RESUMO
Trata-se de uma análise dos caminhos adotados pela Administração Pública após a redemocratização, ou seja, após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. O texto constitucional promulgado em 1988 pretendeu, dentre outras finalidades, afastar a Administração Patrimonialista. Todavia, a Administração passou a adotar um caráter burocrático, focado nos princípios da legalidade e da impessoalidade, o que implicou certo engessamento do aparelho do Estado. Tal modelo deu lugar a uma busca da eficiência, com foco no resultado, característica de uma Administração Gerencial. Na sequência, verificam-se elementos de um novo modelo de Administração Pública, que tem por objetivo a legitimação por meio do procedimento com a inclusão dos particulares no processo de decisão sobre o interesse público, nota marcante de uma Administração Dialógica, que não deixa de considerar a importância da busca pelo resultado. Por fim, pretende-se registrar os novos caminhos trilhados no âmbito do Direito Administrativo, notadamente com as novas preocupações inerentes à atividade administrativa, com o uso cada vez maior de tecnologias como forma de implementar os resultados pretendidos, ampliar a eficiência e a transparência no tocante à Administração Pública. Há também a preocupação crescente com a estabilidade e a previsibilidade nas relações entre particulares e a Administração, de modo a fomentar a segurança jurídica.
PALAVRAS-CHAVE
Administração; Pública; Burocrática; Gerencial; Dialógica.
INTRODUÇÃO
O presente escrito tem por finalidade realizar uma breve análise quanto à evolução da Administração Pública no Brasil. Tal análise terá com ponto de partida a ordem jurídica instaurada a partir da Constituição da República Federativa do Brasil, ou seja, quais os paradigmas da Administração Pública no regime democrático brasileiro.
Embora possa parecer, à primeira vista, algo abstrato, o fato é que a forma como se percebe um instituto jurídico implica diretamente na forma como se interpreta a legislação e, principalmente, como ela é aplicada.
A análise seguirá pelo paradigma da Administração Burocrática, a qual deu lugar a uma Administração Gerencial e que, atualmente, tem se encaminhado para uma ótica dialógica.
Durante o transcorrer do caminho, serão apresentadas as características de cada um dos paradigmas acima, bem como exemplos de sua aplicação, de forma a possibilitar a compreensão da visão geral em cotejo com a prática.
Por fim, serão trazidos elementos atuais que demonstram a preocupação cada vez maior no âmbito da Administração Pública com o consenso, a tecnologia e a estabilidade das relações no campo do Direito Administrativo, consoante às novas tendências exigidas pelos desafios do porvir.
DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BUROCRÁTICA À ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL
A Constituição da República Federativa do Brasil instituiu uma nova ordem jurídica a partir da reunião de pretensões de vários segmentos da sociedade. A Constituinte, na oportunidade, levou em consideração os mais variados anseios dos mais variados grupos da sociedade, conforme as lições de Luís Roberto Barros.
Como exemplo da união dos diversos anseios basta verificar o art. 170 da Constituição da República Federativa do Brasil: tal dispositivo constitucional traz os princípios da Ordem Econômica e elenca, dentre outros, a propriedade privada aliada à função social da propriedade; a livre concorrência (manifestação do liberalismo econômico) e a busca do pleno emprego.
A partir do singelo exemplo é possível verificar o caráter compromissório da Constituição. Nesse sentido, forçoso registrar os ensinamentos de Uadi Lammêgo Bulos, ao definir que a “Constituição compromissória é aquela que reflete a pluralidade das forças políticas e sociais. Típica da sociedade plural e complexa que vivemos, ela é fruto de conflitos profundos (deep conflict), da barganha, do jogo de interesses, do tom persuasivo do discurso político”.
Além da junção dos interesses dos diversos segmentos da sociedade, a Constituinte teve a preocupação de tratar de vários temas inerentes à Administração Pública. Em especial, buscou deixar bastante claro que a Administração Pública não pode servir a um ou a poucos, mas sim a toda a sociedade.
Importante lembrar que a Constituinte não foi um fim, mas um instrumento para alcançar a finalidade pretendida, consoante bem descreve Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “a ênfase deve ser dada à finalidade almejada. Esta é a concretização de ideais – democracia, direitos humanos, justiça social -, mas esta concretização pressupõe receitas adequadas. A busca de tais fórmulas, e a formação do consensus em torno delas, é que deve ser o objetivo fundamental”. Logo, uma das finalidades pretendidas na Constituinte foi a de afastar a administração patrimonialista, de forma a ir ao encontro do viés republicano pretendido.
Em outros termos, dentre vários objetivos pretendidos, o fim almejado foi o de impedir que determinados indivíduos se valessem da estrutura da Administração Pública para atingir objetivos escusos, particulares, desvinculados do interesse da coletividade. Desta feita, a Constituinte buscou afastar a Administração chamada de patrimonialista, cuja estrutura era usada para atingir os interesses pessoais do Administrador.
Registre-se que o cuidado em tratar de temas inerentes à Administração Pública em uma Constituição não é fenômeno novo. O então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, já advertia: “a presença de dispositivos sobre a Administração Pública nas Constituições modernas tem início com as Cartas italiana e alemã, em precedentes que foram ampliados pelos Textos português e espanhol”.
Ao tratar de tais assuntos em um texto constitucional, a Constituinte pretendeu, em linhas gerais, reforçar a importância do tema dentro do Estado Constitucional de Direito. Note-se que várias disposições relacionadas ao Direito Administrativo, por exemplo o devido processo legal, o direito de petição e inúmeros outros assuntos, estão previstos no art. 5º da Constituição da República. Tem-se, desta forma, que correspondem a direitos e garantias fundamentais, cláusulas pétreas, portanto, consoante previsão do art. 60, §4º da Constituição da República. Não é demais lembrar que tais cláusulas pétreas correspondem a um pré-compromisso de uma geração (da Constituinte) para as gerações vindouras, tal qual dispõe Daniel Sarmento ao fazer a analogia do Canto das Sereias na Odisseia de Homero.
Para imprimir concretude ao caráter republicano, a Constituinte elencou vários princípios no caput do art. 37: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Registre-se que esses eram os princípios contidos na redação originária do art. 37.
A análise pormenorizada de cada um dos princípios não é o foco do presente escrito, razão pela qual não se adentrará em minúcias.
Em linhas gerais, a legalidade contida no caput do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil impõe ao administrador público o dever de agir nas hipóteses detalhadas na legislação. O administrador público não detém margem de ação como os particulares, que podem tudo que a lei não proíbe. O enfoque, portanto, é diverso. Registre-se, no entanto, que tal visão corresponde a uma perspectiva clássica, que atualmente tem sido revista, conforme será tratado na sequência. Assim, Diogo Figueiredo disciplina que o princípio da legalidade protege os administrados pela instituição da reserva legal absoluta “à qual está adstrito todo o Estado, por quaisquer de seus entes, órgãos e agentes, mesmo delegados, de só agir quando exista uma lei que a isso determine”.
O princípio da impessoalidade, por sua vez, está umbilicalmente ligado ao caráter republicano da ordem jurídica, pois que a Administração Pública deve buscar o interesse público, e não o interesse particular de um ou outro sujeito. A impessoalidade também assume outro significado para parte da doutrina, como é o caso dos ensinamentos de José Afonso da Silva, no sentido de que os atos da Administração são imputados ao órgão ou entidade, e não ao agente público que o praticou, o que se aproxima do teor do princípio da imputação volitiva.
O princípio da moralidade, por sua vez, impõe uma série de normas ao administrador no trato da coisa pública, pois, nos dizeres de Diógenes Gasparini, “o ato e a atividade da Administração Pública devem obedecer não só à lei, mas à própria moral, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme afirmavam os romanos”. A moralidade administrativa é tutelada, dentre outros instrumentos, pela Lei de Improbidade Administrativa, a Lei nº 8.429/1992 e pelo Enunciado nº 13 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, ao vedar o nepotismo no âmbito da Administração Pública..
O princípio da publicidade, a seu turno, impõe a necessária e mais ampla divulgação dos atos praticados pela Administração. Por meio da publicidade é que se permite o controle dos atos praticados por parte da população. Nos ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, “só com a transparência dessa conduta é que poderão os indivíduos aquilatar a legalidade ou não dos atos e o grau de eficiência de que se revestem”. Isso permite, por exemplo, o denominado Accountability no âmbito administrativo, ou seja, o controle, a fiscalização e a prestação de contas.
Diante do breve cenário, até então exposto, é possível verificar que a Administração Pública, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil, obedecia a um paradigma burocrático, ou seja, fundado na legalidade estrita e na impessoalidade. Tal paradigma tinha por finalidade afastar eventual uso da estrutura administrativa em prol de interesses pessoais.
A título exemplificativo, tem-se que o Legislador, ao elaborar a Lei nº 8.666/93, buscou detalhar de forma pormenorizada o rito da licitação e cada uma de suas fases. Trouxe ainda diversas modalidades licitatórias, cada uma com ritos e peculiaridades próprias. A preocupação, na ocasião, era a de afastar ingerências indevidas por parte do agente público para obter fins escusos.
Nada obstante o importante objetivo almejado, qual seja de evitar o uso da Administração Pública para atender ao interesse do próprio indivíduo, tal modelo trouxe várias consequências bastante negativas. Uma delas é justamente o engessamento da máquina administrativa. O Administrador, ao atuar nos estritos limites estabelecidos pela legislação, não possui margem de atuação, que restringe os possíveis resultados.
Veja o próprio exemplo da Lei nº 8.666/93, a qual disciplina de forma pormenorizada inúmeros temas. Isso tudo pode gerar uma previsibilidade no atuar da Administração, por outro lado, impõe uma morosidade ao procedimento que em nada acresce. Tome-se de exemplo o fato de que o referido diploma, ao dispor sobre a modalidade de concorrência, exige a abertura dos envelopes de habilitação de todos os licitantes para, após, proceder a abertura do envelope contendo os preços. Tal fato gera uma complexidade e uma demora excessiva, além das diversas etapas recursais existentes no certame.
Além disso, cada ente da Administração Pública possui suas finalidades próprias, o que exige atuações pautadas de acordo com tais finalidades. As contratações realizadas no intuito de obter insumos para saúde, por exemplo, não guardam qualquer familiaridade com as contratações realizadas por uma instituição bancária com natureza jurídica de empresa pública.
Assim, cada entidade, cada órgão, possui características próprias, as quais devem ser levadas em consideração para o fiel atendimento do interesse público. Caso contrário, a finalidade não será atingida da forma mais célere e eficiente.
Para corrigir tais limitações, buscou-se alterar a forma como se vê e como se atua na Administração Pública. Com isso, foi elaborado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o denominado Plano Bresser.
O Plano Bresser tinha como objetivo reformular a própria estrutura do Estado, de forma a garantir maior possibilidade de governança e de implementação das politicas públicas. Tal plano buscou, em apertada síntese, imprimir maior eficiência ao aparelho do Estado, reduzindo sua atuação nas áreas que não dizem respeito à função do Estado, e distribuir aos Estados Membros e Municípios as ações de caráter regional e local. Além disso, tal plano pretendeu reestruturar o próprio funcionalismo público.
No ano de 1998 a Constituinte Derivado promulgou a Emenda à Constituição 19/1998, a qual alterou o caput do art. 37 da Constituição, além de outras alterações, para incluir o princípio da eficiência como princípio da Administração Pública, ao lado dos princípios constantes da redação original do aludido dispositivo (legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade).
Quanto ao conceito do princípio da eficiência o Ministro Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco ensinam: “não apenas a perseguição e o cumprimento dos meios legais e aptos ao sucesso são apontados como necessários ao bom desempenho das funções administrativas, mas também o resultado almejado”. Em linhas gerais, o princípio da eficiência busca fazer o melhor com o menor custo possível.
Assim, várias foram as alterações ocorridas na tentativa de imprimir maior eficiência na Administração Pública. Nesse sentido, ocorreu uma diminuição da própria estrutura da Administração com a transferência de várias atividades antes realizadas pelo Estado para os particulares. Assim, a Lei nº 9.491/1997 instituiu o Plano Nacional de Desestatização – PND, com a finalidade de diminuir os custos operacionais do aparato estatal, transferindo à iniciativa privada, por meio da privatização, boa parte das atividades prestadas pelo Estado que não se enquadravam como finalidade precípua da própria estrutura governamental.
Foram criadas as Agências reguladoras, pois o Estado, ao transferir serviços antes realizados por ele aos particulares, passou a fiscalizar e regulamentar tais atividades. De executor, assumiu o papel de regulador. Além disso, a possibilidade de se firmar contratos de gestão, no qual são ampliadas as prerrogativas do ente, ao passo que tal ente se compromete a atingir determinadas metas.
Além das mudanças acima listadas, é possível verificar um movimento em busca da eficiência em outros segmentos. Seguindo a própria linha das licitações, tem-se o exemplo do pregão, por meio da Lei nº 10.520/02, onde a Administração regulamenta a aquisição de bens ou contratação de serviços comuns, independentemente do valor a ser contratado (visão diversa, portanto, das variadas modalidades de licitação previstas na Lei nº 8.666/93, cada qual com sua faixa de preços). Registra-se a atual regulamentação, por meio do Decreto nº 10.024/2019, na qual a Administração Pública Federal deve se valer do pregão em sua forma eletrônica, como regra, consoante o teor do art. 1º do referido diploma, o que possibilita uma maior divulgação do certame e, consequentemente, mais competitividade.
Ainda, o próprio princípio da legalidade teve seu conteúdo e alcance alterados: aquela legalidade estrita deu lugar ao que a doutrina chama de juridicidade, ou seja, não basta apenas seguir o ditame frio da lei, deve-se atuar de forma a atender a todo o ordenamento jurídico, notadamente quanto ao que determina a Constituição da República Federativa do Brasil. Confira-se o escólio de Diogo Figueiredo no sentido de que tal princípio “corresponde ao que se enunciava como um princípio da legalidade, se tomado em sentido amplo, ou seja, não se o restringindo á mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica”. Trata-se, desta feita, do que se denomina de bloco de legalidade.
Retomando o exemplo das agências reguladoras, é possível verificar também a evolução do princípio da legalidade em sua atuação. Mas antes, fundamental compreender que poder regulamentar não se confunde com regulação.
Enquanto o poder regulamentar diz respeito ao art. 84, VI, da CRFB, à prerrogativa que o Chefe do Poder Executivo detém de disciplinar determinadas matérias, a regulação decorre de aspectos técnicos. Assim, quando uma agência reguladora disciplina a forma pela qual a prestação do serviço de transmissão de energia elétrica é realizada, as diretrizes para cabos de alta tensão e construções no entorno das torres de transmissão, tal disciplina decorre da regulação, e não pode poder regulamentar.
Ocorre, portanto, o rebaixamento do tratamento da matéria do domínio da lei para o infralegal. É o que a doutrina denomina de deslegalização ou deslegificação, que, segundo Diogo Figueiredo, trata-se de uma forma de transferência sem delegação “pela qual as casas legislativas abrem um espaço normativo, quase sempre de natureza técnica, em que elas se demitem da função de criar certas normas legais para que outros entes, públicos ou privados, o façam, sob os limites e controles por elas estabelecidos”.
A deslegificação, no entanto, não fica restrita ao âmbito da regulação, das agências reguladoras. É possível verificar tal fenômeno nas licitações. Veja-se o disposto no art. 40 da Lei 13.303/16, o Estatuto das Estatais, no qual dispõe que cada uma das Estatais possuirá um Regulamento de Licitações e Contratos. Ou seja, um documento infralegal que leva em consideração as peculiaridades daquela Estatal. Uma Estatal que explora atividade nuclear, por exemplo, não guarda muita similitude como uma sociedade de economia mista voltada à efetivação do direito à moradia, como a construção de unidades habitacionais. Assim, a contratação de empresas para executar unidades habitacionais para famílias carentes é completamente diversa da contratação de empresas de caráter transnacional para manutenção de turbinas de usinas termonucleares.
Logo, é possível ter em vista que a forma como a legalidade no âmbito do regime jurídico administrativo sofreu alterações no transcurso do tempo, bem como nas alterações legislativas que vêm sendo realizadas, o caráter burocrático que antes permeava a Administração Pública passou a perder força. A busca pelo resultado, calcada na eficiência, exige legislação mais flexível e maior margem de atuação do Administrador. Registra-se, no entanto, que o Administrador ainda está vinculado à lei, deve respeito ao princípio da legalidade (agora juridicidade), fundamento da própria noção de Estado de Direito.
Verifica-se, pois, a nítida alteração de paradigmas: a superação de um modelo burocrático, engessado, por uma nova sistemática voltada ao resultado, a Administração Gerencial, como pretendido no Plano Diretor da Reforma do Aparelho Administrativo do Estado.
DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIALÓGICA E DOS ATUAIS CONTORNOS DO REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
É inegável a evolução que o regime jurídico administrativo sofreu com o passar do tempo. As experiências obtidas deram impulso a novas ideias, institutos jurídicos do direito estrangeiro foram importados pelo legislador e implementados no Brasil.
Um observador distante, ao verificar tais inovações, facilmente pode perceber a inicial preocupação com a legalidade e com a isonomia, que cedeu espaço para a eficiência e busca do resultado. Todavia, esse mesmo observador distante pode verificar que a Administração Pública no Brasil tem caminhado ainda em direção à busca da eficiência, porém, abrindo espaço para a participação cada vez maior da sociedade, uso de tecnologias, busca na aceleração dos resultados e estabilidade nas relações.
A participação dos interessados nos processos de tomada de decisões é cada vez maior, pois a eles são disponibilizados diversos mecanismos de participação, de forma a permitir o ingresso de novas ideias, novos questionamentos e novos pontos de vista.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro já registrava o fortalecimento da democracia participativa por meio do direito de informação, da prática de denúncias perante órgãos de controle, como o Tribunal de Contas, a gestão democrática da seguridade social, da saúde, do ensino público, na Lei Geral de Telecomunicações e outros.
Trata-se, portanto, de uma forma de viabilizar o exercício da democracia e da forma republicana. Nos ensinamentos de Paulo Bonavides “faz-se mister, portanto, acrescentar e admitir que a democracia participativa, sobre transcender a noção obscura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativas, transcende, por igual, os horizontes jurídicos da clássica separação de poderes”.
A doutrina tem chamado tal modelo de Administração Pública de Consensual, na qual se busca ouvir os interessados para chegar a novas soluções para atendimento do interesse público. Odete Medauar assim leciona: “daí decorre um novo modo de agir, não mais centrado sobre o ato como instrumento exclusivo de definição e atendimento do interesse público, mas como atividade aberta à colaboração dos indivíduos. Passa a ter relevo o momento do consenso e da participação”.
Nesse particular, cumpre registrar que a forma republicana de governo não pode ser vista apenas e tão somente como um conceito inerente à Ciência Política, mas sim como uma opção política, instaurada a partir de um momento de redemocratização no Estado Brasileiro, que não só possibilita, mas também que exige a participação popular na tomada de decisão. A Constituição, portanto, reforça o poder do povo, possibilitando e exigindo a participação da sociedade, tal qual remonta a ideia de isegoria.
Além disso, a adoção de soluções baseadas em diálogos e consensos é facilmente verificável na possibilidade de adoção de outros sistemas de soluções de controvérsias que não só por meio do Poder Judiciário. Como exemplo, a Lei 13.129/2015 possibilitou de forma expressa o uso da arbitragem.
Digno de registro que tal abertura não se trata de um processo novo ou exclusivo do Direito Administrativo. No Direito Ambiental há possibilidade de participação popular nas audiências públicas realizadas no bojo do EIA - RIMA - Estudo de Impacto Ambiental, consoante o teor do art. 11 da Resolução CONAMA n 01/1986.
Também é exemplo de participação a própria ideia de iniciativa popular, já prevista na Constituição da República Federativa do Brasil no art. 61.
Além disso, no próprio Direito Constitucional, notadamente no que tange ao controle de constitucionalidade, há a participação de amicus curiae, da ampliação do rol dos legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, nos termos do art. 103 da CRFB. Tem-se, assim, a concretização da ideia da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, consoante aos ensinamentos de Peter Häberle: “O juiz constitucional já não interpreta, no processo constitucional, de forma isolada: muitos são os participantes do processo; as formas de participação ampliam-se acentuadamente”.
Ademais, a participação da população no processo de tomada de decisões é cada vez mais incentivado, não só no Direito Administrativo, mas também em outros ramos do Direito. Pode-se citar a possibilidade de amicus curiae no próprio Código de Processo Civil, nos termos do art. 138.
Os influxos populares, ainda, estão cada vez maiores nas tomadas de decisões em razão das ferramentas trazidas pela tecnologia. É visível hoje, por meio das redes sociais, a influência que a sociedade exerce sobre os mais variados assuntos, como na tomada de decisões por parte dos Poderes Constituídos. É possível ao cidadão, por exemplo, manifestar suas opiniões em projetos de leis no âmbito do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.
Tudo isso demonstra um fato bastante singelo, mas de fundamental importância no âmbito de uma democracia: todo poder emana do povo, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse ponto Carlos Ari Sunfeld trata com maestria: “é que, no Estado Democrático de Direito, os indivíduos não são meros destinatários, isto é, meros sujeitos passivos, do poder. São vistos em conjunto, os verdadeiros titulares do poder político”.
Ainda, quanto ao poder do povo, impende registrar uma vez mais os ensinamentos de Peter Häberle em sua tese sobre a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: “’Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional”.
Em especial ao tema relacionado à tecnologia aplicada aos novos contornos do Direito Administrativo, é possível verificar o uso cada vez maior de instrumentos aptos a aproximar o administrado da estrutura da Administração Pública, seja por meio de processos administrativos integralmente digitais, seja por meio de participação direta dos interessados por meio de sítios virtuais. Ainda, a própria noção de publicidade dos atos processuais, antes relacionada apenas a publicações em diário oficial e jornais de grande circulação, atualmente alguns atos apenas são publicados em veículos de imprensa oficial. A grande maioria dos atos e informações relevantes, no entanto, estão disponíveis em portais da transparência nos sites dos entes administrativos. A tecnologia, aliada à publicidade, permite um maior controle popular sobre os atos da Administração.
Também é possível verificar a tecnologia por meio das contratações públicas, pelo uso do pregão eletrônico, que permite a participação de fornecedores de mais localidades, o que amplia a competição e, consequentemente, implica melhor atendimento do interesse público.
Ainda no tocante às licitações, a possibilidade de permitir tecnologias inovadoras em obras públicas, por meio da contratação integrada prevista na Lei do Regime Diferenciado de Contratações, a Lei nº 12.462/2011. Em tal regime de contratação a Administração elabora um anteprojeto, contendo as diretrizes mínimas, e contrata um fornecedor que irá realizar o projeto básico, o projeto executivo e, ainda, executar a obra, de forma a possibilitar o uso de tecnologias inovadoras que porventura os projetos básicos antes elaborados pela Administração não pudessem contemplar. Ademais, tal regime de contratação tem por finalidade evitar a celebração de termos aditivos em razão da necessidade de alteração do projeto básico, pois que tal projeto foi realizado pelo próprio fornecedor contratado.
A contratação integrada também foi inserida na Lei nº 13.303/16, o Estatuto das Estatais, consoante o teor do art. 42, VI. No referido diploma normativo também foi inserida a possibilidade de contratação semi-integrada (art. 42, V). Tal regime de contratação, em apertada síntese, dispõe que a Administração irá elaborar um projeto básico, mas permite alterações para uso de tecnologias inovadoras para determinadas parcelas do objeto. O que se pretendeu, com isso, foi aumentar a competição, pois que nas licitações de obras, os orçamentos estimados são decorrentes de tabelas oficiais (SINAPI – Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil, por exemplo), o que reduz muito a margem para diminuição de preços. Agora, quando se permite o uso de novas tecnologias, devidamente certificadas, a disputa de preços resta incrementada, pois tal tecnologia, por exemplo, pode ensejar a diminuição dos custos dos insumos, bem como a diminuição do tempo da obra, reduzindo, consequentemente, gastos com canteiros de obras. Assim, a tecnologia inserida no âmbito dos regimes de contratações traz grandes benefícios para o erário.
A tecnologia, portanto, aproxima o indivíduo e a sociedade dos centros decisórios do Estado e diminui custos. Ao lado dessa aproximação do indivíduo à Administração Pública, e dos avanços tecnológicos, é possível também verificar uma grande preocupação na estabilidade das relações jurídicas.
A Constituição da República Federativa do Brasil, no art. 5, XXXVI, estabelece alguns mecanismos para dar efetividade ao protoprincípio da segurança jurídica, como é o caso da proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.
O legislador pretendeu assegurar a segurança jurídica também por meio da Lei nº 13.655/2018, ao o Decreto-Lei nº 4.657/1942, a famosa Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e fez inserir os artigos 20 a 30. Vejamos algumas de suas inovações.
O Legislador pretendeu afastar decisões fundadas em conceitos abstratos que não levam em consideração as consequências da decisão. Assim, ao anular determinado ato administrativo, por exemplo, faz-se necessário, antes, analisar todas as alternativas possíveis e verificar a adequação ao caso concreto.
Outra previsão inserida na LINDB pela Lei nº 13.655/2018 foi a necessidade de se estabelecer regimes de transição quando de uma decisão que estabelecer nova orientação sobre norma de conteúdo indeterminado, consoante o teor do art. 23.
Merece destaque o contido no art. 26, o qual dispõe sobre a possibilidade de se firmar compromissos com interessados para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público, após a realização de condutas públicas. Verifica-se, no caso, nítido caráter negocial na resolução dos conflitos, o que corresponde a uma Administração dialógica, em que a participação da sociedade legitima o processo em si.
Não é demais lembrar que esse aspecto consensual possui ramificações inclusive no âmbito da Direito Penal, com o Acordo de Não Persecução Penal, inserido pelo famoso Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019, que inseriu o art. 28-A no Código de Processo Penal) e que já constava da Resolução do CNMP nº 181/2017, alterada pela Resolução nº 183/2018, também do CNMP. O mesmo Pacote Anticrime inseriu a possibilidade de Acordo de Não Persecução Cível no âmbito das ações de improbidade administrativa. Se a busca de soluções consensuais são incentivadas no âmbito da improbidade administrativa e na esfera criminal, com mais razão a consensualidade deve estar presente na atividade administrativa.
Quanto ao art. 30, o Legislador estabeleceu a imposição de incrementar a segurança jurídica no âmbito da Administração Pública com a expedição de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas, instrumentos estes que possuem caráter vinculante para o órgão/entidade, nos termos do parágrafo único do art. 30 da Lei nº 13.655/2018.
Por fim, também se pretendeu imprimir concretude ao protoprincípio da segurança jurídica por meio de dois importantes instrumentos: (i) intermédio da Lei da Liberdade Econômica, a qual buscou assegurar à iniciativa privada uma menor ingerência do Estado, facilitando o exercício da atividade econômica; (ii) com a regulamentação da Desconsideração da Personalidade Jurídica não só no Código de Processo Civil de 2015, mas também no Código Civil, o qual teve a redação do art. 50 alterada pela Lei 13 nº 13.874/2019, de forma a tornar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica mais regrado, afastando, portanto, eventual insegurança que o instituto poderia implicar em determinados casos.
CONCLUSÃO
No caminho percorrido resta bastante clara a pretensão de refutar o uso da coisa pública para o interesse próprio, afastando, portanto, da Administração Pública, aquela parcela disfuncional de sujeitos. Todavia, o apego à legalidade estrita e à impessoalidade trouxe ritos inflexíveis, com excesso de formalismo, o que trouxe a necessidade de se buscar alternativas para incrementar o resultado. Com isso, a Administração Burocrática foi paulatinamente substituída pela Administração Gerencial.
A Administração Gerencial, por sua vez, também não se mostrou à altura das exigências da sociedade, razão pela qual, sem deixar de lado a preocupação com o resultado pretendido, buscou se adequar aos anseios da coletividade, de forma a permitir uma maior participação dos interessados no processo decisório dos mais variados assuntos.
Assim, na medida em que a sociedade evoluiu e se torna cada vez mais complexa, novos problemas, cada vez mais complexos, também surgem e exigem, desta forma, novas medidas. Logo, a solução não pode partir de um sujeito ou de poucos agentes isolados, mas sim partir de um consenso, de um diálogo, no qual se conjugue os mais variados pontos de vista e, assim, chegar a uma solução mais adequada.
Além disso, a complexidade das relações hodiernas também exige parâmetros, balizas na atuação da Administração Pública, de forma a permitir uma previsibilidade tanto para os administrados, quanto uma segurança para os próprios agentes públicos, razões pelas quais houve um incremento na transparência e na busca pela segurança jurídica.
De mais a mais, forçoso reconhecer que a sociedade vive hoje, mais do que nunca, em um momento de profunda reflexão e busca por novas soluções para resolução de questões novas e com potencial prejudicial enorme, como é o caso da pandemia pela COVID-19 e discussões sobre reforma administrativa. Assim, a releitura dos institutos jurídicos e a busca por soluções eficazes exige a presença de todos os atores envolvidos.
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