 a.C. ou a destruição de Jerusalém por Tito, em 72 d.C. Dessa forma pode-se perceber que, as práticas consideradas hoje genocidas, surgiram inerentes a própria condição humana, assentadas na ideia de extermínio de grupos diferentes que predominavam na antiguidade. Nesse mesmo sentido que Fernandes (2006, p. 247), considera que a prática do genocídio “sempre aconteceu ao redor do mundo, em todos os períodos da história, e está intimamente ligada a intolerância contra a diversidade humana”. Assim sendo, à medida que a sociedade evoluiu, tornou-se também ainda mais diversificada, dando margem ao crescimento desses atos de atrocidades por todo o mundo. Em relação à reiteração da prática desse crime ao logo da história, torna-se interessante fazer menção, que no Oriente antigo era comum que as tribos vencidas fossem dizimadas, já no Ocidente a Bíblia narra, em diversos trechos, casos de genocídios. E ainda, na Idade Média, que essas práticas estiveram sempre presentes nas Cruzadas (SAVAZZONI, 2015). Inicialmente, essas condutas foram limitadamente entendidas como espécie dos crimes contra a humanidade, pelo fato de possuírem em comum determinadas características. Podem-se identificar três elementos similares presentes nessas espécies normativas, que segundo Cassece e outros (2002 citados por DISSENHA; FREITAS, 2015, p.103): (i) Envolvem atos que chocam nosso “senso de humanidade” e atacam os “aspectos mais fundamentais da dignidade humana”; (ii) Não se produzem de forma isolada, mas dentro de contextos maiores; e (iii) Embora não seja requisito que sejam cometidos por órgãos oficiais, esses crimes normalmente são praticados com “cumplicidade, conivência ou, ao menos, tolerância das autoridades”. Entretanto, apesar de tais semelhanças, com o tempo foi-se necessário delimitar cada conduta, já que ambos os crimes se diferem na sua abrangência e finalidade. Assim sendo: O crime de genocídio não se confunde com o crime contra a humanidade. O primeiro é espécie do último, e o que os difere é dolo, a intenção de exterminar um grupo por razões raciais, culturais, políticas, religiosas ou ideológicas; portanto, o que configura o crime de genocídio é o propósito da eliminação racial, por exemplo. (SHIBUYA, 2015, p.20) Dessa forma pode-se dizer que o crime contra a humanidade é gênero, no qual o genocídio é espécie, porém não se limita apenas a esta definição. A respeito daquele, conforme Gonçalves (2004, p.101), classifica-se como: (...) o assassinato, o extermínio, a escravização, a deportação e qualquer outro ato inumano cometido contra quaisquer populações civis, antes ou durante a guerra; ou ainda as perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos. De tal modo, são práticas que possuem um caráter genérico, uma vez que são perpetradas contra todos os seres humanos, de maneira direta ou indireta, relacionando-se, assim, com a definição de raça humana. Posteriormente, no Século XX, Savazzoni (2009, online), enuncia que: (...) as práticas genocidas continuaram a acontecer. Apesar de todo o avanço da civilização humana, foi o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala e na extensão, caracterizando o genocídio sistemático. Como exemplo, podemos citar o massacre dos armênios pelos turcos, os crimes praticados por Hitler contra os judeus, os expurgos stalinistas na URSS, os vitimados pela guerra de Biafra na Nigéria, etc. Notadamente, diante do grande número de acontecimentos ligados ao genocídio, surge uma necessidade, reconhecida pelo plano internacional, da caracterização dessas práticas, na busca de impedir que novas atrocidades acontecessem, e por uma eventual responsabilização dos seus agentes. A primeira tentativa de proteção aos valores humanos no âmbito penal internacional surgiu com o Tribunal Militar de Nurembergue ou Tribunal Militar. Como bem pontua Chiganer (2005, p.03): Com o término da Guerra, a derrota do nazismo e após longas discussões sobre a necessidade de um julgamento dos principais responsáveis pelas atrocidades cometidas, as potências vencedoras celebraram um acordo que estabelecia as regras que iriam orientar o processo e julgamento dos grandes criminosos de guerra. Esse acordo se deu na Conferência de Londres. Deste modo, o Tribunal tinha a competência para julgar os crimes previstos no art. 6º do Acordo de Londres, quais sejam: os crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Apesar da sua importância, sobre o Tribunal Militar de Nurembergue, Piovesan (2011, p. 69-70) assinala que: (...) ainda que muita polêmica tenha surgido em torno da alegação de afronta ao princípio da anterioridade da lei penal, sob o argumento de que os atos punidos pelo Tribunal de Nuremberg não eram considerados crimes no momento em que foram cometidos. A essa crítica, outras se acrescentam, como as relativas ao alto grau de politicidade do Tribunal de Nuremberg (em que ‘vencedores’ estariam julgando ‘vencidos’); ao fato de ser um Tribunal precário e de exceção (criado post facto para julgar crimes específicos); e às sanções por ele impostas (como a pena de morte). Cumpre ressaltar que este tribunal, mesmo diante de inúmeras críticas, apresentou vários pontos positivos, uma vez que efetivou a posição do indivíduo como sujeito de direito no plano internacional. Além disso, até sua criação, os conflitos internacionais eram regulados de acordo com a guerra e a política, visto que, “a paz sempre foi encarada como período entre duas guerras” (GONÇALVEZ, 2004, p.14). Sendo assim, pode-se reconhecer a importância da instituição desse Tribunal, para formação de um pensamento internacional mais justo, que busca uma solução eficaz para resolução dos litígios. De tal modo, Mello (2002, p.815), assevera que: Em resposta às críticas tecidas ao Tribunal de Nuremberg, principalmente quanto à reserva legal, foi criada a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio, em 1948, que define o crime de genocídio como um crime internacional, podendo ser praticado em tempo de guerra ou paz. Portanto, até o Direito Internacional determinar de forma efetiva uma caracterização do tipo penal do genocídio por meio dessa Convenção, os agentes de tais condutas ficavam impunes, pois não existia nenhuma forma de proteção realmente efetiva ao indivíduo em nível internacional, predominando uma omissão dupla, tanto por parte do Estado, como também pela jurisdição Universal. Essa Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 11 de abril de 1951, que tipificou o genocídio como crime, através de um documento que produziu força jurídica entre todos os Estados signatários (LARA e KAHWAGE, 2015, p. 50). Desse modo, ao ratificarem o tratado, os países signatários aderiam à sua legislação o conceito de genocídio, bem como reconheciam a sua criminalização, permitindo assim a responsabilização dos agentes que praticavam esse delito. Sendo aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (1948), o art. 2º da Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Genocídio, enuncia que: (...) entende-se por genocídio os atos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro. Essa definição fora de suma importância, na medida em que individualizou o crime de genocídio, diferenciando-o dos crimes de guerra e daqueles contra a humanidade. Ao tratar dos efeitos gerados com essa Convenção, conforme Mello (1978, p. 27): Podemos concluir que a Convenção não cumpre seu propósito de maneira efetiva, pois não protege os grupos políticos e culturais e não estabelece uma jurisdição imparcial para julgar estes crimes. Além disso, vários Estados que ratificaram a Convenção o fizeram com reservas, o que torna seus efeitos quase nulos. Destarte, ao analisar o artigo supracitado, verifica-se uma necessidade de ampliação desse conceito, visto que os direitos que estariam sendo protegidos eram apenas dos grupos nacionais, éticos, raciais e religiosos, não abrangendo grupos políticos, nem mesmo aqueles individualizados, como grupos formados por doentes mentais, homoafetivos, mendigos, em regra, ligados ao gênero, cultura ou meio social. Diante disso, “surgiu a necessidade de se criarem bases mais concretas para o direito penal internacional, assim como uma jurisdição penal internacional permanente” (CHIGANER, 2016, p.9). Em consequência disso, e pela busca de uma justiça internacional mais efetiva se constitui o Tribunal Penal Internacional, que consoante Savazzoni (2009, online): (...) surgiu com a aprovação, em 17 de julho de 1998, do Estatuto para a Corte Internacional Criminal (Tratado de Roma) na “Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas sobre o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional”. O Tratado de Roma, que previu a criação deste Tribunal, estando vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), e acompanhando a evolução do direito internacional, também define o crime de genocídio em seu artigo 6º. Deste modo, Mazzuoli (2012, p. 858) pontua que: A Consagração do crime de genocídio, pelo Estatuto de Roma, é bom que se frise, se deu a exatos 50 anos da proclamação, pelas Nações Unidas, da Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Trata-se, portanto, de um dos maiores e a mais importantes presentes, já entregues a humanidade, pelo cinquentenário da Convenção de 1948. Consequentemente, constata-se que a criação do Tribunal estabelece um grande progresso no Direito Internacional, frente à proteção dos direitos humanos e do direito humanitário, bem como na efetivação do combate aos crimes contra a ordem internacional, como as práticas genocidas. No Brasil o pacto fora assinado em 12 de fevereiro de 2000, ratificando-o em 12 de junho de 2002, depois de aprovado pelo Congresso Nacional, tornando-se o 69º Estado a reconhecer a jurisdição do TPI, ultrapassando o número de adesões exigido para sua entrada em vigor. Na visão de Cardoso (2012, p. 39): A ideia de criar o TPI – instância judicial permanente, independente, com jurisdição sobre pessoas pelos crimes mais graves de transcendência internacional, e complementar às jurisdições penais nacionais – ganhou contornos definidos na medida em que a maioria dos países se convenceu da importância de contar com instituição que pudesse ser acionada a qualquer momento para examinar casos de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão. Tal Tribunal, sendo estabelecido pelo Tratado de Roma, com sede em Haia na Holanda, consolidou-se como uma organização permanente do Direito Internacional, dotada de personalidade jurídica e com competência para julgar crimes com maior teor de gravidade, perpetrados por chefes de Estado, quais sejam: o Crime de Genocídio, o Crime contra a Humanidade, o Crime de Guerra e o Crime de Agressão. Pode-se ressaltar ainda que a atuação deste encontra-se pautada em torno de vários princípios fundamentais, tendo maior importância os princípios da complementariedade e o da universalidade. Sobre o primeiro, como bem descreve ilustríssimo jurista Ministro Enrique Ricardo Lewandowski (2002, p.192), in verbis: “a Corte somente atua se o Estado que tem jurisdição sobre determinado caso não iniciou o devido processo ou, se o fez, agiu com o intuito de subtrair o acusado à justiça ou de mitigar-lhe a sanção”. Dessa ideia assevera-se que a instância internacional só irá intervir frente à omissão do Estado, quando este não pode ou não quer atuar, ou ainda quando atua com aparente desvio de finalidade. Destacando que a autoridade dessa instituição internacional ainda dependerá do compromisso entre os Estados membros, que deverá pautar-se na colaboração mútua. No que tange ao princípio da universalidade, o mesmo autor afirma ser aquele “pelo qual os Estados-partes colocam-se integralmente sob a jurisdição da Corte, não podendo subtrair de sua apreciação determinados casos ou situações” (LEWANDOWISKI, 2002, p.192). Assim sendo, por meio de tal princípio observa-se a submissão de todos os Estados-partes à Jurisdição Internacional, onde não há a possibilidade daqueles furtarem da apreciação da Corte casos ou circunstâncias específicas. Uma concretização dessa universalidade é o fato do Estatuto de Roma vedar expressamente reservas feitas pelos Estados a determinados pontos do tratado. Deste modo, ou Estado ratifica o texto na íntegra ou não ratifica nada, nos termos do artigo 120 do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Diante disso, com esteio nos artigos 13 a 15 e 53 a 61 do Estatuto de Roma, compreende-se que os Estados aderentes, bem como os seus nacionais e os que se encontram sob seus territórios, sujeitam-se à jurisdição do Tribunal. Além daqueles que mesmo não ratificando o tratado, por alguma situação de superveniência submetem-se a Corte. Sobre a mecânica processual do TPI, Enrique Ricardo ainda menciona que: O procedimento acusatório pode iniciar-se por uma representação à Promotoria, subscrita por algum Estado-parte ou pelo Conselho de Segurança da ONU, ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, ou ainda por uma investigação aberta pelo próprio Parquet. Ressalva-se que esse procedimento só tem início com a deliberação da chamada Seção de Questões Preliminares, realizada na fase de Instrução, que fará um Juízo de admissibilidade, apurando se há ou não indícios suficientes de culpabilidade para prosseguir com a acusação. Podendo inclusive, em situações excepcionais, decretar prisão preventiva nos casos elencados no art. 81 do Estatuto. “Essa prisão será executada pelos Estados-partes ou por terceiros, mediante os instrumentos de cooperação internacional” (LEWANDOWISKI, 2002, p.194). Em consonância com o art. 77 do Estatuto, as penas aplicáveis aos condenados pelas práticas dos crimes que afetam a comunidade internacional, como o de genocídio, podem ser: 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem, 2. Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar: a) Uma multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual; b) A perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé (BRASIL, 2002). A corte poderá ainda fixar eventual reparação às vítimas, sob a forma de reabilitação ou indenização, podendo ser paga pelo próprio réu ou por um fundo fiduciário, criado especialmente com esse fito, composto por bens confiscados e por contribuições por parte dos Estados-partes. Consequentemente, a função do Tribunal Penal Internacional para a sociedade mundial é de extrema importância, visto que é o instrumento capaz de punir os responsáveis por práticas bárbaras generalizadas, em relação aos quais não se admite esquecimento. 1.2 Conceito de Genocídio O termo genocídio decorre dos vocábulos genos (do grego), que significa nação, raça, ou tribo, e cide (do latim), que significa matar. Thomas W. Simon (1996-1997 citado por LARA; KAHWAGE, 2015, p.48) menciona que: Raphael Lemkin teria sido o primeiro a cunhar o termo em 1944, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, e desde então o Holocausto tem sido o caso paradigmático de genocídio. (2015, p. 48) Assim, pode-se dizer que a ideia inicial conferida ao termo genocídio foi proposta por Lemkin, em decorrência dos crimes cometidos pelo Estado Nazista contra os Judeus, ciganos, comunistas e homossexuais. Nesse sentido, Goraieb, ao citar Raphael Lemkin, estabeleceu a seguinte conceituação: O genocídio é um estado de criminalidade sistemático e se realiza em duas fases: a primeira consiste na destruição do modelo nacional do grupo oprimido e a segunda, na imposição de um modelo nacional de opressor sobre a população oprimida que ficou no território. (2012, p.218) Tal conceito desencadeou, após a Segunda Guerra Mundial, a criação de leis internacionais, que definissem e punissem o genocídio. Em consequência, no ano de 1946, a Assembleia Geral da ONU declara oficialmente o genocídio como um crime do Direito Internacional, e posteriormente, adota a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Nesse contexto, aponta-se que: (...) a destruição étnica apavorou a humanidade. Não é por acaso que o genocídio foi uma das principais preocupações após a Segunda Guerra Mundial, sendo tal animus convertido em instrumento internacional em 9 de dezembro de 1948: ‘Convenção para a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio. (JARDIM, 2000, p. 20) Sendo assim, essa Convenção pode ser considerada o alicerce principal para o direito penal atribuir tratamento específico à infração em comento. Essa definição de genocídio fora adotada por muitos países, incluindo o Brasil, e ainda pelo Estatuto do Tribunal. Conforme Mello (2002, p. 930): “o genocídio pode ser definido genericamente como aquele crime perpetrado com a intenção de destruir grupos étnicos, sociais, religiosos ou nacionais”. Portanto, essa prática pode ser descrita como um conjunto de ações, e não por uma conduta individualizada, com a finalidade principal de privação da vida humana. No entendimento de Japiassú (2004, p. 232-233): O genocídio é um crime que exige sempre o dolo específico, por entender que não basta a intenção de matar, devendo também estar presente o propósito de aniquilar, total ou parcialmente o grupo. Se a ação de matar não for praticada com a intenção de exterminar, existirá o homicídio e não será caracterizado o genocídio. Deste modo, tem-se como caracterizadores do crime, o elemento subjetivo, que é a intenção do agente de praticar e produzir o resultado, e ainda uma finalidade específica, de que o ato seja praticado contra indivíduo pertencente a determinado grupo. Em sentido mais abrangente pode-se dizer que “qualquer definição de genocídio deve deixar em aberto a possibilidade de examinar não somente o que acontece ao grupo como um todo, mas também aos indivíduos vítimas de genocídio dentro do grupo” (VITO; GILL; SHORT, 2009, p. 34). Assim, a configuração deste crime deverá ser analisada de acordo com o caso em concreto, englobando, portanto, práticas que não estariam necessariamente previstas no tipo penal, como os delitos individuais por excelência a título de exemplo. Lara e Kahwage (2015, p. 49-50), ainda mencionam que: (...) o termo genocídio tem sido utilizado em inúmeras situações na atualidade, como à morte de milhões de congoleses na África, ou para se referir à morte de pessoas negras no Brasil, ou ainda para caracterizar o falecimento de milhares de pessoas portadoras de deficiência mental nos manicômios brasileiros até a década de 1980. Nesse contexto, analisando as mais de 60 mil mortes e demais particularidades, decorrentes das práticas ocorridas no Hospital Psiquiátrico de Barbacena – MG, durante o século XX, resta verificada a configuração do crime de genocídio. Ademais, cabe ressaltar que: O genocídio pode ser considerado o pior crime que a humanidade já vivenciou e possui em sua história, pois, geralmente, enquanto os crimes possuem o dolo único que atinge em regra determinado bem jurídico, o genocídio possui dolo múltiplo e a intenção do agente é a de atingir todos os bens jurídicos referentes àquele grupo, a partir não de um único ato, mas de um estado de criminalidade que pode se perpetuar por anos. (SHIBUYA, 2015, p. 20) Portanto, essa conduta caracteriza um horrendo atentado à ordem internacional, visto que tem o fito de eliminar a diversidade e a pluralidade do gênero humano. Observado isso, passa-se a analisar os principais aspectos que delineiam essa conduta criminosa no âmbito do direito brasileiro. 1.3 O Genocídio no Direito Brasileiro. De acordo com Jordace (2012, p.04): A primeira legislação prevendo o genocídio como crime foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 2 de 11 de abril de 1951. Sua ratificação ocorreu em 15 de abril de 1952. Entrou em vigor somente em 14 de julho de 1952. Já sua promulgação ocorrera com o Decreto nº 30.822 de 06 de maio de 1952. Hodiernamente, no plano nacional observam-se normas que versem sobre esse crime tanto na legislação constitucional, como na infraconstitucional. A Carta Magna de 1988 demonstra em vários de seus dispositivos uma preocupação com seus princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (art.1º, III), a cidadania (art.10, II) e o pluralismo político (art. 1, V). A seguir, em seu art. 3º, IV, veda qualquer preconceito de origem racial ou relativo a sexo, idade, cor e outras formas de discriminação, e, finalmente, em seu art. 4º, II e IX, menciona a prevalência dos direitos humanos e a cooperação entre os povos como princípios fundamentais do Brasil em suas relações internacionais (CHIGANER, 2005). Diante disso, ao priorizar esses princípios, a Constituição, subsidiariamente, resguarda também os indivíduos que podem ser vítimas do crime de genocídio, já que essa prática poderá representar uma violação direta a essas normas. No âmbito infraconstitucional, a Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, que revoga todas as disposições contrárias no nosso território, define e pune as práticas enquadradas nesse tipo, constando no seu art. 1º a seguinte redação: Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; (BRASIL, 1956). Verifica-se que estão previstas cinco modalidades desse crime, todas com a mesma finalidade, que seja a de exterminar um grupo no todo ou em parte. O art. 1º da Lei n. 8.072/1990, que trata dos Crimes Hediondos, em seu parágrafo único, enuncia que: “Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n.2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado” (BRASIL, 1990). Constata-se ainda a previsão desse crime no art. 208 do Código Penal Militar, onde também é elucidado como crime hediondo, qual seja: “Art.208. Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente à determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo” (BRASIL, 1969). Apesar de existirem no nosso ordenamento previsões normativas que punem crimes dessa natureza, tais práticas continuam acontecendo, e por muitas vezes de maneira silenciosa, frente à omissão das autoridades públicas e até mesmo da própria sociedade, como no caso do ocorrido no Hospital Colônia. 2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO HOLOCAUSTO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DE BARBACENA-MG. No nosso país, a assistência aos portadores de doenças mentais se manteve, por muito tempo, limitada aos hospícios e manicômios. Isso porque acreditavam que essas internações eram necessárias para cura dos sintomas que os indivíduos apresentavam. “Muitos desses sujeitos eram considerados um risco à sociedade, ou seja, precisavam ser isolados” (OLIVEIRA, 2014, p. 6). A mesma autora ainda aponta: Sobre a assistência psiquiátrica no Brasil, já no final da década de 50 era crítica a situação nos hospitais psiquiátricos: falta de profissionais qualificados, superlotação, péssimas condições físicas do espaço; o básico não estava garantido. Foi principalmente a partir do golpe militar de 1964 até os anos 70, que as clínicas psiquiátricas privadas cresceram significativamente, pois as mesmas, conveniadas com o poder público, começaram a obter lucros de maneira fácil e rápida. A chamada “indústria da loucura” começou a criar alicerces e os problemas sociais passaram a ser “psiquiatrizados”. (OLIVEIRA, 2014, p. 9) Essa realidade e modelo assistencial brasileiro são perfeitamente caracterizados pela história do maior hospital psiquiátrico brasileiro. O Hospital Colônia, localizado na cidade de Barbacena em Minas Gerais, palco de uma das maiores atrocidades contra a humanidade ocorridas no Brasil, é conhecido por muitos como um verdadeiro Holocausto, visto as constantes violações, mutilações e mortes de milhares de internos. Ao atribuir o acontecido nesse hospital como um Holocausto, faz-se mister identificar a origem e significado do termo. Deste modo, de acordo Lima (2005, p.03): A palavra holocausto [gr. Holókauston], originalmente, significava o "sacrifício em que a vítima – um animal - era queimada inteira", tendo assim um sentido de imolação ou expiação. No período nazista, entre 1935 e 1945, os judeus se viram diante de um novo holocausto. Assim, a palavra Holocausto, vem do grego, onde Holos significa “todo” e kaustos pode ser entendido como “queimado”. Originalmente se referia a um tipo de sacrifício onde animais eram totalmente queimados pelo fogo. No entanto, o termo ganha um novo sentido, com a Segunda Guerra Mundial, e passa a designar um assassinato em massa, tendo seu uso ligado ao genocídio de seis milhões de judeus, realizado pelo regime nazista na Alemanha. Nesse sentido, em geral, pode parecer exagero a aplicação dessa palavra quando não atribuído a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas, porém, não há como denotar qualificação diferente ao deparar-se com as práticas abusivas aplicadas aos internos, e com o genocídio de mais de 60 mil indivíduos dentro do hospital (ARBEX, 2013, p.13). Sendo assim, o emprego da expressão holocausto brasileiro ao ocorrido, descreve bem o caráter do projeto ideológico que fundamentava o que ocorria no local. Aud (2012, p.15), ao mencionar a obra de Savassi, esclarece que: “o Hospital-Colônia, chamado de “Assistência a Alienados”, foi criado com base na Lei de 16 de agosto de 1900, e instalou-se em 12 de outubro de 1903”. Nessa mesma perspectiva, quanto aos Hospitais psiquiátricos constituídos a essa época: O tratamento no manicômio, de acordo com Pinel deveria ser de reeducação do alienado, implicando respeito às normas e desencorajamento das condutas inconvenientes. A função disciplinadora do manicômio e do médico deve ser exercida como um perfeito equilíbrio entre firmeza e gentileza (LOPES, 2001, p. 03). Porém, com o decorrer do tempo há um distanciamento dessa forma de tratamento, e a partir do ano de 1930, essa política de atendimento passa a não funcionar de maneira efetiva, sendo observada uma série de violações e desrespeitos à pessoa humana. Diante disso, a mesma autora considera que: As idéias corretivas para o comportamento dos hábitos dos doentes passaram a ser recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional, recursos estes que visavam naquele momento ao bem da instituição. Tudo era justificado para submeter o doente mental (LOPES, 2001, p. 04). Deste modo, a finalidade de reabilitação dos internos fora substituída por mecanismos de imposição, onde medidas físicas e higiênicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias eram aplicadas, assim, as atribuições como instituição pública de saúde deixaram de existir. Foi nesse cenário que no Século XX, o hospital Colônia iniciou seu funcionamento, que perdurou até meados do Século seguinte, e logo nos primeiros tempos se observa sua finalidade ser deturpada. “As cinco décadas mais dramáticas do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais dizimou, pelo menos, duas gerações de inocentes em 18.250 dias de horror” (ARBEX, 2013, p.26). Partindo desse princípio, ao se observar os métodos de tratamentos de saúde utilizados no Hospital Colônia, nota-se que o estabelecimento não oferecia condições mínimas de sobrevivência, como serviços de alimentação, de saneamento, ambulatorial, entre outros. Assim como nos campos de concentração nazistas, os indivíduos que adentravam nessa instituição, além de serem padronizados com uniformes, tinham suas cabeças raspadas, e roupas arrancadas, perdiam suas identidades e nomes ao serem rebatizadas pelos funcionários do hospital, começavam e terminavam ali, diante de um completo esquecimento (ARBEX, 2013). Com finalidade mascarada de reabilitação psiquiátrica, o hospital passou a ser a estada de indivíduos à mercê do contexto social da época, como negros, mães solteiras, homossexuais e pessoas com algum tipo de deficiência. Em determinados casos, os pacientes permaneciam no manicômio apenas como medida de punição. Diante disso, fica demonstrado que o escopo principal do Estado era “Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar” (ARBEX, 2013, p. 26). Dessa forma, caracteriza-se a ideia do Estado de higienizar a sociedade, preconizada pela chamada Teoria Eugenista, que sustentava as formas de tratamento do hospital. No que diz respeito à inserção dos pacientes, a mesma autora menciona que: Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão “trem de doido” surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época, marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno. (ARBEX, 2013, p. 27) Assim, a forma principal de ingresso na instituição se dava por meio dos chamados “trens de doido”, além destes, muitos indivíduos também eram conduzidos ao hospital por ônibus ou viaturas policiais, este último quando as internações eram requisitadas por algum delegado de polícia. Além de um processo de seleção de caráter extremamente discriminatório, Daniela Arbex (2013, p. 27), ainda menciona as condições a que esses internos eram submetidos, ressaltando que: Em 1930, com a superlotação da unidade, uma história de extermínio começou a ser desenhada. Trinta anos depois, existiam 5 mil pacientes em lugar projetado inicialmente para 200. A substituição de camas por capim foi, então, oficialmente sugerida, pelo chefe do Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais, José Consenso Filho, como alternativa para o excesso de gente. A intenção era clara: economizar espaço nos pavilhões para caber mais e mais infelizes. O modelo do leito chão deu tão certo, que foi recomendado pelo Poder Público para outros hospitais mineiros em 1959. Com uma superlotação, o número de pacientes não foi proporcional para os recursos disponíveis. E assim, logo o hospital passou a ser um mero depósito humano, sujeito a propagação de doenças, falta de saneamento básico adequado, falta de lugares para dormir, fome, falta de roupas, frio, falta de assistência social, entre outros. Ao adentrarem na instituição, de acordo com Oliveira: Sobre os procedimentos da internação, os recém-chegados ao Colônia eram encaminhados para o setor de triagem e separados por características físicas, idade e sexo. Todos os que chegavam à Instituição deveriam entregar seus pertences e, após este “desprendimento de seus bens pessoais”, eram obrigados a passar pela sessão de desinfecção, ou seja, tomavam um banho coletivo que, por vezes, era gelado. Após essa higienização os homens tinham seu cabelo raspado e as mulheres passavam pelo constrangimento de ficarem nuas; muitas delas se sentiam humilhadas, afinal, jamais haviam sido observadas despidas por tantas pessoas, ou seja, a dignidade foi definitivamente confiscada. Depois desses procedimentos cada paciente recebia um uniforme azul de brim, conhecido como “azulão”. Assim, padronizados, cada “indivíduo” era encaminhado para seu setor conforme a triagem estabelecia (2014, p. 11). Ainda se ressalta que a maioria desses pacientes não possuía diagnóstico de doença mental, somente eram tidos como diferentes ou considerados ameaça à ordem pública. “Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos” (ARBEX, 2013, p. 25,26). Dessa forma, é notável que durante o Século XX, tanto no que diz respeito aos métodos de inserção em hospitais psiquiátricos, como também quanto às condições de manutenção desses estabelecimentos, predominavam a falta de uma estrutura mínima de acolhimento, de critérios médicos e medicações adequadas, e ainda uma padronização de diagnósticos, onde a finalidade não era o tratamento e sim expurgar a sociedade, no sentido de afastar quem a obstruía. Segundo as Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas (os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial: A verdadeira força de sustentação exercida pelo manicômio não estava em reproduzir resultados terapêuticos, mas sim de exclusão social, de exclusão física, bem como de exclusão em relação ao universo da cidadania. Não sendo o louco um cidadão, sustentava-se todo tipo de violência contra o mesmo (CFP, 2013b, p. 55). Deste modo, o real intento do hospital não era o tratamento adequado daqueles internos, o objetivo era na verdade a exclusão do convívio social, como forma de “solução”, em curto prazo, dos que eram considerados como problemas da sociedade, e para se chegar a esse fim eram admitidos todos os tipos de atrocidades. Pode-se afirmar que “os métodos utilizados como recursos terapêuticos ao longo da história de Barbacena foram extremamente dolorosos para os pacientes, que ainda hoje guardam marcas desse período” (ORSI, 2013, p.3). Como exemplos de tais métodos destacam-se os de maiores represálias, quais sejam o uso de eletrochoques e a lobotomia, que é uma intervenção cirúrgica no cérebro para seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo, essas eram práticas recorrentes no hospital. “Fome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água. Nem todos tinham estômago para se alimentarem de bichos, mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade” (ARBEX, 2013, p. 47). Nesse sentido, a situação que era submetida a esses internos, constatava uma luta diária pela sobrevivência, já que havia guardas no lugar de enfermeiros, e o sentido de dignidade era completamente desconhecido. Essas pessoas perderam as suas autonomias, tornando-se completamente vulneráveis à situação precária que lhes afetavam. Destaca-se que os pacientes ainda eram obrigados a desempenhar várias funções para manter o capital do hospital, como o cultivo de plantações, consertos de vias públicas, confecções de roupas, limpeza de ambientes, entre outras. “Embora a escravatura já tivesse acabado há quase 30 anos, em 1916, no Colônia, os pacientes eram tratados como típicos escravos” (OLIVEIRA, 2014, p. 12). Além disso, outra prática ilegal que ocorria era a venda de cadáveres para as faculdades de Medicina da região, estima-se que mais de 1.823 corpos foram vendidos pelo hospital para dezessete faculdades de medicina do país entre 1969 e 1980. Daniela Arbex (2013, p. 76) ainda afirma que: Como a subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no hospital, onde registros da própria entidade apontam dezesseis falecimentos por dia, em média, no período de maior lotação. A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos. Esse comércio negro chegou a atingir cerca de R$ 600 mil com a venda de cadáveres. Depois de algum tempo, quando o mercado deixou de comprar tantos cadáveres, os funcionários passaram, então, a decompor os corpos dos mortos com ácido no pátio do hospital, diante dos próprios pacientes, para ser possível comercializar também as ossadas. Cumpre destacar que segundo Peron (2013, p. 261): Tudo ali foi feito sob a administração de vários governos, com a anuência de todas as instâncias médicas e administrativas (foram 10 diretores ao todo, ao longo da existência do hospital), com a presença e participação dos funcionários, com o testemunho da cidade de Barbacena. Dessa forma, uma vez dentro dos muros do hospital, os indivíduos eram submetidos a tratamentos desumanos, perdiam seus bens, seus nomes, seus vínculos, sua voz e qualquer resquício de dignidade, tudo cometido sistematicamente com o aval do Estado e da sociedade, resultando na morte de milhares de internos, para qual nunca houve punição. “Podemos dizer, portanto, que o “Centro Psiquiátrico” da cidade de Barbacena serviu muito mais para fins sociopolíticos do que propriamente à finalidade terapêutica” (OLIVEIRA, 2014, p. 13). Dessa forma é que o hospital reproduzia indiretamente as mesmas ideologias usadas para justificar o massacre dos indivíduos na Segunda Guerra Mundial. “Foram quase cinco décadas de horror e de negligência das instituições públicas. Somente a partir de 1980 a Reforma Psiquiátrica surge como um sinal de possíveis mudanças” (OLIVEIRA, 2014, p. 10). Assim, só foi possível viabilizar alguma esperança de mudança da situação quando a reforma psiquiátrica ganhou força em Minas Gerais. Atualmente, o local aonde tudo ocorreu fora transformado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), sendo mantido pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e atende um universo de 50 cidades e uma população estimada em 700 mil pessoas. Deste modo, analisando-se o caso em tela, ressalta-se que todo o ocorrido em Barbacena fora administrado pelos vários governos atuantes, entre os anos de 1903 e 1980, com a égide do Estado e demais instituições médicas e administrativas, bem como de seus dirigentes e funcionários. “O fato é que a história do Colônia é a nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil” (ARBEX, 2013, p. 255). Podem-se apontar poucas situações em que houve algum tipo de manifesto diante de tamanha omissão e descaso, a mesma autora assinala que: Em 1961, o presidente Jânio Quadros colocou o aparato governamental a serviço da instituição para reverter “o calamitoso nível de assistência dada aos enfermos”. Deputados mineiros criaram comissões para discutir a situação da unidade dez anos depois. Nenhum deles foi capaz de fazer os abusos cessarem. Dentro do hospital, apesar de ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas (ARBEX, 2013, p. 43). Além disso, destaca-se ainda a figura do psiquiatra Ronaldo Simões Coelho que foi o primeiro médico a denunciar e reivindicar a extinção do hospital, no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, realizado na sede da Associação Médica de Minas Gerais, no final da década de 1970. Outro médico que também denunciou a desumanidade de Barbacena foi Francisco Paes Barreto, e que por isso respondeu uma sindicância junto ao Conselho Regional de Medicina (CRM). Diante de tudo já apresentado, e dos mais de setenta anos sem quaisquer punições por esse genocídio, ou qualquer tentativa efetiva de responsabilização penal ou internacional dos culpados, percebe-se que o ocorrido no Hospital, sem dúvidas, merece uma apuração perante o Tribunal Penal Internacional, não somente para condenação dos responsáveis, mas também como forma de garantir, aos aproximadamente 177 pacientes sobreviventes, uma reparação pelos imensuráveis danos sofridos. Portanto, torna-se imperioso que a comunidade internacional faça prevalecer à cultura da responsabilidade em detrimento a cultura da impunidade, consolidando assim a paz, a segurança e o respeito aos direitos humanos. 3 CONTROLE BIOPOLÍTICO: A VIDA HUMANA COMO INSTRUMENTO DE GOVERNO. Partindo da direção do pensamento de Michel Foucault, especialmente nas décadas de 70 e 80, pode-se extrair a questão da biopolítica e do biopoder, e seus efeitos dentro de determinada sociedade. Conforme Miguel Ângelo (2006, p. 02): Para se chegar ao conceito de biopolítica ou biopoder, que caracteriza a sociedade disciplinar e ainda pertence à nossa atualidade social, é preciso anteceder a um outro conceito, também muito trabalhado por Foucault, e que de alguma forma se ancora como um dos dois pilares do disciplinamento do século XVIII, início do século XIX. O conceito supramencionado é o de “Poder”, quando no curso Em Defesa da Sociedade, Foucault se opõe a qualquer formulação de uma teoria do poder, propondo, entretanto, uma analítica do mesmo, para que se chegue a uma verdadeira compreensão. Ao ressaltar a importância da ideia de poder apresentada pelo filósofo, Izabel C. Friche (2008, p.11) demonstra que: Poder, para Foucault, é apenas a forma, variável e instável, do jogo de forças que definem as relações sociais em cada momento histórico concreto, e que se define através de práticas e discursos específicos. Só se pode apreender o tipo de poder em jogo em um determinado campo de práticas e discursos – local e temporalmente delimitados – através da descrição minuciosa, em detalhes, do funcionamento dessas práticas, nunca pela aplicação de uma teoria geral do poder ‘apriorística’. Assim, pode-se afirmar que são as práticas sociais que irão determinar o tipo de poder que lhes afetam. Sendo este, mero conceito, pois não existe um poder único e isolado, o que existe são múltiplas relações de poderes, que se caracterizam por suas formas díspares, heterogêneas e em constante transformação. Por isso, torna-se descabida a construção de uma teoria da soberania, que pressupõe a existência de um poder unitário e fundado em uma legitimidade transcendente, para compreensão desses institutos. Contrapondo-se a essa teoria geral Michel Foucault (2005, p. 51), propõe uma Teoria das dominações, afirmando que esta: (...) em vez de partir do sujeito (ou mesmo dos sujeitos) e desses elementos que seriam preliminares a relação e que poderíamos localizar, se trataria de partir da própria relação de poder, da relação de dominação no que ela tem de factual, de efetivo, e de ver como é essa própria relação que determina os elementos sobre os quais ela incide. Nesse contexto que se insere a analítica do poder, onde essa questão deve ser encarada de maneira global, já que configura uma prática social e, como tal, deve ser constituída historicamente. Assim, não se torna imperioso buscar em que se fundamentaria a sujeição dos indivíduos ao poder, mas importante seria demonstrar “as sujeições efetivas que fabricam sujeitos” (FOUCAULT, 2005, p. 51). Conforme Judit (2015, p. 45): O termo "biopolítica" designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século XlX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica - por meio dos biopoderes locais - se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações políticas. Deste modo, a biopolítica marca uma fase de mudança no pensamento de Focault, sendo encarada como um novo método destinado à sociedade como um todo, ao passo que surge de maneira suplementar aos demais mecanismos disciplinadores, que visavam governar apenas os indivíduos, unilateralmente. Fernando Danner (2010, p. 143) aponta que: A perspectiva metodológica acima delineada permite a Foucault problematizar um dos atributos fundamentais da teoria clássica da soberania, qual seja, o direito de vida e de morte, bem como a transformação dos mecanismos de poder operada especialmente nos séculos XVII, XVIII e XIX. Trata-se de uma modificação do poder soberano de “fazer morrer e deixar viver” por um poder de “fazer viver e deixar morrer”, a biopolítica. Desse deslocamento em relação às teorias jurídico-políticas tradicionais emerge a problemática de como esse poder pode ocasionar a morte se é pautado num “fazer viver”, no sentido de prolongar a vida. Ao responder esse questionamento, Michel, tendo por base o racismo, afirma que há mecanismos de seletividade e eliminação, que atuam como um corte no poder que se inseriu, “o corte entre o que deve viver e o que deve morrer” (FOUCAULT, 2005, p. 304). São amparados nessa ideia que os Estados passam a se valer desses mecanismos de controle para instrumentalizar o exercício de seu poder. Em suma, a Biopolítica trata-se de um termo empregado por Foucault para indicar esse processo de transformação do poder, naqueles séculos. Esse termo possui maior abrangência, já que atinge a sociedade como um todo, sendo, portanto, gênero do qual o biopoder é espécie. Na obra A vontade de Saber, o filósofo apresenta pela primeira vez a noção de biopoder, ao ampliar a definição de poder disciplinar. A respeito disso, Izabel Friche (2008, p.13) expõe: O poder disciplinar, que dá origem a todos os saberes especializados sobre o homem (as chamadas ciências humanas), atua sobre os microcorpos dos indivíduos, enquanto o biopoder, ampliando a dimensão do primeiro, age sobre a sociedade, tomada como corpo social a regular. Assim, no entendimento de Foucault, na medida em que a disciplina agia sobre os indivíduos, o biopoder, operava sobre a espécie, “no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 1988, p. 131). Diante disso, podem-se extrair dois aspectos importantes sobre os quais se desenvolve a organização do poder sobre a vida, quais sejam: as disciplinas do corpo e as regulações da população. No primeiro aspecto, referente ao poder disciplinar, as instituições sociais, como hospitais, escolas, indústrias, atuam na sociedade baseadas em uma completa individualização, classificando e avaliando os indivíduos, por meio de mecanismos de acompanhamento, adestramento e controle. Ferrari (2006, p. 53) alude que para Foucault, o hospital, é tido como uma das "instituições de sequestro", assim como o quartel, a escola e a prisão. Ainda ressalva que estas são na verdade: [...] instituições que retiram compulsoriamente os indivíduos do espaço familiar ou social mais amplo e os internam, durante um período longo, para moldar suas condutas, disciplinar seus comportamentos, formatar aquilo que pensam etc. Os entes voltados a esse modelo de política disciplinar têm, portanto, como fito principal, a criação de corpos dóceis, que se tornem de alguma maneira produtivos. Já no que tange ao segundo aspecto, que se liga ao biopoder, tem-se que: (...) sobre o corpo social, ou sobre a sociedade entendida como população - novo objeto do biopoder – serão produzidos mecanismos e dispositivos para sua regulação, observação, análise, intervenção e modificação, de que são exemplos as estratégias higiênicas, sanitárias, urbanísticas, de controle demográfico e de saúde que proliferam a partir de fins do século XIX (PASSOS, 2008, p. 13). Assim sendo, o biopoder não visa somente disciplinar as condutas, tornando o indivíduo dócil e útil, e sim uma gestão da vida social como um todo. Sendo, portanto, um mecanismo de poder em que várias estratégias são aplicadas com o intento de controlar determinadas populações, exemplos destas são as formas de gestão da saúde, da higiene, a predeterminação da sexualidade, o controle da natalidade e mortalidade, a longevidade, entre outros. Cumpre-se destacar que a manifestação do biopoder se concretiza por meio da chamada governamentalidade, que segundo entendimento de Michel Foucault (1999, p. 291) é: (...) o conjunto constituído pelas instituições, procedimento, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. Sendo assim, são nas práticas, atos e formas de pensamento de determinado governo que esse poder se sustenta, onde temos a população como alvo principal, a economia política como preceito importante e os dispositivos de segurança como instrumento técnico essencial. Partindo desse contexto é que o filósofo define o biopoder como sendo uma nova tecnologia que se instala: (...) se dirige a multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrario, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 2005, p.289). Nessa dinâmica, o biopoder tem como fundamento os problemas relacionados à população e a massa, que demandam certo controle através de organismos complexos de coordenação e centralização, onde a população é tanto alvo, como o instrumento em uma relação de poder. No que diz respeito aos interesses dessa pesquisa, observa-se que esses mecanismos de poder, sobre um contexto moderno, foram alguns dos fatores que determinaram o holocausto sucedido no hospital Colônia, aonde, por meio do discurso legitimador desse processo político, e baseados nas mais diversas justificativas e estratégias, o Estado de Minas Gerais extinguiu um grande número de indivíduos inocentes. 4 TEORIA EUGENISTA: IDEOLOGIA DA CULTURA DA MORTE. A prática da eugenia está presente na história da humanidade há um longo tempo, como exemplo tem-se os mecanismos de controle de natalidade bastante rigorosos presentes na Antiga Grécia, como a maneira nos quais eram solucionados os casos de nascimentos de crianças com imperfeições, sendo estas atiradas ao rio. De acordo com Paulo Sérgio R (2016, p. 03): A Eugenia surgiu a partir das idéias de Francis Galton, primo de Darwin, empolgado com o trabalho de seu primo e com a recente redescoberta das experiências realizadas pelo monge Gregor Mendel. A Eugenia brotava como uma nova disciplina, baseada na genética mendeliana e na teoria da evolução das espécies de Darwin, propondo a melhoria genética da raça humana sob a tutela das “autoridades científicas”, acelerando assim o papel da natureza. Assim sendo, o termo eugenia, cunhado por Galton, só aparece efetivamente no século XIX, e decorre de uma interpretação do darwinismo social, neste sustentava-se que na luta pela sobrevivência, muitos seres humanos eram menos valiosos, e, além disso, alguns eram destinados a desaparecer. Consequentemente, não se deveriam medir esforços para que a raça humana fosse melhorada por meio da ciência. Dessa forma, “a eugência é um conjunto de ideias e práticas relativas a um melhoramento da raça humana” (MACIEL, 1999, p.121). Sendo assim, um método de seleção humana baseado principalmente em parâmetros biológicos, onde há uma constante busca pelo corpo belo, forte, saudável, por uma evolução da espécie humana. A mesma autora ainda ressalva que: “O movimento eugenista, ao procurar “melhorar a raça”, deveria “sanar” a sociedade de pessoas que apresentassem determinadas enfermidades ou características consideradas indesejáveis” (MACIEL, 1999, p.121). Portanto, era com esse discurso de “cura da sociedade” que os adeptos a essa teoria usavam de determinados métodos para retirar os individuais considerados indesejáveis, como os doentes mentais, do seio social. De acordo com Mai e Angerami (2006, p.253): A eugenia alcançou o status de movimento mundial em torno da boa procriação e o Brasil vivenciou a ênfase nesse discurso eugenista nas décadas de 20, 30 e 40. Um dos principais canais de expressão da eugenia foi a Liga Brasileira de Hygiene Mental (LBHM), no Rio de Janeiro, congregando muitos dos geneticistas, psiquiatras, médicos, políticos e intelectuais mais reconhecidos da época. Procuravam justificar cientificamente a necessidade de medidas eugenistas coletivas em prol da construção de uma nação brasileira forte e saudável. Dentre os percussores da teoria eugenista brasileira, temos como principal interlocutor o médico paulista Renato Kehl, e em grau menos significativo Monteiro Lobato. No que se refere ao primeiro, entendia que a intervenção da eugenia na sociedade era fundamental às futuras gerações, que deveriam ser formadas por uma sociedade degenerada. Pode-se destacar como algo comum aos discursos dos diversos eugenistas no nosso país, o fato de todos terem em vista a substituição das leis de proteção social por outras que favorecessem a reprodução de bons elementos na sociedade, utilizando o rótulo de ciência para um projeto essencialmente político e ideológico (DIANW, 2007). Renato Kehl (1935) citado por Yamamoto e Boiarini (2004, p. 05), caracteriza e diferencia os movimentos higienista e eugenista: (...) a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do meio e as individuais, para tornar os homens em melhor estado físico, a eugenia, intermediária entre a medicina social e a medicina pratica, favorecendo os fatores sociais de tendência seletiva, se esforça pelo constante e progressivo multiplicar de indivíduos bem dotados ou eugenizados. Esses mecanismos de poder na grande maioria das vezes aparecem de forma integrada, mesmo com suas diferenças no conteúdo e na forma, e surgem sempre mediante um discurso legitimador convincente de indivíduos dominantes na sociedade. No decorrer do tempo, a Eugenia ainda prematura apresentada por Francis Galton, ganhou novas interpretações, de acordo com a época e o local. Entretanto, destacam-se o final do século XIX e decorrer do Século XX, quando essa teoria: “Legitimou-se pelo argumento científico e médico, e tornou-se uma das mais eficazes armas de controle social e político” (DIWAN, 2007, p 50). Nesse contexto é que se desenvolvem duas faces dessa teoria, uma positiva e a outra negativa, quanto à primeira: “Como exemplo de eugenia positiva, postulou--se o casamento de indivíduos que possuíam “melhores genéticas”, sem miscigenação com outras “raças”, preconizando a hegemonia e supervalorização da raça ariana” (SOUZA; SANTOS, 2014, p.03). Esta tinha o intento de aprimorar a sociedade mediante a reprodução de indivíduos dotados de superioridade biológica. Já em relação à eugenia negativa, partia da ideia da necessidade de utilização de métodos de esterilização para exterminar a camada considerada degenerada e degradada da sociedade, como consequência de sua inferioridade hereditária e/ou biológica, como fora o caso da eugenia pregada pelos regimes nazistas para o extermínio de Judeus, que se assemelha ao tratado nessa pesquisa. Nesse mesmo sentido: Do ponto de vista prático, a eugenia constituía uma verdadeira arte ou ‘hominicultura’, que se propunha ao grande ‘ideal eugênico’ de aperfeiçoar as qualidades e reduzir ao mínimo as imperfeições humanas. Cultivar os bons espécimes, segundo as regras mendelianas da hereditariedade, indicava que o único caminho para o melhoramento genético da humanidade era o ‘recurso eugênico’, que consistia na multiplicação das famílias eugênicas e na restrição paulatina e progressiva das não eugênicas. Pôr em prática esse recurso representava desenvolver ações de eugenia positiva e eugenia negativa (MAI; ANGERAMI, 2006, p.253). Portanto, na medida em que havia uma preocupação com a biologia reprodutora dos indivíduos, ocorria também uma classificação de raças, de caráter seletivo, em que eram indicados os inferiores e superiores, e justificava-se essa segregação como decorrência da hereditariedade. Em meados do século XX, os milhões de mortos pelos regimes totalitários eram vistos como indignos pelas doutrinas racistas ou revolucionárias de seus algozes para suspeitar que exista algum tipo de incompatibilidade entre dignidade humana e manipulação genética, quer autoritária, quer liberal. (HECK, 2006, p. 44). Ao analisar-se a ideologia usada nas manifestações de poder que conduzem ao crime de genocídio nesse período, como as que dominavam no Hospital, observam-se duas expressões do biopoder, usadas tanto na teoria quanto na prática. Sendo demonstradas nas formas de seleção de pessoas, com suas consequentes subjugações, e na justificação dos atos de discriminação e preconceito contra determinados indivíduos dada pela doutrina eugenista. A respeito disso, Foucault (1988, p. 129) relata que: Se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça, e dos fenômenos maciços de população. Dessa forma, tem-se a biologia sobrepondo-se ao direito a vida, a preservação da espécie serviria como justificativa para massacres dos indivíduos, visto que partiam do princípio de que: “São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 1988, p. 130). A partir disso, o interesse do Estado é de estabelecer métodos políticos, mascarados de um caráter humanitário, em que seria possível tornar o corpo da população saudável, livrando-se das infecções internas. Para Foucault, a política nazista baseava-se na lógica eugênica na medida em que: Quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mas eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar. (FOUCAULT, 2005, p.305). Por conseguinte, tem-se uma tentativa de impedir a multiplicação dos indivíduos considerados de espécies inferiores ou anormais, como os doentes e incapazes, em contrapartida, ao incentivo de melhorar a sociedade por meio da reprodução daqueles tidos como espécies superiores. Nesse sentido, Bicalho (2005, p.56) afirma que: (...) todos aqueles que habitando os chamados ‘territórios dos pobres’, passam a ser classificados como diferentes, carentes, incapazes e potencialmente perigosos, os quais representam ameaças para as classes dominantes, levando, portanto, a medidas de controle ou eliminação. Resta evidente que esse modo de seleção e classificação dos indivíduos tinha caráter completamente discriminatório. É nesse contexto que se forma a política eugenista, a qual entendia ser possível eliminar tecnicamente as vidas dos cidadãos, sem que isso fosse encarado como homicídio. Deste modo, “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 2005, p.305). Essas mesmas ideias apontadas determinaram o genocídio silencioso cometido no Hospital Colônia de Barbacena. A respeito disso, Daniela Arbex (2013, p. 26) menciona que: A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar. Nesse sentido, os diversos mecanismos de limpeza social que fortaleciam as práticas estabelecidas nesse hospital, estavam amparados na emergente teoria eugenista, no qual o governo adotava, utilizando ferramentas como, o poder estatal, o racismo de Estado e ideia de higienização social, todos exercidos através da Biopolítica e do Biopoder, como meio para legitimar a exclusão e extermínio dos indesejados socialmente, em nome da pureza social. Foucault explica que: O velho anti-semitismo do tipo religioso foi reutilizado num racismo de estado somente no século xix, a partir do momento em que se constituiu um racismo de estado, no momento em que o estado teve que aparecer, de funcionar e de se mostrar como o que assegura a integridade e a pureza da raça, contra a raça ou as raças que o infiltram, que introduzem em seu corpo elementos nocivos e que é preciso, conseqüentemente, expulsar por razões que são de ordem política e biológica ao mesmo tempo (FOUCAULT, 2005, p. 101). Dessa forma que o Racismo de estado se assenta como uma teoria não só política, mas também científica emergente da ideologia eugenia e do biopoder, e sendo utilizado como condição para aceitação e legitimação dos mecanismos usados pelo Estado, onde há uma individualização de grupos, determinando os que deverão morrer e aqueles que deverão viver. Assim sendo, a ideia evidenciada por essa teoria, segundo o mesmo autor, é de que: “Quanto mais numerosos forem os que morrerem entre nós, mais pura será a raça a que pertencemos” (FOUCAULT, 2005, p.308). Por meio dessa ideologia é que os pacientes da instituição eram segregados, eram separados como “loucos ou diferentes” da parcela “normal” da população, surgindo daí uma espécie de padronização social. Nesse mesmo sentido, ainda ressalva que: O racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo (FOUCAULT, 2005, p. 309). Destarte, o Estado faz uso do poder para ocultar discursos políticos e ideológicos como forma de legitimar suas ações, estas voltadas para separação e eliminação dos indivíduos. Os métodos ligados ao biopoder eram indispensáveis para fortalecer a necessidade de isolamento de determinados grupos tidos como anormais ou indesejáveis, como por exemplo, o caso dos deficientes mentais. Então se pode dizer que a combinação de um sistema de governo voltado ao controle biopolítico, uma ordenação eugênica da sociedade e a manifestação de biopoderes que determinam um genocídio sistemático, como o caso abordado nessa pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Equiparando-se há um verdadeiro centro de concentração nazista, o Hospital Colônia marca uma triste história do nosso país, sendo conhecido por muitos como sucursal do inferno, devido aos inúmeros abusos cometidos no instituto. Refletir sobre as manifestações de poder do Estado, que se pode denominar de poder assassino, que predominou em todo um seio social determinando esse genocídio, torna-se imperioso no momento em que houve um conformismo de toda uma sociedade, pode meio de uma consciência coletiva que fora encorajada por mecanismos de controle social, como a biopolítica e a ideologia da eugenia. Observa-se que assim como nos regimes nazistas, o acontecido em Barbacena fora fortalecido e justificado pelo governo, numa tentativa de “livrar” a sociedade do que era considerado problema desfazendo-se dele, isso resultou na legitimação da morte ou extermínio da própria população. Com o avanço da sociedade as práticas genocidas ganharam um novo caráter, abrangendo muito além do que o expresso no âmbito do ordenamento jurídico interno, adquirindo multíplices aspectos que são individualizados de acordo com a análise do caso concreto, da época e do país. Sendo assim, tem-se o genocídio moderno como um ato racional que parte da escolha de uma forma política de poder que legitima o Estado a decidir quem deverá morrer e ou viver, nesse aspecto não é incluído apenas a morte direta, mas também o assassinato indireto, como a exposição à morte e a exclusão social. Portanto, torna-se notório reconhecer que a barbárie ocorrida em Minas Gerais se trata de um genocídio moderno, que mesmo ocorrendo de maneira silenciosa, fora determinado por toda a coletividade. O Estado figurando como autoridade coatora, juntamente com médicos, enfermeiros e dirigentes do hospital, que era essencialmente de caráter público, e a sociedade, que mesmo que de maneira indireta, também contribuíra para a consecução. Dessa forma, deve-se reconhecer que tamanha violação não é sustentada por tanto tempo sem que passe pelo crivo da sociedade, que mesmo depois de algumas reportagens e poucas denúncias apresentadas contra o hospital, tal realidade só começara a mudar com a reforma psiquiátrica dos anos 80. Resta-se imprescindível compreender os principais fatos geradores de tal crime e entender como esses atos de militância podem ser perpetrados em nome do poder político, adentrando assim no campo obscuro, inumano e cruel que há por trás dessas práticas. Essa pesquisa fora de tamanho significado para salvar do esquecimento esse capítulo da história do Brasil, sendo possível que esse fato tão pavoroso, ocorrido em pleno século XX, possa ser levado ao conhecimento de todos, e ainda, para que sejam repreendidas quaisquer práticas que venham a acontecer nesse sentido. Fazendo-se necessário constar que mesmo diante de tantas evidências da configuração de tal crime e com o grande número de mortes constatadas, além das várias outras práticas ilícitas, ninguém até hoje fora responsabilizado. Portanto, demonstra-se também como uma maneira de externar o sentimento de impunidade que paira até os dias de hoje, e ainda de dar voz aos sobreviventes desse holocausto, que sofreram e ainda sofrem com os repletos danos causados por essas barbaridades, que atingiram não só os seus corpos, mas também as suas almas.

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REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Helloá Rodrigues Cidrão

Bacharel em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará - UNIFAP-CE Estagiária do TJCE na 1ª vara criminal da Comarca de CratoCE. Pós- graduada em Ciências Criminais pela CERS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdade Paraíso do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: MM. Marcos José de Oliveira

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