RESUMO: O presente artigo tem por escopo o estudo do incidente de assunção de competência, importante ferramenta disponível no ordenamento jurídico brasileiro para a busca da uniformização jurisprudencial. Este estudo, através de uma abordagem doutrinária, legislativa e jurisprudencial, contextualizará seu histórico e aprofundará aspectos práticos na utilização do instituto, como finalidade, pressupostos, procedimento e demais questões relevantes para sua completa compreensão. A pesquisa se desenvolverá objetivando facilitar o manuseio do incidente e indicará como vem sendo aplicado no âmbito dos tribunais, inclusive com a indicação de casos em que já fora utilizado como instrumento de unificação da jurisprudência e demonstrando a forma com que se dá sua aplicação.
Palavras-chave: Uniformização Jurisprudencial. Incidente. Assunção de Competência.
1 INTRODUÇÃO
A uniformização jurisprudencial tem sido buscada com maior afinco no ordenamento jurídico brasileiro e há cada vez menos espaço para decisões conflitantes do judiciário acerca de uma mesma questão. Neste sentido, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe diversos aprimoramentos e inovações com relação ao que era previsto na legislação processual anterior, o Código de 1973.
Muito embora houvesse o art. 555, § 1º do CPC73, que previa de forma mais simples a assunção de competência, com pouca abrangência, com o advento do novo código processual, o incidente foi remodelado e aprimorado, se tornando uma ferramenta com grande potencial de utilização na busca pela coerência nas decisões do poder judiciário, de forma que seja contemplada a segurança jurídica que se espera.
Neste sentido, ocorreu a ampliação das partes legitimadas para suscitar a assunção e, assim, importante elevação das possibilidades de instauração. Corroborando com isso, o que antes poderia ser proposto somente em agravo ou apelação, foi estendido para qualquer recurso, remessa necessária ou ações originárias do tribunal.
Para que se possa entender o incidente que se tem atualmente, sem nenhuma pretensão de exaurimento do tema, far-se-ão comparações e demonstrações das principais diferenças trazidas ao ordenamento jurídico brasileiro com o instituto previsto no art. 947 do Código de Processo Civil, a exemplo da ampliação do rol de legitimados para suscitar a assunção de competência e o aumento das hipóteses de cabimento, demonstrando a clara intenção do legislador de criar um instituto bastante útil e de aplicação mais prática.
Estudos bibliográficos auxiliam na constatação de relevantes alterações, como a que se refere à abrangência do efeito vinculante da decisão proferida em sede de incidente de assunção que, hoje, abrange todos os órgãos e juízes fracionários, e não mais serve tão somente como uniformização interna.
No intuito de demonstrar os aspectos do incidente ora estudado, o presente estudo será alicerçado por fontes bibliográficas e legislativas para indicar fundamentos relevantes, como histórico, comparativos, pressupostos, cabimento, procedimento e efeitos. Por outro lado, a fonte será predominantemente jurisprudencial para que se possa indicar como o instituto tem sido aplicado nos tribunais, bem como a forma com que é processado no âmbito interno de cada um deles.
Para que se possa, adequadamente, discorrer sobre a aplicação prática do incidente de assunção de competência nos tribunais, é necessário que se estabeleça um filtro acerca de quais serão objetos de análise, tendo em vista a grande quantidade de colegiados existentes no país. Assim, restringe-se ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por ser o colegiado mais comumente utilizado na circunscrição gaúcha; Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por ser o órgão colegiado responsável pela jurisdição federal da justiça comum na região sul do país; e Superior Tribunal de Justiça, principal órgão de uniformização jurisprudencial afora o Supremo Tribunal Federal, que já possui natural efeito vinculante em suas decisões e sequer prevê o incidente ora estudado em seu regimento interno.
O Código de Processo Civil, ao prever o incidente de assunção de competência, atribuiu aos regimentos internos dos tribunais a definição da competência funcional para julgamento, dessa forma, é imperioso o estudo dos regimentos internos para que se possa identificar a forma com que se dá o processamento do instituto internamente, indicando qual órgão interno é responsável pelo julgamento. Neste mesmo sentido, se mostra importante demonstrar os entendimentos fixados através de incidente de assunção de competência nos tribunais analisados.
Assim, considerando que se trata de um incidente relativamente recente, bem como sua atual utilização e, levando em consideração as dúvidas que pairam acerca da temática, faz-se necessário o presente estudo, visando elucidar tais questionamentos, o que se dará na forma retro indicada e com base no que se exporá subsequentemente.
2 HISTÓRICO LEGISLATIVO DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA
A ideia de uniformização de jurisprudência não é novidade do CPC15, visto que a legislação processual anterior, o CPC73, já possuía mecanismos que visavam isso, a exemplo de seu art. 476, que previa a possibilidade de que fosse solicitado o pronunciamento prévio do tribunal, de modo que se buscasse a mesma interpretação acerca de determinada questão de direito.
Na criação do CPC15, a preocupação do legislador com a segurança jurídica e uma maior simetria entre as decisões judiciais é latente, como se pode observar na exposição de motivos (Senado Federal, 2015, p. 435) quando menciona que:
Todas as normas jurídicas devem tender a dar efetividade às garantias constitucionais, tornando “segura” a vida dos jurisdicionados, de modo a que estes sejam poupados de “surpresas”, podendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta.
Não obstante o art. 555, §1º[1] no CPC73 que previa a possibilidade de assunção de competência, o CPC15, através do art. 947[2], aprimorou essa possibilidade, trazendo novas disposições e tornando o instituto mais amplo.
A atual previsão de deslocamento de competência através do incidente de assunção é mais abrangente do que aquilo que era previsto no CPC73. O que previa o código antigo originou a existência do atual incidente, entretanto, não se trata de uma ideia apenas transcrita de um código para o outro, houve um grande aprimoramento do instituto. O que antes era previsto em um parágrafo de artigo, agora possui um capítulo tratando sobre.
Algumas diferenças são muito relevantes, como a ampliação da legitimidade para suscitar o incidente de assunção de competência. Agora, pode haver a suscitação pela própria parte, Ministério Público, Defensoria Pública ou, de ofício, o relator, esse último detentor de legitimidade privativa anteriormente. Destaca-se, ainda, que o que antes era uma faculdade conferida ao julgador se tornou uma obrigatoriedade, visto que o CPC73 utilizava o termo “poderá” para indicar a possibilidade de o relator propor o instituto, enquanto o CPC15 indica a obrigatoriedade ao mencionar que o relator “proporá”, de ofício, o incidente de assunção quando ocorrer sua hipótese de cabimento. É o que ensina Santana e Andrade Neto (2016, p. 389):
A previsão contida no CPC73 indicava que somente poderia ocorrer a assunção de competência no julgamento de apelação ou agravo. Com o advento do CPC15, houve considerável ampliação nessas possibilidades. A utilização do termo “recurso” não individualiza nenhum remédio recursal específico, o que sinaliza o cabimento em qualquer recurso, além dos casos de remessa necessária e ações de competência originária do tribunal.
Os requisitos do instituto previsto no CPC73 foram modificados no CPC15. O antigo código tinha como requisitos básicos a ocorrência de relevante questão de direito e o reconhecimento do interesse público. Por sua vez, o novo código acrescentou como requisitos a necessidade de uma grande repercussão social e a não repetição em múltiplos processos.
Outra mudança relevante entre as disposições do antigo e do novo código processual civil é a expansão dos efeitos da decisão do incidente, deixou de servir como mecanismo de uniformização do próprio tribunal para passar a formar precedentes de observância obrigatória também para os juízes e órgãos fracionários. Neste sentido, bem explicam Alvim e Didier Júnior (2018, p. 309):
No CPC/2015, o perfil da assunção de competência foi drasticamente alterado: deixou de servir puramente à uniformização da jurisprudência interna do tribunal para se tornar mecanismo de formação de precedentes que possam ser aplicados não apenas pelo tribunal competente para o julgamento da causa, mas igualmente por outros órgãos jurisdicionais que lhe estejam vinculados. É o que se extrai da leitura dos §§ 3º e 4º do art. 947: “§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese. § 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal”.
Percebe-se, claramente, a evolução do instituto de um código para o outro no sentido de ampliar seu alcance, facilitando sua aplicação, de modo a buscar uniformidade nas decisões judiciais e, através dos precedentes vinculantes criados pelas decisões em incidentes de assunção de competência, evite-se conflitos de decisões em causas que versem sobre a mesma questão de direito.
3 O INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA
3.1 Finalidade do instituto
A busca por decisões uníssonas em questões iguais é um dos propósitos do CPC15, tanto que criou e aprimorou mecanismos de uniformização de jurisprudência visando isso. Neste sentido, veio o aprimoramento da assunção de competência através da criação de um novo incidente. Apesar desses aprimoramentos e criações do atual código processual, a necessidade de se evitar contradições jurisprudenciais já era bem destacada pelo saudoso Pontes de Miranda (1998, p. 3), que com maestria ensinou que:
Se alguma sentença ou outra decisão, que se não haja de considerar sentença, diverge de outra, em qualquer elemento contenutístico relativo à incidência ou à aplicação de regra jurídica, uma delas é injusta, porque se disse a no tocante a uma das demandas e b, talvez mesmo não-a, a propósito da quaestio iuris, ou das quaestiones iuris, que em ambas aparecem. Tem-se de evitar isso, e aí está a razão de algumas medidas constitucionais ou de direito processual que têm por fito corrigir ou evitar a contradição na jurisprudência.
Extrai-se do ensinamento acima transcrito que a necessidade de haver uniformidade nas decisões já é destacada há algum tempo, visto que se trata de elemento fundamental para a manutenção da segurança jurídica. Neste mesmo sentido, conforme Assis (2012, p. 345), deve-se impedir que a sorte de um processo dependa da distribuição para um ou outro órgão fracionário do tribunal.
Assim, tem-se cristalina a intenção do legislador de tornar o incidente de assunção de competência uma importante ferramenta para se buscar uniformidade e coerência na prestação jurisdicional, atribuindo-lhe a finalidade de garantir uma maior previsibilidade e segurança para aqueles que necessitarem buscar a tutela de seus direitos através do poder judiciário.
Ademais, é importante ressaltar outra importante função do incidente, que é a diminuição de ações e recursos junto ao judiciário, isso porque a criação de precedentes vinculantes evita – ou pelo menos deveria – novas ações e interposições de recursos que versem sobre questão já decidida por meio desse instrumento de uniformização jurisprudencial. Assim, a utilização do instituto pode auxiliar na busca por um descongestionamento do judiciário, de modo que o jurisdicionado tenha a sua disposição um serviço mais ágil e eficiente.
3.2 Pressupostos
A admissibilidade do incidente de assunção de competência é condicionada ao preenchimento de alguns requisitos previstos no art. 947 do CPC, que estabelece a necessidade de o recurso ou ação em questão envolver, concomitantemente, relevante questão de direito, grande repercussão social e a não repetição em múltiplos processos. Ainda, em um segundo momento, no § 2º do referido artigo, há mais uma condição para que o incidente seja julgado, que é o reconhecimento do interesse público na assunção de competência.
A relevante questão de direito aqui exigida precisa, necessariamente, ser revestida de grande repercussão social. Assim, não basta que o julgamento envolva uma questão que possua relevo puramente jurídico, faz-se necessário que o tema transcenda os interesses das partes envolvidas na causa. Tratam-se de requisitos criados através de cláusulas gerais, dificultando a definição precisa, como bem indicam Alvim e Didier Júnior (2018, p. 311):
A doutrina apresenta dificuldade em discriminar, com precisão, o que seja relevância e o que seja repercussão social. Seria possível haver uma questão jurídica relevante que não tenha repercussão social? Seria possível falar-se em questão com repercussão social que não tenha relevância? Esses questionamentos têm pertinência [...]
Aqui, quando se fala em relevante questão de direito, que pode ser de direito material, tanto quanto direito processual, deve-se falar em um assunto que mereça ampliação em sua cognição, com melhor contraditório e fundamentação fortificada, visto que a decisão do incidente será um precedente obrigatório. No que tange ao requisito da grande repercussão social, pode-se tomar como paradigma o § 1º do art. 1.035 do CPC[3], que estabelece o que se considera como repercussão geral, qual seja aquela com relevância política, econômica, social ou jurídica que transponha os interesses subjetivos dos autos (CABRAL; CRAMER, 2015, n.p). Ainda, reforçando esse entendimento, Alvim e Didier Júnior (2018, p. 281) ensinam que “alude-se uma questão de direito com grande repercussão social para evidenciar o seu excepcional relevo em face da vida social nas perspectivas política, religiosa, cultural e econômica”, e complementam indicando que não é suficiente apenas dizer respeito aos aspectos mencionados, mas também deve impactar diretamente nessas perspectivas da vida social (2018, p. 282).
A relevância da questão de direito e sua repercussão social são os pressupostos positivos do incidente de assunção, mas há, ainda, o chamado pressuposto negativo do instituto, qual seja a não repetição em múltiplos processos. Esse requisito, conforme será visto, serve para diferenciar o instituto ora estudado do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e do Julgamento de Recursos Especiais e Extraordinários Repetitivos. Segundo Wambier et al. (2015, p. 1345), o tema não pode se tratar de direito de massa/causas repetitivas – “o que não impede, é claro, que a mesma questão jurídica possa se repetir ou tenha-se repetido em outras ações, mas não às dezenas, às centenas, aos milhares!”. Contrapondo isso, Alvim e Didier Júnior (2018, p. 316), dizem que “assim, ainda que haja 100, 200 ou 500 processos sobre a mesma questão de direito, pode-se utilizar a assunção de competência para a formação do precedente”. Observa-se que, considerando que não há definição legal do conceito do termo “múltiplos processos”, abre-se margem para discussão acerca da quantidade.
Além dos três pressupostos até aqui elencados, quais sejam a relevante questão de direito, grande repercussão social e a não repetição em múltiplos processos, todos a serem verificados pelo órgão originariamente responsável pelo julgamento do recurso, remessa necessária ou ação de competência originária, há um peculiar quarto elemento que necessita ser preenchido em um segundo momento, que é o reconhecimento do interesse público pelo órgão colegiado responsável pelo julgamento do incidente, para o qual foi deslocada a competência. Neste sentido, bem ensina Neves (2015), citado por Santana e Andrade Neto (2016, p. 404) ao dizer:
O dispositivo não deixa de ser peculiar porque nos termos do caput do artigo ora analisado o requisito positivo para o julgamento do incidente ora analisado é a repercussão geral, enquanto pelo § 2º, do mesmo dispositivo o incidente só será admitido, e assim julgado em seu mérito, se houver interesse público. Afinal, é preciso ter repercussão social ou interesse público para ser cabível o incidente de assunção de competência? O mais provável é que as expressões sejam consideradas como sinônimas – ainda que não o sejam – sendo admissível o incidente sempre que interessar a quantidade razoável de sujeitos.
Ainda elucidando a questão, deve-se destacar que o objetivo do legislador não foi criar dois requisitos diferentes para a admissão da assunção de competência, mas sim frisar que o órgão originário, tanto quanto aquele para o qual a competência foi deslocada, possuem o poder de verificar motivos para a assunção da competência, a fim de que somente casos que possuam razões suficientes deem ensejo ao incidente ora estudado (ALVIM; DIDIER JÚNIOR, 2018, p. 286).
Reconhecido o interesse público, o órgão colegiado julgará o incidente. Caso contrário, o recurso, ação originária ou remessa necessária retornará ao órgão originariamente responsável para que este julgue (SANTANA; ANDRADE NETO, 2016, p. 404).
3.3 Efeitos da decisão
Preenchidos os pressupostos legais para que seja julgado o incidente de assunção, a decisão obtida no julgamento terá efeito vinculante no que se refere à tese adotada pelo tribunal. Assim, contemplando o que prevê o § 3º do art. 947 do CPC, os órgãos fracionários e todos juízes deverão, obrigatoriamente, observar a decisão proferida. Isso é novidade do incidente, conforme bem ensina Spadoni (2019, p. 3) ao mencionar que:
Assim, tanto para os processos pendentes no momento do julgamento, quanto para processos futuros, todos os juízes e órgãos colegiados fracionários vinculados ao Tribunal que proferiu a decisão deverão aplicar o entendimento fixado no incidente, naquilo que diz respeito à “relevante questão jurídica” nele delimitada (art. 927, III).
Importante esclarecer que a assunção de competência possui o viés de esclarecer e estabelecer o entendimento acerca de determinada questão de direito, visando unificar e nortear as decisões posteriores por parte dos juízes e órgão fracionários do tribunal julgador. Isso não pode se confundir com a função das Cortes Supremas de direcionar e dar sentido ao direito. Apesar de uma aparente semelhança em um primeiro momento, isso não se verifica, visto que a função de dar um sentido ao direito, atribuída às Cortes Superiores, é muito mais abrangente do que fixar uma decisão vinculante sobre determinada questão de direito, que é o que ocorre no incidente de assunção (ALVIM; DIDIER JÚNIOR, 2018, p. 302).
Ainda, é importante salientar que o § 3º do art. 947 do CPC indica que o “acórdão proferido” vinculará os juízes e órgãos fracionários, e não a tese adotada, o que significa dizer que a ratio decidendi deve ser obrigatoriamente observada. Portanto, as razões pelas quais a decisão foi tomada – que integram o acórdão – vincularão as decisões posteriores acerca daquela determinada questão de direito. Assim, os julgadores de casos posteriores terão menos espaço para argumentação no sentido de eventual decisão contrária, o que confere maior rigidez ao julgamento estabelecido através do incidente de assunção. Nesse sentido, bem elucidam Alvim e Didier Júnior (2018, p. 298):
Se o caso sob julgamento diz respeito a questão de direito já decidida em incidente de assunção, nem o litigante inconformado nem o juiz poderá argumentar para que a decisão seja ou não aplicada sob o fundamento de o caso ter particularidades específicas. Não será possível argumentar nem para restringir nem para estender a aplicação da decisão da questão de direito. A única distinção possível, na hipótese, deriva de a questão de direito ser outra.
Nesta senda, novas ações com pedidos contrários ao entendimento firmado em incidente de assunção de competência, deverão ter o mérito liminarmente julgado improcedente, conforme dispõe o art. 332, III do CPC[4]. Da mesma forma, incumbe ao relator manter a aplicação dos entendimentos obtidos através do referido instituto, em decisão monocrática, sem a necessidade de submissão ao julgamento do colegiado[5].
Conforme dispõe o § 3º do art. 947 do CPC, pode ocorrer a chamada revisão de tese, que é a mudança do entendimento da questão de direito por parte do órgão que havia fixado o entendimento (WAMBIER et al., 2015, p. 1346). Ocorrendo isso, por óbvio, o acórdão que continha o entendimento superado perde seu efeito vinculante. Esse fenômeno de superação de um precedente é também denominado “overrulling” e deve ocorrer de forma excepcional e muito bem fundamentada, conforme Santana e Andrade Neto (2016, p. 405).
Ainda, destaca-se que no incidente de assunção o mérito da ação submetida ao incidente será resolvido, e não apenas fixado o entendimento. Inclusive, conforme Santana e Andrade Neto (2016, p. 393), esse elemento é o que mais o aproxima do procedimento de formação de precedentes do sistema common law, diferenciando o instituto ora estudado de outros destinados à formação de precedentes no sistema processual brasileiro.
3.4 Cabimento
As possibilidades de cabimento do incidente de assunção foram ampliadas no CPC15, isso porque se tornou possível sua suscitação em praticamente qualquer questão a ser julgada por um tribunal. O incidente é cabível no julgamento de qualquer recurso, remessa necessária ou ações de competência originária do tribunal. Para efeito de comparação, na legislação processual antes vigente era possível a suscitação apenas no julgamento de agravo ou apelação.
Considerando que a função básica do incidente de assunção é uniformizar os entendimentos jurisprudenciais e evitar conflitos entre as decisões do poder judiciário acerca de questões idênticas, as várias possibilidades para sua instauração possuem o escopo de viabilizar que sua finalidade seja atendida com mais facilidade. Neste sentido, além de destacar a subutilização do instrumento, Wambier et al. (2015, p. 1345) diz que:
[...] esperamos que, à luz do mote inspirador do NCPC, consistente em desestimular jurisprudência dispersa ou conflitante sobre um tema, seu uso seja intensificado. É necessário que os operadores – todos, inclusive os magistrados – se aperceberem de sua real utilidade, até no que tange a pode eventualmente levar a diminuição da carga recursal.
Outra hipótese em que é aplicável o instituto é a que está prevista no § 4º do art. 947 do CPC[6], qual seja a possibilidade de o tribunal instaurar incidente de assunção de competência com a finalidade de prevenir ou compor eventual divergência entre turmas ou câmaras do tribunal referente a determinada questão de direito. Neste sentido, ensinam Cabral e Cramer (2015, n.p.):
Se já há uma divergência interna na jurisprudência do tribunal, deve ser instaurado o incidente de assunção de competência. Nesse ponto, tal incidente funciona como instrumento a ser utilizado pelo tribunal para o cumprimento do dever de uniformizar sua jurisprudência, dever esse que lhe é imposto pelo art. 926 do CPC. De igual modo, e com a mesma finalidade de cumprir com o dever de uniformizar seu entendimento, o tribunal deve instaurar o incidente de assunção de competência quando se revelar possível o dissenso entre suas câmaras ou turmas.
Percebe-se que o termo utilizado pelos doutrinadores é o “deve”, e não o “pode”. Isso porque o caput art. 926 do CPC[7] indica que é dever do tribunal uniformizar sua jurisprudência. Assim, caso ocorra a necessidade, o tribunal precisa fazer uso da assunção de competência, contemplando o que dispõe o dispositivo suprarreferido.
Importante destacar que o requisito estabelecido quanto à questão de direito pelo § 4º é que ela seja relevante, apenas. Isso significa dizer que, caso o incidente de assunção seja instaurado com base nesse parágrafo, não há a necessidade de a questão ser de grande repercussão social. Alvim e Didier Júnior (2018, p. 290) corroboram com isso dizendo que:
[...] a justificativa para a transferência do julgamento não é mais a existência de questão de direito com “grande repercussão social”. Basta uma relevante questão de direito e, especialmente, que sua resolução seja “conveniente” para prevenir ou compor divergência entre câmaras ou turmas do tribunal. A transferência também é do julgamento do caso – recurso, remessa necessária ou ação originária – e não apenas da questão de direito.
Percebe-se que no § 4º não há o requisito “recurso, remessa necessária ou ação de competência originária”. Isso demonstra que o instituto pode ser utilizado em várias hipóteses em que se faça útil para que se estabeleça coerência e integridade nas decisões judiciais.
3.5 Competência
Conforme já mencionado, os tribunais possuem a incumbência promoverem a uniformidade na jurisprudência e, sob este prisma, o incidente de assunção assume grande importância.
Em um tribunal, existem diversas seções, turmas e câmaras, sendo assim, podem existir variadas visões e entendimentos acerca de uma única questão de direito. Cada interpretação dada por cada um dos julgadores, componentes dos órgãos do tribunal, representa o seu entendimento acerca da questão que lhe é posta no caso em concreto, o que pode naturalmente ocasionar divergências.
Nesta senda, surge o instituto ora estudado como forma de correção das divergências e unificação do entendimento. Como se pode extrair do caput do art. 947, é admissível a assunção de competência em recursos, remessas necessárias ou ações de competência originária do tribunal, ou seja, todas hipóteses de julgamentos de competência de tribunal, seja ele no âmbito estadual, regional ou nacional.
Pode-se afirmar, portanto, que qualquer tribunal é competente para processar e julgar o incidente de assunção de competência, mediante deslocamento de competência no sentido de compor a divergência e definir o entendimento a ser fixado em acórdão com eficácia vinculante.
3.6 Legitimidade
As partes, Ministério Público ou Defensoria Pública podem propor o incidente de assunção de competência. Além disso, o relator, de ofício, deve instaurar o incidente, é isso que indica o § 1º do art. 947 do CPC. Caso se encontrem preenchidos os requisitos legais que justifiquem a proposição do incidente ora estudado, o julgador tem a incumbência legal de fazê-lo, pois o já referido art. 926 do CPC determina que é dever dos tribunais (e seus integrantes, por óbvio) uniformizar sua jurisprudência, o que pode ser feito com muita efetividade através da assunção de competência. Percebe-se que o atual código processual brasileiro ampliou o rol de legitimados para proposição da assunção de competência, que era atribuída somente ao relator[8].
No que se refere à legitimidade atribuída ao Ministério Público, bem como à Defensoria Pública, há estreita relação entre os requisitos para estes figurarem na causa e os pressupostos do incidente de assunção, neste sentido, bem elucidam Cabral e Cramer (2015, n.p.):
A legitimidade do Ministério Público ou da Defensoria Pública está relacionada ao pressuposto da “grande repercussão social”. A análise do cabimento da assunção de competência imiscui-se com a própria análise da legitimidade do Ministério Público ou da Defensoria Pública. Se não houver “grande repercussão social”, além de não caber a assunção de competência, não haverá igualmente legitimidade para requerer sua instauração.
A atuação do Ministério Público está intimamente ligada a questões que interessam a coletividade[9] e, quando este propor o incidente de assunção legitimamente, muito provavelmente os requisitos da repercussão social e interesse público estarão preenchidos. Ainda, no que tange à atuação da Defensoria Pública, pode ocorrer situação análoga, mas sua atuação, no caso em concreto, pode não preencher o pressuposto do interesse público e/ou repercussão social, pois pode estar representando pessoa hipossuficiente na defesa judicial de seus interesses[10].
3.7 Procedimento
O procedimento se inicia através de iniciativa das partes legitimadas para propor o incidente de assunção, conforme já explicitado. A partir do momento em que há a proposição de instauração, seja por iniciativa do relator ou então a requerimento das partes, Ministério Público ou Defensoria Pública, iniciar-se-á o trâmite legal do instituto.
A primeira etapa é a aferição do preenchimento dos requisitos previstos no caput do art. 947 do CPC. Nesta etapa, deve-se constatar que se trate de julgamento de recurso, remessa necessária ou ação de competência originária do tribunal, bem como que a questão envolvida na causa possua, simultaneamente, relevante questão de direito, grande repercussão social e a não repetição em múltiplos processos.
Faz-se importante destacar que o requerimento feito não vincula o relator a aceitá-lo, tampouco a proposição monocrática deste é capaz de consubstanciar o deslocamento da competência, pois é necessário que a proposição passe pelo crivo do colegiado do órgão fracionário inicialmente detentor da competência para o julgamento do recurso, remessa necessária ou ação de competência originária. Nesse sentindo explicam Alvim e Didier Júnior (2018, p. 284):
Isso não quer dizer que, uma vez requerido o deslocamento de competência, esse não tenha que ser aprovado pelo colegiado originariamente competente para o caso. O relator não está vinculado ao requerimento das partes, do Ministério Público ou Defensoria Pública nem pode decidi-lo sozinho. Só o colegiado originariamente competente – o “juiz natural” – tem legitimidade para aprovar o pedido de deslocamento de competência. Por isso, o relator, quando submete a ideia de deslocamento de competência para os demais membros do colegiado, jamais poderá decidir para imediatamente encaminhar os autos ao outro órgão colegiado.
Superada a primeira etapa, os autos serão apreciados pelo órgão orginalmente responsável pelo julgamento da demanda, a fim de seja novamente averiguado o preenchimento dos requisitos, bem como seja assegurado às partes e interessados diretos a oportunidade de se manifestar acerca da assunção de competência, de modo que lhes sejam assegurado o contraditório e ampla defesa[11]. Após isso, caso entendam pelo acolhimento da proposição do incidente, os autos serão remetidos ao colegiado indicado no regimento interno do tribunal, conforme prevê o § 1º do art. 947 do CPC (SPADONI, 2019).
Em um segundo momento, já com os autos sob a guarida do órgão indicado pelo regimento interno do tribunal, haverá a verificação da existência de interesse público na assunção de competência, na forma determinada pelo § 2º do art. 947 do CPC. Caso preenchido este último requisito, ocorrerá o julgamento da causa e será proferido acórdão que terá observância obrigatória. Caso não seja identificado o interesse público, a ação será devolvida ao órgão ad quem para julgamento da demanda (THEODORO JÚNIOR, 2017, p. 816).
Por fim, faz-se oportuno destacar que, conforme se identifica no Regimento Interno do STJ, em seu art. 271-B, § 2º, uma vez instaurado o incidente de assunção, mesmo que haja a desistência ou abandono do processo, o mérito será julgado[12]. Em que pese não esteja prevista em incidente de assunção no Código de Processo Civil, tal disposição pode ser ventilada nos incidentes propostos em outros tribunais, ainda que não possuam essa previsão em seus regimentos, o que se faz através de aplicação análoga da regra do incidente de resolução de demandas repetitivas, que prevê tal possibilidade (THEODORO JÚNIOR, 2017, p. 816).
4 DIFERENCIAÇÃO ENTRE INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA E INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
O incidente de assunção de competência e o incidente de resolução de demandas repetitivas são habitualmente confundidos e causam dificuldade de discernimento na aplicação prática. No fim das contas, ambos são mecanismos que visam à uniformização jurisprudencial e, observadas as peculiaridades do caso concreto e preenchidos os requisitos de um, ou outro, aplicar-se-á o instituto apropriado.
De pronto, deve-se mencionar que não se trata de uma faculdade do aplicador do direito optar por um, ou outro, visto que, caso preenchidos os requisitos para aplicação da assunção de competência, esta deverá ser proposta e vice-versa com relação ao incidente de resolução de demandas repetitivas.
Muito embora alguns requisitos se confundam, há importantes distinções entre os dois institutos. Conforme já explicitado, de acordo com o disposto no art. 947 do CPC, os requisitos do incidente de assunção são a relevante questão de direito, grande repercussão social e a não repetição em múltiplos processos. Os requisitos do incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua vez, estão previstos no art. 976 do CPC[13], que indica que o incidente é cabível para questões unicamente de direito com efetiva repetição em processos e que ofereçam risco à isonomia e à segurança jurídica.
Percebe-se que o incidente de resolução de demandas repetitivas dispensa a necessidade de que a questão de direito seja relevante. Entretanto, pode uma questão de direito potencialmente ofensiva aos princípios constitucionais da isonomia e segurança jurídica não ser relevante? Parece que o requisito da relevância, neste instituto, também será preenchido, embora não haja exigência expressa na lei.
A principal diferença é a repetição, ou não, em demandas repetitivas. No caso da assunção de competência, a questão não pode estar presente em múltiplos processos, mas há a inserção do requisito “grande repercussão social”. Neste sentido, bem ensina Luiz Guilherme Marinoni (MARINONI, 2019, p. 98):
O primeiro incidente requer apenas a grande repercussão social da questão contida no caso; o segundo exige que a mesma questão esteja sendo discutida em demandas repetitivas. Portanto, num incidente importa uma qualidade da questão de direito e no outro apenas a sua unidade. Em um o caso tem que conter questão de grande repercussão social e no outro basta que exista uma única questão replicada em diversas demandas.
Importante destacar que, enquanto na assunção de competência há o julgamento da causa juntamente com a fixação do entendimento sobre a questão de direito, no incidente de resolução de demandas repetitivas há a fixação de uma tese que, posteriormente, será aplicada com relação à questão de direito sobre a qual o entendimento foi fixado, nos processos que restaram suspensos em razão da instauração do incidente, conforme disposto no art. 982, I do CPC[14] (ALVIM; DIDIER JÚNIOR, 2018, p. 282).
Ainda, faz-se oportuno destacar o viés preventivo do incidente de assunção de competência, visto que cabível antes que a questão se mostre controvertida em repetitivos processos. O incidente de resolução de demandas repetitivas, por sua vez, tem o escopo de resolver determinada questão de direito havida em múltiplas demandas. Seja num, ou noutro instituto, o condão de evitar conflitos jurisprudenciais se faz presente.
5 O INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA NOS TRIBUNAIS
5.1 Utilização do incidente nos tribunais
O Brasil conta com dezenas de tribunais em seu território, incluindo os estaduais, federais, superiores e outros especializados. Considerando isso, faz-se adequada a restrição do presente estudo ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Tribunal Regional Federal da 4ª Região e Superior Tribunal de Justiça. Isso porque os referidos colegiados são os mais comumente utilizados pelos jurisdicionados no estado do Rio Grande do Sul, local do presente trabalho.
Poucos são os casos em que o procedimento de assunção de competência foi utilizado no âmbito da justiça gaúcha. Exemplificando isso, de um total de 4 (quatro) incidentes instaurados, o último precedente formado através do referido instituto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ocorreu no ano de 2018. Expandindo um pouco e ingressando no âmbito federal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que abrange os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná possui apenas 5 (cinco) incidentes de assunção de competência instaurados. Ainda, em âmbito nacional, o Superior Tribunal de Justiça conta com 8 (oito) incidentes de assunção propostos.
Na justiça comum gaúcha, registra-se o julgamento de quatro incidentes de assunção de competência, dentre os quais se destaca o seguinte entendimento firmado pelo Quarto Grupo de Câmaras Cíveis:
INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. ART. 947 CPC. APELAÇÃO. DIVÓRCIO. PARTILHA DE BENS ADQUIRIDOS NO CURSO DO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. COMUNHÃO. PRESUNÇÃO DO ESFORÇO COMUM. SUMULA 377 STF. [...] Caso em que o recurso de apelação originário traz relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos (art. 947 do CPC). Consequentemente, vai reconhecido interesse público na assunção da competência para julgamento do recurso de apelação, pelo Colegiado do 4º Grupo Cível. [...] No casamento celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens, em função da aplicação da súmula n.º 377, do STF, partilham-se os bens onerosamente adquiridos no período de convivência, independentemente de prova da contribuição específica de cada um. Precedentes. Contudo, no caso a divisão operada pela sentença acabou por ser desigual, na medida em que o piso inferior do imóvel (avaliado em valor maior) ficou com a apelada, enquanto que o piso superior (avaliado em valor menor) ficou com o apelante. Hipótese de necessária retificação da determinação de partilha, para que seja restabelecida a igualdade na divisão do bem comum. [...] Efeito vinculante Reconhecimento que apresenta eficácia vinculante em relação aos órgãos fracionários e juízes vinculados a esta Corte, por força do §3º do artigo 947 do CPC. RECONHECERAM O INTERESSE PÚBLICO NA ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE APELAÇÃO Nº 70063167514 E DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO. NO ÂMBITO DO INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA, COMPUSERAM NO SENTIDO DE QUE, NA INTERPRETAÇÃO DA SÚMULA 377 DO STF, PRESUME-SE A CONTRIBUIÇÃO EM RELAÇÃO AOS BENS ADQUIRIDOS NO CURSO DO CASAMENTO, COM EFICÁCIA VINCULANTE EM RELAÇÃO AOS ÓRGÃOS FRACIONÁRIOS E JUÍZES VINCULADOS A ESTA CORTE, POR FORÇA DO §3º DO ARTIGO 947 DO CPC. (TJRS, 2016, p. 173, grifo nosso).
Portanto, diante do entendimento acima transcrito, os juízes e órgãos fracionários do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul devem observar que, no regime de separação legal (obrigatória), os bens adquiridos onerosamente pelo casal, no curso do casamento, comunicam-se, pois se presume a contribuição.
Ainda, outros dois entendimentos foram firmados pelo Tribunal de Justiça gaúcho. O primeiro é que, em razão do princípio da reserva legal, não podem ser aplicadas penalidades por infrações administrativas sem que haja previsão legal expressa nesse sentido, não podendo o julgador aplicar multa que não encontre referencial legal prevista em lei[15] (TJRS, 2016, p. 13). Além disso, no julgamento de outra ação, foi fixada a tese de que o termo inicial do prazo para a fazenda pública constituir seu crédito decorrente do ITCD é o primeiro dia do ano fiscal seguinte ao ano em que foi comunicada ao Cartório de Registro de Imóveis a extinção de usufruto que recaía sobre o imóvel[16] (TJRS, 2017, p. 40).
Por fim, há um quarto incidente de assunção de competência que chegou a ser proposto, mas não fixou tese por conta de sua perda superveniente de objeto[17], razão pela qual não se justifica pormenoriza-lo.
Destaca-se, ainda, que todas as decisões acima indicadas, proferidas pelo Tribunal de Justiça gaúcho em incidentes de assunção de competência, já transitaram em julgado.
No âmbito regional, mais especificamente no Tribunal Regional Federal da 4ª região, existem apenas dois entendimentos fixados e transitados em julgado, ambos no ramo do Direito Previdenciário. O primeiro, de nº 5051417-59.2017.4.04.0000, fixou tese sobre o interesse processual do segurado na revisão do benefício nos casos em que há complementação por entidade previdenciária privada[18] (TRF4, 2017, p. 6). O outro entendimento firmado ocorreu no incidente de nº 5051425-36.2017.4.04.0000, no qual restou decidido pela possibilidade de pagamento dos valores não recebidos em vida pelo segurado aos seus sucessores, independentemente de arrolamento e inventário[19] (TRF4, 2018, p. 5).
No tocante aos demais incidentes no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, quais sejam aqueles tramitando sob os números 5033888-90.2018.4.04.0000, 5044256-14.2012.4.04.7100 e 5007975-25.2013.4.04.7003, não convém detalha-los, eis que ainda não contam com decisões definitivas transitadas em julgado.
No contexto nacional, mais especificamente no Superior Tribunal de Justiça, embora existam oito incidentes propostos e admitidos, apenas um possui entendimento fixado através de decisão já transitada em julgado, o que ocorreu no incidente de assunção de competência (tema/IAC 3) proposto no Recurso em Mandado de Segurança de número 53.720/SP, onde restou estabelecido que “não é cabível mandado de segurança contra decisão proferida em execução fiscal no contexto do art. 34 da Lei n. 6.830/80.” (STJ, 2019, p. 2)
Há, ainda, outros incidentes que ainda não contam com decisão transitada em julgado no Superior Tribunal de Justiça, cujo aprofundamento, neste momento, não se faz apropriado, haja vista não contarem com decisões absolutamente definitivas.
5.2 Competência funcional conforme os regimentos internos dos tribunais
Conforme já demonstrado, o art. 947 do CPC atribui ao regimento interno de cada tribunal definir a competência funcional para o julgamento dos incidentes de assunção de competência propostos. Portanto, considerando a intenção de que se elucide o aspecto prático do instituto ora estudado, faz-se oportuna a indicação da forma com que se dá seu processamento internamente nos tribunais, conforme seus respectivos regimentos internos, demonstrando o órgão interno responsável pelo julgamento em cada situação.
No regimento interno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é atribuída ao Quarto Grupo Cível a competência para julgamento dos incidentes propostos no âmbito de sua competência, isso significa dizer que os incidentes suscitados nas Câmaras Cíveis de Direito Privado do Tribunal serão julgados pelo referido Grupo[20]. Em se tratando de Direito Público ou demanda de competência originalmente atribuída a algum dos grupos do Tribunal, o incidente será julgado pela Turma Cível a qual pertence o Grupo ou Câmara em que for suscitado[21].
Exemplificando, a fim de melhor elucidar, conjectura-se a proposição de assunção de competência em uma apelação distribuída para a 22ª Câmara Cível, que é integrante do 11º Grupo Cível que, por sua vez, integra 1ª Turma Cível, componente da Seção de Direito Público do Tribunal. Neste caso, considerando que matéria de Direito Público não pode ser julgada pelo 4º Grupo Cível – que detém competência funcional para decidir sobre Direito Privado, eis que integrante desta Seção – o incidente deverá ser julgado pela Turma a qual pertence o Grupo ou Câmara de Direito Público. Nos demais casos suscitados em Câmaras de Direito Privado, a regra é simples, o 4º Grupo Cível julga.
No âmbito do Direito Penal, o julgamento será realizado pela Turma da qual faz parte a Câmara ou Grupo Criminal em que o incidente for suscitado[22]. Muito embora possa se estranhar a assunção de competência no âmbito do processo penal, onde não há previsão legal, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça gaúcho prevê essa possibilidade para casos em que haja a aplicação supletiva do Código de Processo Civil ao Código de Processo Penal, em que pese inexistirem casos de decisões relacionadas ao Direito Penal proferidas desta forma.
No Tribunal Regional Federal da 4ª Região, os incidentes de assunção podem ser julgados por uma das quatro Seções ou pela Corte Especial. A atribuição da competência das Seções se encontra no art. 9º, inciso IX do Regimento Interno do TRF4[23], onde é estabelecido que cada Seção julgará o incidente em que haja discussão cuja matéria seja de sua competência funcional. Ainda, no que se refere à competência da Corte Especial no julgamento de incidentes de assunção, o art. 7º, inciso XI do Regimento Interno do TRF4[24] define que isso ocorrerá nos casos em que a matéria controvertida competir a mais de uma Seção Especializada.
Dessa forma, quando houver a proposição de incidente de assunção de competência em quaisquer Turmas ou Seções do Tribunal, a competência será da Seção especializada na matéria discutida. Nas hipóteses em que a competência para o julgamento de determinada matéria competir a mais de uma Seção, quem julgará o incidente será a Corte Especial.
Algo semelhante ocorre no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Conforme o art. 12, inciso IX do Regimento Interno do STJ[25], o incidente de assunção proposto será julgado pela Seção especializada na matéria discutida. Entretanto, nos casos em que a competência para decidir sobre a matéria for comum a mais de uma das três Seções do Tribunal, a competência será da Corte Especial, conforme dispõe o art. 11, inciso IV do referido Regimento Interno[26].
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do presente estudo, objetivou-se, através de pesquisa bibliográfica, legislativa e jurisprudencial esclarecer os principais pontos do incidente de assunção de competência, pormenorizando seus aspectos histórico, técnico e prático, visando elucidar sua aplicação.
Buscou-se, inicialmente, comparar a disposição da legislação processual anterior com a atualmente vigente, demonstrando a evolução do instituto, bem como a intenção do legislador. Neste ponto, no decorrer do estudo, foi possível identificar que a remodelação do incidente de assunção de competência vai ao encontro da intenção do legislador de promover mecanismos destinados à uniformização jurisprudencial, que é a principal finalidade do procedimento.
Os pressupostos do incidente ora estudado demonstram, basicamente, que o interesse público deve estar presente em uma questão de direito relevante e com repercussão social. Mas, tais requisitos ainda contam com um complemento importante, que é a não repetição em múltiplos processos, elemento essencial na diferenciação do instituto aqui analisado com relação ao incidente de resolução de demandas repetitivas.
No transcorrer do presente artigo, foi possível constatar que o rol de legitimados para suscitar o incidente de assunção é abrangente, atribuindo às partes envolvidas, Ministério Público, Defensoria Pública ou o relator, de ofício, legitimidade para proposição do procedimento. Isso demonstra a preocupação do legislador em disponibilizar um mecanismo acessível e eficaz para que todos possam cooperar pela uniformização jurisprudencial. No mesmo sentido, as hipóteses de cabimento do instituto são amplas, inexistindo óbices à sua aplicação no âmbito dos tribunais, podendo ser suscitada a assunção de competência em qualquer recurso, remessa necessária ou ação de competência originária do tribunal.
Identificou-se os poucos entendimentos já fixados pelos tribunais através do incidente em tela, bem como sua forma de aplicação conforme disposições dos regimentos internos no que se refere à competência funcional para julgamento dentro de cada um dos tribunais analisados.
Diante de todo o exposto, verifica-se que se trata de um poderoso instituto à disposição dos operadores do direito para dar sentido único às decisões judiciais acerca de um mesmo assunto. Raciocínio semelhante é adotado por Alvim e Didier Júnior (2018, p. 308), ao dizer que:
[...] a assunção de competência deve assumir papel de elevada relevância nos precedentes obrigatórios. O aproveitamento adequado desse instituto pode transformá-lo no mais importante instrumento de formação de precedentes [...]
Assim, conclui-se que o incidente de assunção de competência, ainda pouco utilizado, possui potencial para se tornar uma importante ferramenta de criação de precedentes obrigatórios, dando uniformidade à jurisprudência e garantindo segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
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