A ADPF 548 E UMA LIÇÃO DE DEMOCRACIA
Rogério Tadeu Romano
O Supremo Tribunal Federal (STF) referendou, em 31 de outubro de 2018, liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 548 para assegurar a livre manifestação do pensamento e das ideias em universidades. Em seu voto, seguido por unanimidade, a relatora salientou que os atos judiciais e administrativos questionados na ação contrariam a Constituição Federal de 1988 e destacou que a autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade.
A ADPF 548 foi ajuizada pela procuradora-geral da república, Raquel Dodge, contra decisões de juízes eleitorais que determinaram a busca e a apreensão de panfletos e materiais de campanha eleitoral em universidades e nas dependências das sedes de associações de docentes, proibiram aulas com temática eleitoral e reuniões e assembleias de natureza política, impondo a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos nas eleições gerais de 2018 em universidades federais e estaduais. As medidas teriam como embasamento jurídico a legislação eleitoral, no ponto em que veda a veiculação de propaganda de qualquer natureza em prédios e outros bens públicos (artigo 37 da Lei 9.504/1997).
Segundo a relatora, a liberdade é o pressuposto necessário para o exercício de todos os direitos fundamentais, e os atos questionados “desatendem aos princípios assecuratórios da liberdade de manifestação do pensamento e desobedecem às garantias inerentes à autonomia universitária”.
Segundo ela, as liberdades de informação, de ensino e aprendizado e as escolhas políticas fazem com que haja “perfeita compatibilidade entre os princípios constitucionais e a legislação eleitoral que se adota no Brasil e que tem de ser cumprida”.
A ministra Cármen Lúcia salientou ainda que a exposição de opiniões, ideias ou ideologias e o desempenho de atividades de docência são manifestações da liberdade e garantia da integridade individual digna e livre. “A liberdade de pensamento não é concessão do Estado, mas sim direito fundamental do indivíduo que pode até mesmo se contrapor ao Estado”, concluiu.
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão virtual, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 548, para declarar nulas decisões da Justiça Eleitoral em cinco estados que impuseram a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos em ambiente virtual ou físico de universidades às vésperas do segundo turno da eleição de 2018. As decisões envolviam busca e apreensão de materiais de campanha eleitoral em universidades e associações de docentes e proibição de aulas com temática eleitoral e de reuniões e assembleias de natureza política.
O Ministério da Educação parece ter desconhecido essa decisão. Enviou às universidades pela Rede de Instituições Federais de Educação Superior. O órgão ressaltou que as recomendações feitas pelo procurador Ailton Benedito visavam a “tomada de providências para prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino”. O episódio provocou polêmica e protestos de professores, que definiram a iniciativa do MEC como uma tentativa de intimidação, contrariando a liberdade acadêmica.
Sabe-se que o presidente Jair Bolsonaro levantou como bandeira de campanha o discurso de intervenção nas universidades, sob o argumento que deveria haver uma intervenção nas estruturas a fim de garantir opções de gestão não vinculadas a partidos de esquerda.
Com o devido respeito tal entendimento afronta o magno princípio da autonomia universitária.
A autonomia universitária vem consagrada no Texto de nossa Lei Maior, em seu artigo 207. Coube à Constituição de 5.10.1988 elevar, pioneiramente na história da universidade no Brasil, a autonomia das universidades ao nível de princípio constitucional. Dispõe o artigo 207:
“Art. 207 – As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.
Como se vê, desde logo, nossa Lei Maior preocupa-se em definir o conteúdo da autonomia das universidades, que abrange “a autonomia didático-científica” ou seja, suas atividades-fim e a “autonomia administrativa e financeira”, suas atividades-meio.
Diga-se que ainda era possível se fazer uma interpretação segundo a qual, diante do art. 37 da Lei nº 9504/97, não era possível fazer proselitismo político (ou, como no caso, declarações com conotações políticas contra o PR) em locais e equipamentos de universidades, por serem aí considerados bens públicos, sendo que só em 2020, com o julgamento da ADPF 548, deu-se outro entendimento a esse dispositivo legal.
Dir-se-ia que esses servidores, enquanto titulares de cargos de expressão (reitor e pro-reitor) e de confiança se submetem a um código de conduta ética, que é o Decreto 4.081/2002, que diz, no art. 6º, inciso I, ser lhe vedado "opinar publicamente...contra a honorabilidade ou desempenho funcional de outro agente público". Houve reação por parte da sociedade.
O Ministério da Educação informou, na noite de 4 de março do corrente ano, que cancelou o ofício enviado às universidades federais em que tratava manifestações políticas como “imoralidade administrativa”. O posicionamento foi encaminhado às instituições federais de ensino após o Ministério Público Federal cobrar explicações da pasta.
O novo ofício, assinado pelo secretário de Educação Superior, Wagner Vilas Boas de Souza, afirma que o documento enviado às instituições, em fevereiro, visou “unicamente prestar informações às universidades sobre a possibilidade e conveniência de regulamentação (no exercício da autonomia universitária) acerca da cessão e utilização de seus espaços”.
Para fundamentar a posição contrária à instituição da autonomia universitária, o MEC se baseou numa manifestação do procurador Ailton Benedito. O documento classifica manifestações políticas como atos de “imoralidade administrativa”.
Disse bem a ministra Cármen Lúcia que “impor-se a unanimidade universitária, impedindo ou dificultando a manifestação plural de pensamentos é trancar a universidade, silenciar o estudante e amordaçar o professor. A única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana. E tirania é o exato contrário de democracia.
A autonomia universitária é produto do Estado Democrático de Direito.
A autonomia universitária leva em conta quatro concepções:
– ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
– a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais;
– a gestão democrática do ensino público, na forma da lei.
– a garantia do padrão de qualidade.
A autonomia universitária vem desenhada na arquitetura constitucional a partir de uma cadeia normativa inaugurada pelo art. 207, mas também composta pelas atinentes aos direitos fundamentais da liberdade de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e de reunião (art. 5º, incisos IV, IX e XVI), ao ensino pautado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o pluralismo de ideias (art. 206, incisos II e III), à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação (art. 220, caput).
Atribui-se às universidades um poder autônomo, restringível exclusivamente por norma de mesma hierarquia constitucional, que permitisse às universidades concretizarem seu papel de verdadeiras instituições de garantia dos direitos fundamentais. Isso significa que apenas normas de natureza, ou hierarquia, constitucional podem limitar a autonomia que foi concedida pelo poder constituinte que é soberano, de forma plena e sem limitação. Eventual modificação da autonomia universitária, portanto, só será legítima e for efetuada por meio de Emenda Constitucional, deixando aqui em aberto a necessidade de se perquirir, ainda, o fato de ser a autonomia universitária uma garantia, e, portanto, enquadrada nos limites materiais a reforma constitucional.
Volto-me, outrossim, àquela lição da ministra Cármen Lúcia no julgamento citado:
“Vive-se ou não a Democracia. Ela não existe pela metade. Não vale apenas para um grupo. É garantia de liberdade de todos e para todos. Pode ser diferente o pensar do outro. Não é melhor, nem pior, por inexistir verdade absoluta. Expressando-se livremente o pensamento, há de ser cada pessoa respeitada. Há modelos vários de experiências democráticas. O modelo tirânico e autoritário é um: a intolerância do outro, o não suportar que outro pense, menos ainda de forma diferenciada do tirano. O marco civilizatório atingido deveria ter superado todas as formas ditatoriais, estatais e sociais, que impõe a atenção permanente para que não se resvale em inconstitucionalidades violadoras das liberdades.”
O respeito aos direitos e às liberdades é o coração do Estado de Direito.
Sendo assim a Constituição não se compadece com práticas antidemocráticas, não deixa dúvida ou lacuna quanto aos princípios ali adotados, não contemporiza com práticas diversas da garantia de todas as formas de liberdades e de sua manifestação.
Fala-se na Lei n. 9.504/1997. Ora, essa norma somente, por óbvio, terá interpretação válida diante do que dita a Constituição que garante todas as formas de manifestação da liberdade de pensamento, de divulgação de ideias e de reunião dos cidadãos.
Liberdade de pensamento não é concessão do Estado.
Afinal, então, o que é autonomia? Ensina-nos a ministra Cármen Lúcia:
A autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais. Reitere-se: universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política. Seu título indica a pluralidade e o respeito às diferenças, às divergências para se formarem consensos, legítimos apenas quando decorrentes de manifestações livres. Discordâncias são próprias das liberdades individuais. As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam. Não se tornam por isso ingratas. Democracia não é unanimidade. Consenso não é imposição, é conformação livre a partir de diferenças respeitadas.
É preciso atenção e cautela diante dos sucessivos flertes autoritários do atual governo que, sistematicamente, afasta-se do Estado Democrático de Direito.