COVID-19. Festas clandestinas. Coletivismo e individualismo

Leia nesta página:

A afirmação de que se consegue tudo sozinho na vida é a maior das falácias já inventadas. Desde que nasce, o indivíduo desfruta da vida social, das produções pela sociedade. Individualismo não tem vez, e nunca terá

Foi ao ar, no Domingo Espetacular, a reportagem do jornalista Roberto Cabrini sobre as Festas Clandestinas. Encontrei completo em outro canal no YouTube, mas serve para este artigo.

SIGNIFICADOS E SIGNIFICANTES

 

Michaelis On-line
Coletivismo
sm Polít, Sociol
Sistema político e econômico que se opõe ao individualismo e se caracteriza, do ponto de vista econômico, por pregar a abolição da propriedade privada e a coletivização dos meios e dos instrumentos de produção, e no qual o Estado se encarrega de repartir a riqueza. Do ponto de vista político, o coletivismo se caracteriza, em termos ideais, pela defesa e vigência do princípio democrático.
Individualismo
sm
1 Filos Doutrina pouco solidária que valoriza a autonomia individual, em detrimento da hegemonia da coletividade.
2 Econ, Filos, Polít Teoria ética, econômica ou política que faz prevalecer o direito individual sobre o coletivo.
3 Em ética, conceito em que os valores se definem com base no indivíduo.4 Filos Doutrina que preconiza a importância ou o valor da pessoa e procura diminuir o papel da tradição e autoridade como fatores determinantes do pensamento e da ação.
5 Biol Associação de dois organismos, interdependentes nutricionalmente, que forma um indivíduo distinto, diferente de ambos, por sua forma estrutural e condições de vida.
 

DESTAQUES DA REPORTAGEM

  • Tempo 1:22 — "Não sou eu que tô morrendo";
  • Tempo 4:58 — "Por que precisamos comer, pagar conta".

 

CONTRATO SOCIAL

Debates — ou discussões? — sobre o dever com a coletividade têm causados inúmeras divergências. Há comunidades afirmando que não há contrato social, pois não há adesão de todos, como ocorre na democracia pelo sufrágio universal. Por exemplo, votos nulos e brancos aumentaram muito antes da pandemia atual. Disso, a lógica de que quem venceu não foi pela "maioria" do povo. Até o século XX, sendo exato, até 1985, existiam exclusões para se votar. Mulheres não votavam, até 1930; os analfabetos eram também excluídos, como ocorreu na Constituição de 1891 (art. 70, § 1º, 2º), na Constituição de 1937 (art. 117, parágrafo único, a) — os analfabetos eram muitos no Brasil, desde o Império; de certa forma, intencionalmente, os analfabetos foram excluídos até 1945, contudo, pela nova redação [Art. 117 - São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de dezoito anos, que se alistarem na forma da lei e estiverem no gozo dos direitos políticos. Redação dada pela Lei Constitucional nº 9, de 1945)] puderam votar. "Estranhamente", a norma do art. 132, I, da Constituição de 1946 excluiu os analfabetos ao direito de voto. Na norma do art. 142, § 3º, a, da Constituição de 1967 persistia a exclusão. Somente com a CRFB de 1988 os analfabetos puderam votar (art. 14, § 1º, II, a).

E não se ouve dizer, dos insatisfeitos com a CRFB de 1988, que "naqueles tempos não existia contrato social, pois não eram todos que votavam. O passado era" grandioso ", as democracias, ainda que fosse no" regime militar "," maravilhosas ". A atual democracia é uma" perversão ".

Decerto, quando o status quo utilitarista começou a mudar, os saudosistas dos" bons tempos "não gostaram. A mudança brusca, sem qualquer hesitação, ocorreu com a proclamação da CRFB de 1988. O" pior ", o ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal.

 

TRABALHAR PARA VIVER. VIVER PARA TRABALHAR

Trabalhar faz parte da vida. Qualquer ser vivo precisa" trabalhar ", isto é, mobilizar-se para, pelo menos, pegar o fruto na árvore. Ou será que cai na boca e pré-mastigado? Em outro artigo mencionei sobre direito de propriedade privada. Na Idade Média, o direito de propriedade era para poucos, a igreja e os reis tinham direitos de propriedade. Demais tinham que trabalhar nas terras dos senhores feudais. John Locke dizia que todo ser humano tem direito de propriedade. O problema que Deus deu tudo para todos. Ora, se Ele deu, quando é que Ele disse que alguém teria? Quantidade? Tudo ou pouco? Dividir ou não? Se na Terra não é possível encontrar respostas, além dela é necessário para poder viver, ou este planeta seria uma carnificina, muito mais do que é. Pela força física, pelo poder das armas, pelo poder da propriedade privada, principalmente pelo latifundiário, imaginem. Então, para não ser um mundo de eternas carnificinas, as invenções; e a ética sempre mudou, assim como a moral. A história de paz é uma invenção, que muito não encontra sustentáculo. Prefeituras, em plena pandemia, expulsam moradores irregulares. São ocupantes de prédios abandonados há tempo, contrariando a função social da propriedade.

Houve significativo aumento de moradores de rua durante a pandemia. Muitos perderam suas moradias por falta de quitações. A LEI Nº 10.257, DE 10 DE JULHO DE 2001 é mais uma dentre muitas, somente"no papel". E a especulação imobiliária? Alguns moradores, como pescadores, a vida pacata. Algum turista na localidade, com bom poder aquisitivo, constrói sua residência. Tem amigos também abastados. Novos moradores, novas construções. A prefeitura, então, aproveita para incentivar novas edificações sejam residenciais ou comerciais. Os novos empreendedores podem conseguir alguns descontos nos tributos. Afinal, os pescadores são pacatos em suas vidas e a cidade não" acompanha o progresso ". Enquanto isso, os moradores antigos ficam intranquilos com os novos moradores. Estes constroem suas residências, sem preocupações com os moradores antigos. Os novos serviços são caros para os moradores antigos, não para os novos. Grupo de pressão (lobby) consegue que a prefeitura seja" flexível ", pois os novos investidores querem garantias, isenções etc. Todos ganham, a cidade, os empreendedores, os moradores antigos, a natureza. Aquela fonte d'água abandonada, mas servia aos moradores, deve se adequar" aos novos tempos ". Licitação. Concessionária. A distribuição é feita, e todos devem pagar pelo serviço público, independentemente se moradores antigos ou novos. Nova empresa, de grande porte. Parte da água mineral é, em nome do progresso, concedida (concessão pública) para empresa de vazamento de água mineral. O problema, alguns moradores, os moradores antigos, ficam sem água em suas torneiras. A envazadora se compromete construir reservatórios para atender estes moradores. A fonte de distribuição fica longe, os moradores" contemplados "devem se deslocar, uns dois quilômetros. De início, a mesma empresa disponibiliza, por concessão, transporte público. A tarifa é simbólica. No final, vão-se as carnes dos peixes pescados pelos pescadores, mas ficam as espinhas e lembranças de bons tempos.

Recomendo ler Arquitetura da Discriminação: Jogos olímpicos de 2016, Morro da Favela e Vila Autódromo.

 

OS IDEAIS DA DIGNIDADE HUMANA

Os iluministas idealizaram um mundo para todos, sem distinções — claro, comparando com os direitos humanos, neste início de século XXI, muitas das suas ideias seriam incompatíveis, já que a maioria era patriarcal, homofóbico, sexista etc. John Locke acreditava na liberdade religiosa, e não na intolerância religiosa (Carta da Tolerância); no Primeiro Tratado sobre o Corpo Civil, não existia, para Locke, poder para os monarcas, por remontar a Adão e Eva — minha dúvida, se ambos tinham" poder ", como a mulher sempre foi contextualizada como" sexo frágil "e como era possível o crédito de estupro marital? Feliz Dia Internacional da Mulher! Outro iluminista contra a intolerância era François-Marie Arouet, , ou simplesmente Voltaire (Tratado sobre a Tolerância).

Notem. John Locke, Voltaire, Immanuel Kant, todos tinham em comum o sentido de algo superior aos seres humanos. Kant, porém, revolucionou o pensamento sobre Deus, em poucas palavras, já que não dá para provar é melhor deixar para lá (Crítica da Razão Pura):

Disto resultará, depois, com todo rigor, que não podemos conhecer a Deus, porque este objeto, Deus, nunca se nos apresenta intuitivamente. Teremos, certamente, o seu conceito, mas não o seu conhecimento imediato, pois não é Deus um objeto sensível, um fenômeno, cuja intuição nos seja acessível. Tudo quanto se afirma de Deus no conhecimento, será negação, e ao dizer que é infinito, entender-se-á que não é finito, etc. O importante, pois, é não tirar da ideia que não existem conhecimentos propriamente ditos sem intuições, e intuições sem objetos, objetos sem fenômenos.

 

EM NOME DE QUEM?

Em tempos de calorosos e profundas defesas de Deus no Brasil, não é inoportuno frisar sobre caridade. Solidariedade, caridade. Maioria das religiões considera a solidariedade e a caridade como instrumentos para se alcançar Deus. Por quê? Ser caridoso ou solidário representa profundo respeito pela vida; vida dado por Deus. O desprezo pela vida é desprezo por Ele. Jesus disse sobre a importância se se ajudar o próximo, não esperando nada em troca.

" Deus está morto! ", será? Nietzsche não quis matar Deus, muito menos destruir qualquer religião. Contudo, era ferrenho crítico da moral religiosa. A vida material deveria ser vivida, sem medos e receios, e não em função de um paraíso celestial e, sim, poder ser feliz. Viver, e não viver esgotando-se em vontade e mais vontade. O que é ser niilista. Existem várias categorias de niilistas, mas não vem ao caso, no momento.

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Ainda que Deus tenha morrido, literalmente, negando-se todos os valores construídos em tono do ser humano, conforme os defensores da filosofia da Alcova, ninguém nasceu sozinho, ninguém aprendeu do nada, ninguém consegue ter algum objeto manufaturado sem a presença humana. Todos são dependentes um dos outros. A ideia de autopossessão e autonomia da vontade com" posso tudo ", e que se" danem os outros "é uma construção falaciosa. E isso é passado como se fosse" natural ". Ora, não é, e jamais será, qualquer defesa ao egoísmo, de desprezo pela vida alheia. Não existe economia sem o ser humano, a não ser que os robôs trabalhem para eles mesmos quando da extinção da humanidade.

Em todas as religiões existem: solidariedade, caridade mor etc. — recomendo assistir, para quem nunca assistiu, Entre o Céu e a Terra - Solidariedade.

 

DIREITO DA ALCOVA OU DIREITOS HUMANOS

Admitir propriedade privada como direito superior à vida humana é coisificar, instrumentalizar o ser humano. Quando dizem, os defensores da Alcova, que a propriedade é direito natural, e que ninguém tem o direito de se apropriar mediante violência; a violência já existe quando na defesa da propriedade se faz da vida de outro ser humano mera propriedade. Relega-se a vida humana na condição de menosprezo, de meio para se obter prazer pessoal, ainda que a outra pessoa seja diminuída em sua dignidade. E as festas clandestinas refletem isso.

Quem está trabalhando necessita de dinheiro, como bem dito, para pagar contas, alimentar familiares etc. Quem está se divertindo, supõem-se, não necessita do dinheiro gasto para pagar contas etc. Quem, realmente, urge dos centavos, não irá para qualquer festa clandestina, a não ser como trabalhador. No entanto, pela ideia de propriedade privada, na amplitude da Alcova, importa tão somente o próprio prazer.

No Brasil, clamores de patriotismo ecoam. Ressoa também" país de Deus ". Incongruências entre falas e princípios cristãos. Não existe Deus, como alguns asseveram. Liberdade de expressão. Existem sentimentos independentes de se ter ou não religião. São os sentimos nobres, como altruísmo, compaixão, solidariedade, capazes de garantir a sobrevivência da espécie humana. Quando falham, isto é, quando não postos em prática, o medo da morte é o frenador dos impulsos hostis. Por exemplo, ninguém quer uma guerra nuclear, muito menos guerras biológicas., por mais que algumas pessoas tenham condições financeiras para comprar abrigos subterrâneos. Se alguns desprezaram, desdenharam de qualquer tipo de guerra, por ter abrigo subterrâneo, provavelmente repensou, pelo isolamento social. Soma-se o medo de se perder familiar pela doença.

Qual a condição que fez a espécie humana sobreviver? Não foram os descasos, a filosofia da Alcova; foram solidariedadeperdãoreconciliaçãocaridade. Ainda que qualquer ajuda seja meio para divulgações de produtos e serviços, os seres humanos, acionistas ou donos, sentem dentro deles: nada controla seres humanos desesperados, famintos, presenciando, sem poderem fazer nada, mortes de familiares. Por mais que o individualismo esteja em voga, como um sacerdócio, é o coletivismo o núcleo da sobrevivência da espécie humana.

Sim. É possível que os trabalhadores tenham ajudas financeiras além do auxílio emergencial. O dinheiro pago para se divertir pode ser doado para as famílias sem renda. Mas não quero ganhar sem trabalhar, dirão os trabalhadores. Trabalho. Essa palavra tem significados. Na Grécia (a.C.), trabalho era para escravos; filósofos e aristocracia não trabalhavam. Na Idade Média, o trabalho era para camponeses, não para os nobres, o clero. Trabalho, na Revolução Industrial (século XVIII), era para crianças, idosos, gestantes, não detentores dos meios de produção. Trabalha braçal, labuta diária, com horários exaustivos, não são para quem conseguiu um patamar econômico e financeiro capazes de dar tempo livre para se dedicar a si, dedicar-se à família. Os tempos mudaram. As vertiginas das mudanças, pelas tecnologias e pelas ficções jurídicas, alcançaram patamares de insustentabilidade para o meio ambiente, para o próprio ser humano. Não há possibilidade de se defender a propriedade privada enquanto o valor supremo se reduz, a vida.

O impasse, ou qualquer discussão sobre" trabalhar para movimentar a economia ", em tempos de pandemia, pode ser resolvido simplesmente pela sentido do coletivismo.

Imagine. Num apartamento, o morador presencia uma mulher apanhando na rua:

  • Não é do meu interesse;
  • Não é meu familiar. Por quê se intrometer?
  • A mulher merece apanhar.

Agora imagine. Pandemia, pessoas passando necessidades e pessoas abastadas, ou não passando necessidades:

  • O dinheiro é meu e fruto de meu trabalho;
  • Cada qual viva como puder;
  • Um dia todos morrerão. Quero morrer feliz;

Comparando ambos. É possível relativizar o valor da vida humana? Se assim for," Não é de seu interesse "quem passa fome e"O dinheiro é meu e fruto de meu trabalho. Um dia todos morrão. Quero morrer feliz"

Todavia, a vida tem valor soberano, a dignidade de outro ser humano é valiosa como a minha vida, então, todos possuem o mesmo valor. A minha ação pode ou não garantir esse valor supremo e universal.

Coletivismo (dignidade humana) e individualismo (filosofia da Alcova)?

Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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