INJÚRIA RACIAL E CRIME DE RACISMO: DIFERENÇAS IMPORTANTES

09/03/2021 às 15:36
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As diferenças entre os crimes de preconceito de injúria e racismo e a visão do STJ e STF.

Palavras-Chave: Direito. Injúria racial. Injúria preconceituosa. Racismo. Lei nº 7.716/1989. Art. 140 § 3°. Código Penal. Raça. Cor. Etnia. Religião. Origem. Nacionalidade. Condição de idoso. Portador de deficiência física. Indivíduos. Coletividade. Grupos. Minorias. Depreciativas. Intolerância. Preconceito. Discriminação.  Inafiançável. Imprescritível. Retratação. Perdão judicial. Reclusão.

 

NOTA: artigo publicado no site Lima e Volpon Advogados, disponível em: <https://limaevolpon.adv.br/injuria-racial-e-crime-de-racismo-diferencas-importantes/>

 

Em recente reportagem chamou-me atenção a falha praticada pela incorreção do texto ao confundir o crime de “injúria racial” com o “crime de racismo”, colocando-os no mesmo balaio (ou no mesmo saco de farinha - ejusdem farinae).

Logo de saída, a previsão da injúria racial está no Código Penal (CP), em seu art. 140, parágrafo 3º, enquanto o crime de racismo é previsto na Lei nº 7.716/1989.

Pela diferença nos dispositivos, os conceitos são distintos na medida em que a injúria racial é a ofensa à honra de alguém, proferida por meio de palavras depreciativas, utilizando-se de elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência física e, de outra banda, o crime de racismo é prática discriminatória mais ampla, que atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, atingindo a integralidade do conjunto de pessoas, em marginalização social.

Falemos, primeiramente, da injúria racial.

Alguns professores e doutrinadores de Direito Penal preferem chamar esse crime de “injúria preconceituosa”, talvez mais adequada sob o prisma de sua proteção e amplitude da repulsa, justamente nos aspectos que marcam as diferenças diante do crime de racismo e suas definições da Lei nº 7.716/1989 (v.g. Prof. Rogério Sanches Cunha que escreve injúria preconceituosa).

A intenção na injúria preconceituosa é humilhar e rebaixar uma ou mais pessoas, porém determinadas, em voluntária inferiorização de indivíduos específicos, utilizando-se de palavras escritas ou faladas, gestos, sinais ou símbolos, sempre de forma discriminatória e intolerante, como são alguns exemplos posicionar-se a alguém e indicá-lo, diretamente ou por terceiros, como “macaco”, “negrão”, “africano”, “turco”, “judeu”, “baiano”, “japa”, “amarelo”, “matusalém” ou “deformado”, e por aí afora dentre inúmeras outras desprezíveis ofensas.

Ressalte-se, é necessária a vontade livre e consciente de injuriar (dolo), com o fim específico de discriminação em razão da raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência física, não sendo suficiente para sua configuração a mera referência a dados discriminatórios ou linguagem ofensiva.

É consenso que no campo do Direito Penal é necessária a verificação do contexto dos fatos, não sendo raro julgados que inadmitem a injúria racial por falta de dolo, mormente pela circunstância de mera discussão, quando a afronta é produzida no calor da disputa ou eventual animosidade e, sobretudo, com ofensas mútuas, devendo ser acrescido que também no campo civil não gera indenização por danos morais (cf. TJ/SP: Ap. Cível nº 1002012-87.2018.8.26.0438 e Ap. Crim. nº 1500364-26.2019.8.26.0326).

Com efeito, entendem alguns julgados que não restaria configurada a infração penal ante a ausência do elemento subjetivo específico, sobretudo por ser a injúria preconceituosa um ato grave que não se equipara à mera ofensa, havendo risco de ocorrer a banalização desse crime frente a outras figuras penais (p. ex. ameaça, injúria simples etc.).

É necessário um dolo, a vontade consciente de praticar a conduta com o fim específico de macular a honra alheia, inexistindo tal elemento nas expressões proferidas no calor de uma discussão ou em um debate ou crítica.

A injúria por preconceito tem em seu núcleo a proteção à intolerância e a repressão à vontade de menosprezar, segregar, magoar e inferiorizar, ficando claro que presentes as repugnantes intenções, a condenação será imposta (cf. TJ/SP: Ap. Crim. 1501529-87.2019.8.26.0624).

Útil, portanto, chamar atenção aos parágrafos acima para deixar claro que o fato de os Tribunais reconhecerem que a ofensa proferida no calor da discussão não configuraria infração penal por injúria preconceituosa, ante a ausência do elemento subjetivo específico, a verdade é que ninguém teria salvo-conduto para lançar contra outrem ofensas depreciativas.

Conforme mencionado, os fatos ocorridos são sempre avaliados caso a caso e, sem prejuízo, já tivemos decisão de manutenção da injúria preconceituosa quando as palavras de cunho racial, contendo expressões alusivas à raça e à cor da vítima, atingiram a honra de adolescente que se sentiu ofendido dado a sua identidade negra (cf. STJ: AgRg no REsp 1832213/SC).

 

Em outra direção extrai-se o conceito de crime de racismo da Lei nº 7.716/1989, na esteira de uma prática que atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, por força da discriminação a um conjunto de pessoas, que se sentem como um agrupamento impulsionado ao largo da sociedade.

Mais fácil para se entender é verificar os vários dispositivos da Lei que comportam o crime de racismo, porque resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, quando houver: (i) recusa ou impedimento de acesso a estabelecimento comercial, negando-se serviço, atendimento ou recebimento de cliente ou comprador; (ii) impedimento ou obstáculo ao acesso de alguém a qualquer cargo da Administração Pública; (iii) negativa ou óbice a emprego em empresa privada; (iv) impedimento ou óbice, por qualquer meio ou forma, de casamento ou convivência familiar e social; (v) prática, indução ou incitação de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional; dentre outras inúmeras práticas ali listadas.

Veja-se que a proteção contida na lei em comento abarca a proibição de marginalização, desfavorecimento e estigmatização de pessoas pertencentes a certos grupos, cerceando-os de direitos que, constitucionalmente, são comuns a todos e tidos por universais, tais como a igualdade e o livre trânsito para ir e vir.

Em outras palavras, o crime de racismo tenta eliminar a realização que porventura pode eclodir em mentes deturpadas acerca da convicção de uma superioridade capaz de subjugar uma suposta categoria menos digna, de desprezível qualidade, não merecedora de um exclusivo círculo social.

Bom dizer que a lei não delimita o crime contra minorias, já que não usa essa expressão, uma vez que essa definição poderia levar a erro se tomada sob aspecto numérico ou mesmo se somente considerada no sentido de pessoas em situação de dependência ou desvantagem social.

O conceito está mais relacionado à discriminação e ao objetivo de impedir a pretendida dominação de alguns contra qualquer grupo, ainda que seu ilegal exercício seja praticado por pessoas numericamente inferiores, bastando que estes queiram levar a cabo por produção própria ou por incitação/indução as condutas descritas na Lei nº 7.716/1989.

Nem mesmo o rol da lei de racismo é exaustivo, pois não se limita às expressões das várias figuras típicas de crimes resultantes de discriminação ou preconceito contra raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, haja vista o próprio Superior Tribunal de Justiça sinalizar que é possível, sim, enquadrar como racismo ataques contra mulheres e homossexuais e, em especial, ter o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmado em julgamento que para o combate aos crimes de ódio, também a homofobia e a transfobia devem ser consideradas como espécies do gênero racismo, sem prejuízos de inclusão de quaisquer crimes por orientação sexual ou identidade de gênero (cf. STJ: AgRg no AREsp 686965/DF; CC 102.454/RJ e RCH 35.121/PR) e (cf. STF: ADO 26 e MI 4733).

Alguns casos de repercussão nacional são interessantes para ilustrar a diferença entre os crimes, como o que ocorreu no Tribunal do Rio Grande de Sul (TJ/RS), quando foi aceita a denúncia do Ministério Público por injúria racial no episódio dos torcedores do time do Grêmio em insulto ao goleiro do Santos, de raça negra, com xingamentos de “macaco” durante o jogo em 2014, lembrando que esse processo teve sua suspensão por acordo nos autos.

Ainda, a ação judicial de condenação do jornalista Paulo Henrique Amorim contra o jornalista Heraldo Pereira, por chamá-lo de "negro de alma branca", que teve a desclassificação do crime de racismo para o de injúria racial em sede de recurso de apelação e, ao final, teve a condenação confirmada em 2017 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) (cf. STF: AC/DF nº 4.216).

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Por fim, vale destacar um caso mais antigo, julgado em 2006 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), porém muito importante por ser orientador de outros julgados, especialmente pelo teor bem fundamentado do Voto do Ministro Relator Felix Fischer que explicou ter ocorrido crime de racismo por atos de preconceito à nacionalidade brasileira, previsto na Lei nº 7.716/1989, e não apenas injúria preconceituosa como desejava a defesa dos acusados (cf. STJ: RHC 19166/RJ).

O caso envolveu dois comissários norte-americanos que em pleno voo ofenderam um brasileiro, a bordo de aeronave da empresa Americana Airlines, que havia partido de Nova Iorque/EUA para o Rio de Janeiro, tendo sido dito por um deles que (ipsis litteris): “Amanhã vou acordar jovem, bonito, orgulhoso, rico e sendo um poderoso americano, e você vai acordar como safado, depravado, repulsivo, canalha e miserável brasileiro."; comprovando-se que o segundo comissário ficou incitando, em ação de concorrência material e moral para o ato do primeiro.

Restou configurado no julgamento que não ocorreu apenas um ataque verbal direto e exclusivo contra a vítima, mas sim uma oposição inequívoca à nacionalidade brasileira, em menosprezo à origem.

Apesar da proximidade das condutas descritas nos dois tipos penais de injúria preconceituosa e de racismo, existe outro ponto de diferenciação entre eles que reside no fato de, na injúria preconceituosa, o crime ser afiançável, prescritível e de ação penal pública condicionada à representação, isto é, a ação somente se inicia pelo Ministério Público se demonstrada a intenção pelo ofendido de levar a reclamação adiante.

No racismo previsto na Lei nº 7.716/1989 o crime é inafiançável, imprescritível e de ação penal pública incondicionada, pois não dependente de estímulo do ofendido para prosseguimento (cf. art. 5º, XLII).

Mas, atenção, ainda está sob julgamento no STF, atualmente com pedido de suspensão, um processo que definirá se a injúria preconceituosa é imprescritível, tendo já havido o Voto do Ministro Relator Edson Fachin no sentido de opinar que a injúria preconceituosa é uma espécie de racismo e, por isso, é imprescritível, devendo-se aguardar os votos dos outros Ministros (cf. STF: HC 154248).

No STJ já existem julgados que discorrem sobre ser a injúria preconceituosa imprescritível, porém, de qualquer forma, a definição ficará a cargo desse referido julgamento perante o STF (cf. STJ: AREsp 686.965/DF).

Tanto a injúria preconceituosa quanto o racismo preveem pena de reclusão, isto é, considera-se uma pena mais severa na qual se admite o regime inicial fechado, normalmente cumprida em estabelecimentos de segurança máxima ou média.

Aliás, tome-se por observação o fato de o crime de injúria preconceituosa ter pena em abstrato de reclusão de 1 a 3 anos e multa, mais severa do que o homicídio culposo, que se comina uma pena de detenção de 1 a 3 anos, assim como para o de autoaborto previsto no art. 124 do Código Penal (CP) com a mesma pena de detenção de 1 a 3 anos (in GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 6ª ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 467).

Merece destaque o fato de que somente nos delitos de calúnia e difamação é que caberá a retratação do ofensor, para isenção da pena, não sendo permitida, portanto, no crime de injúria, e sequer para o racismo.

Observe-se que a retratação aqui aludida é uma figura jurídica que tem o condão de extinguir a punibilidade durante o processo, e não no sentido de pedido de desculpas na imprensa ou desdizer-se publicamente com declaração contrária ao anteriormente feito.

Também não caberá o perdão judicial, figura jurídica concedida ao julgador para não aplicação da pena, porque permitido somente nos crimes específicos em lei, o que não é o caso da injúria preconceituosa e do racismo.

Enfim, o rigor empregado aos crimes de injúria preconceituosa e racismo são evidentes, como escolha pelo legislador na tentativa de reprimenda das práticas de intolerância e discriminação, visando à harmonia social, contudo os crimes não se confundem, por serem distintos em sua proteção, já que a injúria preconceituosa atinge a honra e imagem do indivíduo, enquanto o racismo atinge os direitos de igualdade e liberdade de grupos, conforme consagrados na Constituição da República de 1988.    

Sobre o autor
Rodrigo Volpon

Sócio fundador do escritório "Lima e Volpon Advogados". Advogado Consultivo e Contencioso há mais de 18 anos nas áreas de Direito Civil, Consumidor e Tributário. Atua também como professor do Curso de Direito e Cursos Preparatórios pra carreiras jurídicas nas áreas do Direito do Consumidor, Tributário e Empresarial. Graduado e Mestre em Direito Difusos e Coletivos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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