Os reflexos da Resolução nº 287 do Conselho Nacional de Justiça no contexto da criminalização e penalização de pessoas indígenas

09/03/2021 às 21:27
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Este trabalho tem como objetivo abordar questões atinentes ao tratamento que a justiça penal brasileira confere aos indígenas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar e abordar as diretrizes estabelecidas por meio da Resolução n° 287 do Conselho Nacional de Justiça, aprovada em 25 de junho de 2019, no tocante ao tratamento dispensado à indígenas pelo sistema de justiça criminal.

Sabe-se que, após superadas as práticas de vingança divina e privada, o Estado passou a ser o titular da pretensão acusatória e punitiva. A concretização do jus puniendi, a partir de então, em regra, é efetivada por meio do devido processo legal promovido pelo Estado, o qual possui o poder-dever de garantir a ordem social através de instrumentos de controle de comportamento.

Promulgada a Carta Magna de 1988, foi conferido aos indígenas um novo tratamento jurídico, e, a partir deste, surgiu o modelo de reconhecimento de seus direitos em relação à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas.

O texto constitucional passou a prever que é competência da União a demarcação de terras, bem como a proteção e o respeito a todos os seus bens, conforme redação do artigo 231 da Constituição Federal.

Ademais, o artigo 232 legitimou os indígenas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, com intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo (artigo 129, inciso V, da Constituição Federal).

A nova Constituição rompe, dessa maneira, a visão assimilacionista anteriormente imposta, reconhecendo o fundamental direito à diferença e assegurando a condição de sujeitos de direitos aos povos originários.

No que tange especificamente à criminalização e à penalização de indígenas no Brasil, a Constituição Federal de 1988, por meio dos artigos 231 e 232, apresenta a valorização dos usos e costumes indígenas.

Aprovada recentemente, a Resolução n° 287 do Conselho Nacional de Justiça, além de dar ênfase à importância de que sejam observados, nas decisões e sentenças judiciais, os preceitos da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, propôs a identificação da pessoa como Indígena através da autodeclaração, previu o acesso a intérprete e a produção de laudo antropológico, bem como prioriza o respeito pelas práticas de justiça dos povos originários e seus métodos tradicionais para a solução de conflitos.

O PODER PUNITIVO DO ESTADO E SUAS LIMITAÇÕES

No processo penal brasileiro, por força de previsão constitucional, inclusive (artigo 129), impera a regra de pertencer ao Estado o poder-dever de promover a persecução penal através da ação penal pública, somente admitindo-se a iniciativa privada em casos de crimes específicos (PACELLI, 2018).

Como grande detentor da pretensão punitiva, cabe ao Estado impor ao autor do fato apontado com delituoso a sanção penal abstratamente prevista em lei. A efetivação do jus puniendi é concretizada através do devido processo legal que se pauta em dois objetivos principais, quais sejam: o respeito aos direitos fundamentais do acusado e a eficiência do processo penal. Discorrendo sobre esse dilema do processo penal, Renato Brasileiro de Lima assevera:

É esse, pois o grande dilema do processo penal: de um lado, o necessário e indispensável respeito aos direitos fundamentais; do outro, o atingimento de um sistema criminal mais operante e eficiente. Há de se buscar, portanto, um ponto de equilíbrio entre a exigência de se assegurar ao investigado e ao acusado a aplicação das garantias fundamentais do devido processo legal e a necessidade de maior efetividade do sistema persecutório para a segurança da coletividade. (LIMA, 2018)

Além disso, conforme ensina Cleber Masson:

A Constituição Federal de 1988, com visão democrática e protetiva do ser humano, foi especialmente detalhista ao estabelecer um amplo rol de normas destinadas a limitar o poder punitivo do Estado. Por esta razão, é comum falar-se em “Constituição Penal”, expressão utilizada no tocante ao conjunto de princípios e regras de Direito Penal contidas no texto constitucional. (MASSON, 2019)

Quanto ao conceito de Direito Penal, Mezger preleciona que trata-se do “conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como consequência” (MEZGER, 1946).

O Direito Penal atual e moderno indica um novo objetivo, qual seja, “a de reduzir ao mínimo a própria violência estatal, já que a imposição de pena, embora legítima, representa sempre uma agressão aos cidadãos” (MASSON, 2019). Nesse sentido, busca-se incriminar condutas apenas quando imprescindível, atendendo-se, assim, o direito à liberdade, constitucionalmente previsto e conferido a todos.

Verifica-se, portanto, que o poder punitivo do Estado é limitado e que tais limitações são encontradas em normas editadas pelo próprio Estado. A propósito, menciona-se que os direitos e garantias fundamentais são clássicos exemplos de limitações ao jus puniendi.

Limitações ao jus puniendi também são encontradas no artigo 231 da Constituição Federal do Brasil e no artigo 10 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada em 19 de abril de 2004 por meio do Decreto nº 5.051. Esses dispositivos preveem que sejam respeitados a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições dos povos indígenas, e que, em caso de responsabilização penal, sejam, preferencialmente, aplicadas punições diversas do encarceramento, criando assim, um regime especial de cumprimento de pena.

Além disso, frisa-se a hipótese de responsabilização de pessoas indígenas através de mecanismos próprios da comunidade indígena, o que foi ratificado recentemente pela Resolução CNJ nº 287/2019, contribuindo significativamente para os debates acerca dos distintos meios para julgamento e aplicação de sanções à indígenas, bem como, eventuais discussões a respeito do pluralismo jurídico.

AMPARO JURÍDICO DOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS

Neste capítulo serão apontadas e analisadas as normas nacionais e internacionais que amparam os direitos dos povos indígenas.

Em primeiro lugar serão mencionadas as principais regras nacionais de amparo aos direitos dos povos indígenas, iniciando com breves comentários acerca da evolução histórica desses direitos. Após, serão apresentadas as garantias aos indígenas contidas no texto da Carta Magna de 1988. Ademais, serão analisadas as disposições do Estatuto do Índio, comparando-as com as garantias constitucionais, a fim de examinar as razões pelas quais referido Estatuto não foi recepcionado pela Constituição Federal.

Em seguida, serão apresentadas as principais normas internacionais de proteção dos direitos dos povos indígenas, quais sejam, a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada por meio do Decreto n° 5.051, em 19 de abril de 2004 e Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2007.

  • Regras nacionais de amparo aos direitos dos povos indígenas

Ao longo da história da formação da nação brasileira, desde o período colonial e monárquico, até o republicano, várias leis, cartas e decretos foram criados visando, em tese, a proteção dos direitos indígenas.

Entre os séculos XIX e XX, em meio às tendências políticas da época, para enfrentar a questão dos indígenas e de suas terras em virtude da expansão da colonização para o interior do país, defendeu-se a criação de um órgão de proteção - amparado por princípios leigos (BRAND; ALMEIDA, 2007).

Neste contexto, nasceu o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), criado pelo Decreto n. 8.072 em 1910. Segundo estudiosos do tema (BRAND; ALMEIDA, 2007), o SPI surgiu com vistas a uma “pedagogia para o progresso no campo”.

Por esta razão, os objetivos que nortearam a criação desse órgão da administração púbica federal foi o de “colocar essas populações sobre a égide do Estado, através do instituto da tutela, prometendo assegurar-lhes assistência e proteção, tornando efetiva e segura a expansão capitalista nas áreas onde havia conflito entre índios e fazendeiros”. A própria “proteção oficial” ligada aos trabalhadores rurais já demonstrava a intenção do Estado de que os indígenas transitassem para a categoria de trabalhadores rurais (BRAND; ALMEIDA, 2007).

Baseado em um objetivo assistencialista e apresentando restrições aos direitos civis dos povos indígenas, o artigo 6° do Código Civil de 1916 atribuía ao “silvícola” a condição jurídica de relativamente incapaz para promover alguns atos da vida civil, sujeitando-o a um regime tutelar especial.

O Código Civil (Lei nº 3.071/1916) definia que os indígenas eram relativamente incapazes e relacionava esta incapacidade ao regime tutelar que, por sua vez, deveria cessar quando fossem se adaptando à comunhão nacional (art. 6º, parágrafo único).

Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação. (BRASIL, 1916)

Grandes mudanças foram previstas somente com a idealização e elaboração da Carta Magna de 1988, oportunidade em que foram arquitetados institutos jurídicos (mencionados no tópico a seguir) que englobavam a população indígena distribuída pelo território historicamente denominado brasileiro.

Atualmente, os povos indígenas possuem plena capacidade e autonomia para a prática dos atos civis, pois a Carta Política de 1988 suprimiu a relativa incapacidade do indivíduo indígena quando reconheceu sua capacidade processual, conforme descrito no art. 232 da Constituição Federal: 

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. (BRASIL, 1988).

Porém, é possível observar que os povos indígenas ainda hoje sofrem os reflexos do cenário de desconsideração cultural e legal desenvolvido por anos, o que gera circunstâncias de destruições e violências dentre esses povos.

Além disso, o Estado ainda não oferece com satisfação a viabilidade e eficácia da convivência e coexistência de sistemas jurídicos distintos do sistema jurídico hegemônico vigente, como, por exemplo, o direito consuetudinário indígena.

  • O novo paradigma instaurado pela Constituição Federal de 1988

A partir da promulgação da Carta Magna de 1988 foi instaurado um novo sistema e tratamento jurídico destinado aos indígenas.

No texto constitucional passou a ser previsto o reconhecimento dos direitos indígenas no tocante à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, competindo à União sua demarcação, proteção e respeito a todos os seus bens, conforme redação do artigo 231.

A Constituição Federal em seu artigo 210, § 2º, assegurou também aos povos indígenas, a utilização das suas línguas e processos próprios de aprendizagem no ensino básico.

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
[...]
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. (BRASIL, 1988)

Ademais, o artigo 232 legitimou a possibilidade de o indígena ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, com intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo, conforme descrito no artigo 129, inciso V da Constituição Federal, “ Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...] V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas” (BRASIL, 1988).

A nova Constituição rompe, portanto, com a visão assimilacionista contida nos anteriores dispositivos legais, reconhecendo o fundamental direito à diferença e assegurando a condição de sujeitos de direitos aos povos originários.

Importante ressaltar que a autonomia outorgada aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988 conflita diretamente com o regime tutelar previsto na Lei n. 6001/73 – Estatuto do Índio, vez que este apresenta conteúdo integracionista, e, por consequência, não foi integralmente recepcionado pela Carta Maior.

Assim, nota-se que, em contrapartida à previsão integracionista contida na legislação anterior, a Magna-Carta de 1988 além de consagrar aos povos indígenas a preservação do direito à identidade cultural e o direito à ocupação permanente da terra, à exclusividade no uso de seus recursos e na exploração de suas riquezas, assegurou também a possibilidade de existência de um multiculturalismo, fundado no direito à diferença.

  • A Lei n. 6001/73 - Estatuto do Índio

A Lei n. 6.001, aprovada em 19 de dezembro de 1973, dispõe sobre o Estatuto do Índio e foi aprovada e sancionada durante o período de regime autoritário que não considerava a participação de setores da sociedade civil na elaboração ou execução de suas políticas públicas.

Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 o referido Estatuto continuou em vigor – não passou por reforma ou revisão – e até os dias atuais segue preservando sua essência tutelar e integracionista, que pode ser notada logo em seu 1° artigo, o qual assevera que: “esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, 1973).

De acordo com o Estatuto, a partir do momento em que os indígenas se integrassem à sociedade, perderiam sua cultura e demais direitos. Essa perspectiva assimilacionista enxerga o Indígena como categoria transitória destinada ao desaparecimento por via de integração à sociedade nacional.

O Estatuto do Índio, por meio dos artigos 3° e 4° define que:

Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas:
I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;
II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados.
Art 4º Os índios são considerados:
I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.

Analisando a definição apresentada pelo Estatuto do Índio quanto ao vocábulo índio, notadamente ao referir-se ao Indígena como “indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana”, nota-se alusão a um ser primitivo, “cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”, ou seja, características culturais totalmente distintas da sociedade não indígena.

Importante lembrar que a Lei n. 6.001 é resultado das reflexões e pensamentos existentes à época acerca dos povos indígenas e seus direitos.

A fim de elucidar os pensamentos da época a respeito dos povos indígenas, oportuno mencionar o Relatório Figueiredo, o qual evidencia as variadas formas de torturas cometidas antes e no início da Ditadura Militar em desfavor dos povos indígenas do Brasil.

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Jader de Figueiredo Correia foi um procurador-geral que comandava uma Comissão de Investigação do Ministério do Interior e visitou mais de 130 postos indígenas em todo Brasil, em mais de 16 mil quilômetros percorridos (RELATÓRIO FIGUEIREDO, 1968, p. 4).

Referido Relatório descreve em suas páginas como aconteciam os massacres e genocídios e como os indígenas eram explorados por meio do trabalho escravo. Veja-se:

A crueldade para com os indígenas só era suplantada pela ganância[...] O trabalho escravo não era única forma de exploração. Muito adotada também era a usurpação do produto do trabalho. Os roçados laboriosamente cultivados, eram sumariamente arrebatados do miserável sem pagamento de indenização ou satisfação prestada. (RELATÓRIO FIGUEIREDO, 1968, p. 4)

Retornando ao teor do Estatuto do Índio, menciona-se que frequentemente o art. 4º é usado com base no art. 56 pelos magistrados. Considerando que o Código Penal não prevê a aplicação do grau de integração, o fundamento análogo é inspirado na imputabilidade, adequando equivocadamente todos os povos indígenas no critério psicológico, de “desenvolvimento mental incompleto ou doença mental” para avaliar a responsabilidade penal de um acusado indígena, constituindo assim a total redução do indivíduo.

Analisando mencionados conceitos apresentados pelo Estatuto do Índio, percebe-se que estes permitem conferir ou não identidade indígena conforme o nível de contato, conexão e relação do indígena com a sociedade não indígena.

Entretanto, reconhecer que o indígena seria somente aquele apontado pelo inciso I do artigo 4°, ou seja, dizer que indígena é o ser que encontra-se “isolado” da sociedade não indígena não é somente um erro, mas também é uma afronta aos direitos indígenas previstos na Constituição Federal de 1988 e às normas internacionais incorporadas pelo Estado brasileiro, conforme será tratado nos capítulos seguintes.

De acordo com tais normas constitucionais e internacionais, a identidade indígena é estabelecida do interior para o exterior. Em outras palavras, a identidade indígena não deve ser definida pela legislação ordinária, pois é um acontecimento sociocultural que opera em meio e no interior dos grupos étnicos em relação ao mundo exterior.

Ademais, indispensável mencionar que a Lei n. 6.001/73 apresenta também normas especificamente penais, as quais dizem respeito à dosimetria e execução penal de infrações penais cometidas por pessoas indígenas.

No Estatuto do Índio também há previsão quanto à crimes cometidos contra indígenas. Veja-se o teor dos artigos 56 a 59:

Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena:
I - escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática. Pena - detenção de um a três meses;
II - utilizar o índio ou comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição para fins lucrativos. Pena - detenção de dois a seis meses;
III - propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. As penas estatuídas neste artigo são agravadas de um terço, quando o crime for praticado por funcionário ou empregado do órgão de assistência ao índio.
Art. 59. No caso de crime contra a pessoa, o patrimônio ou os costumes, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena, a pena será agravada de um terço.

Da análise do artigo 56, nota-se que este abrange a hipótese de atenuação de pena quando houver condenação de um indígena por crime. Ademais, o parágrafo único do mencionado artigo indica que, quando aplicada pena de reclusão ou detenção aos indígenas, sejam estes submetidos a cumprimento em órgão federal de assistência aos indígenas que se localize próximo da habitação do condenado.

Em sequência, o artigo 57 aponta a possibilidade de aplicação de mecanismos próprios da comunidade indígena para resolução de conflitos, inclusive com imposição sanções penais ou disciplinares contra os membros da tribo. Porém, há uma ressalva: as penas aplicadas pela comunidade indígena não poderão conter caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.

Antes da aprovação da Resolução CNJ nº 287/2019, a possibilidade de aplicação de mecanismos de sanções próprios da comunidade indígena era prevista também artigo 9º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, instrumento juridicamente vinculante ao Brasil que será abordado em tópico a seguir.

Oportunamente, registre-se que, ao contrário do disposto na Lei 6001/73, há muitas normas jurídicas atuais que resguardam e asseguram o procedimento de autodeclaração indígena. A saber: a Carta Magna de 1988, a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho – OIT, Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas e a mais recente Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça.

  • Normas internacionais de proteção dos direitos dos povos indígenas

De acordo com a Constituição Federal, §3º, artigo 5º (introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004), os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes à emendas constitucionais (LENZA, 2019).

Quantos aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pela regra anterior à Emenda Constitucional n. 45/2004 e desde que não confirmados pelo quórum qualificado, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, terão natureza supralegal. Além disso, terão força de lei ordinária os tratados e convenções internacionais de outra natureza. (LENZA, 2019).

Embora existam diferenças quanto à incorporação de tratados e convenções internacionais ao sistema jurídico brasileiro, a Convenção da Organização Internacional do Trabalho – OIT n. 169 e a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas merecem menção neste trabalho, tendo em vista suas importantes regras a respeito do tratamento jurídico-penal conferido aos povos indígenas.

  • A Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho

A Convenção n° 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada por meio do Decreto n° 5.051, de 19 de abril de 2004. Trata-se de tratado de direitos humanos que ocupa a posição hierárquica supralegal, conforme entende o Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 466.343-SP.

Logo no início da Convenção em questão são apontados anseios dos povos originários em alcançar e dominar o comando de sua própria vida, bem como em preservar suas culturas e identidades em meio a sociedade que habitam.

De acordo com os incisos I e II do artigo 2° da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, os governos devem assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados:

[...] uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade, assegurando o gozo, em condições de igualdade aos demais membros da população e ajudando a eliminar diferenças econômicas entre eles. (BRASIL, 2004)

O artigo 8º da Convenção 169 dispõe que, ao aplicar a legislação nacional aos povos indígenas, deverão ser levados em consideração os seus costumes ou o seu direito costumeiro. No mesmo artigo, há a previsão no sentido de que os povos indígenas deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias.

Ademais, o artigo 9º da referida Convenção refere-se especificamente ao direito consuetudinário ao apontar que deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros, desde que isso seja compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

Por fim, o artigo 10 da supramencionada Convenção aduz que, quando forem aplicadas sanções penais através da legislação geral aos povos indígenas, deverão ser consideradas as características econômicas, sociais e culturais dos indígenas e tribais, e, além disso, deve-se dar preferências aos métodos de punições distintos do encarceramento.

Assim, é possível notar que o Brasil permanece omisso quanto alguns direitos indígenas, sobretudo porque permite vigorar o Estatuto do Índio de 1973 em desacordo com a Constituição Federal e regras internacionais de proteção aos direitos indígenas.

  • Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas

Em setembro de 2007 foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a qual versa exclusivamente a respeito do direito dos povos indígenas, possui elevado peso político e moral e incentiva os Estados a cumprirem e aplicarem eficazmente todas as suas obrigações com os povos indígenas, resultantes dos instrumentos internacionais, em particular as relativas aos direitos humanos, em consulta e cooperação com os povos interessados.

Referida Declaração foi proclamada, conforme previsto em seu preâmbulo, seguindo um ideal comum de respeito mútuo e solidariedade, afirmando que todas as doutrinas, políticas e práticas baseadas na superioridade de determinados povos ou indivíduos, ou que a defendem alegando razões de origem nacional ou diferenças raciais, religiosas, étnicas ou culturais, são racistas, cientificamente falsas, juridicamente inválidas, moralmente condenáveis e socialmente injustas.

Além disso, o preâmbulo da mencionada Declaração reafirma que, no exercício de seus direitos, os povos indígenas devem ser livres de toda forma de discriminação.

De acordo com o artigo 2º da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas “os povos indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e pessoas e têm o direito de não ser objeto de nenhuma discriminação no exercício de seus direitos fundado em particular, em sua origem ou identidade indígena” (NAÇÕES UNIDAS, 2008).

Percebe-se que a norma, ao afirmar que os povos indígenas são livres e iguais a todos e possuem o direito de não ser objeto de discriminação, evidencia também o direito dos povos indígenas em serem diferentes no exercício de seus direitos fundados em particular e, assim, obter respeito dos demais.

NOVOS PARADIGMAS APRESENTADOS PELA RESOLUÇÃO Nº 287 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

A fim de confirmar e ressaltar os encargos assumidos pelo Brasil acerca dos direitos dos povos indígenas e também com o escopo de preencher algumas lacunas regulamentares, foi aprovada em junho de 2019 pelo o Conselho Nacional de Justiça a Resolução nº 287/2019, a qual esclarece e instrui magistrados e tribunais acerca dos procedimentos a serem empregados no tratamento dispensado à indivíduos indígenas no âmbito criminal.

Além disso, foi publicado um Manual que trata da referida Resolução e elucida como deve ser a atuação das autoridades judiciais quanto aos processos e procedimentos que apresentem pessoa indígena na condição de acusada, ré ou condenada pela prática de crime.

Na fase preambular no Manual, aponta-se que é preciso que as garantias específicas dos povos indígenas atinjam todos os atos processuais, e, em razão disso, surge a necessidade de a autoridade judicial reconhecer a identidade indígena mediante o procedimento da autodeclaração.

Ademais, menciona o referido Manual que o fato de os indígenas terem acesso a direitos fundamentais não pode servir como argumento para se furtar de aplicar os direitos e garantias especificamente voltados a proteger indígenas submetidos a processos criminais.

Outrossim, observa ainda que não exclui ou afasta a identidade indígenas o acesso a direitos previstos para todos, e, além disso, “é possível identificar elementos culturais considerados não indígenas entre pessoas indígenas sem que isso altere o universo de direitos do qual essas pessoas são titulares” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 14).

Ressalta-se que o texto do Manual, em várias oportunidades, faz alusão à Constituição Federal de 1988, à Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas e à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Nos tópicos seguintes serão realizados apontamentos e análises acerca de algumas premissas e normas encontradas na Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça, bem como no Manual da referida Resolução.

  • Princípios gerais da atuação de tribunais e magistrados em casos criminais envolvendo acusados, réus ou condenados indígenas

Conforme ensina o Manual da Resolução CNJ nº 287/2019, há princípios que a autoridade judicial deve considerar em todos os atos processuais envolvendo pessoa indígena. São eles: a) diversidade dos povos indígenas; b) dever se consultar as comunidades indígenas; c) respeito à língua, aos costumes, às crenças e tradições dos povos indígenas, bem como à organização social e às estruturas políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais indígenas; d) importância do direito ao território; e) direito de acesso à justiça dos povos indígenas; e d) excepcionalidade extrema do encarceramento indígena. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 16-19)

No que se refere à diversidade dos povos, os servidores do judiciário devem atentar-se ao fato de que há no Brasil múltiplas etnias indígenas e, diante da diversidade de povos e culturas, cada caso concreto deve ser analisado de maneira específica e isolado, sem reproduções automáticas de casos anteriores.

Deve a autoridade também observar a necessidade de determinar a produção de laudo antropológico e de realizar consulta a comunidade acerca da providência e a ser adotada em cada caso.

A respeito da necessidade da realização da perícia antropológica e elaboração do laudo, ensina o jurista Edilson Vitorelli Diniz Lima:

O laudo antropológico é uma prova pericial, produzida por profissional que tenha particular conhecimento da cultura daquele povo, e que dela elabolará uma descrição, a fim de orientar o membro do Ministério Público e o Juiz na formação da convicção acerca do papel desempenhado pelas especificidades culturais no cometimento do delito. Os que defendem a obrigatoriedade da confecção do laudo antropológico afirmam que, para levar em consideração, de modo adequado, os costumes dos povos indígenas, é necessário que o juiz se apoie em um instrumento técnico capaz de auferir, por meio de pesquisa da organização social, as instituições e as peculiaridades da respectiva etnia, dada a multiculturalidade decorrente da existência de diversas etnias. [...] Assim, cada caso concreto deveria ser analisado à luz da história, costume, língua tradições da respectiva etnia, em atenção à norma constitucional que garante aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições...”, pelo que a ausência de laudo antropológico imporia a nulidade absoluta ao processo penal. (grifos do autor) (LIMA, 2011).

Nesse sentido, compreende-se a importância da produção do laudo antropológico nos processos judiciais, tendo em vista que levará aos autos um conhecimento técnico e científico em relação ao caso analisado que envolve indígena.

Quando violado o direito de inclusão e participação de antropólogo no processo criminal quando necessário, viola-se também a condição étnica e cultural do indígena, e, assim, eventual decisão judicial ou sentença não terão em suas linhas os conteúdos emancipatórios essenciais que fazem jus os povos originários.

Nota-se, dessa forma, que a partir do reconhecimento de diferenças culturais, a realização de laudo antropológico em alguns casos é essencial para descobrir as normas culturais relativas com o ilícito supostamente praticado, e não para aferir a inimputabilidade.

Por outro lado, em atenção aos artigos 215, §1º e 231, §1º, da Constituição Federal e ao artigo 34 da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, o Manual da Resolução nº 287/2019 enfatiza necessidade do reconhecimento de práticas de justiça e métodos tradicionais de solução de conflitos e, além disso, frisa que “a capacidade dos povos indígenas de dar continuidade e fortalecer seus próprios sistemas de justiça é um componente dos direitos à autodeterminação e de acesso à justiça [...]” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 18).

Com relação ao direito ao território, o Manual indica a importância da autoridade judicial compreender que, ainda que o processo não envolva diretamente questões territoriais, é preciso verificar a situação em que se encontra a terra indígena tradicional, seja através de consulta aos povos interessados ou por meio de pedido de informações à Fundação Nacional do Índio – FUNAI, vez que os indígenas, em regra, possuem laços intensos com suas terras tradicionais.

No tocante o direito ao acesso à justiça dos povos indígenas, cabe ressaltar que este provém de vários instrumentos internacionais, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual foi promulgada pelo Decreto nº 678/1992, e, atualmente, é previsto também no artigo 4º da Resolução CNJ nº 287/2019, que institui que a autoridade judicial deve adicionar a identificação da pessoa como indígena e informações sobre sua língua e etnia em todos os atos processuais. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019)

  • Quanto à possibilidade de identificação dos suspeitos, acusados e réus indígenas

A Resolução CNJ nº 287/2019 prevê em seu artigo 3º que “o reconhecimento da pessoa como indígena se dará por meio da autodeclaração, que poderá ser manifestada em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Além disso, o §1º do citado artigo dispõe que “diante de indícios ou informações de que a pessoa trazida a juízo seja indígena, a autoridade judicial deverá cientificá-la da possibilidade de autodeclaração, e informá-la das garantias decorrentes dessa condição” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019). Ressalta-se, oportunamente, que tais garantias estão expressamente previstas na Resolução CNJ nº 287/2019 (artigos 5º, 7º, 8º, 9º, 10º e 14º).

Entre as garantias previstas, uma das mais importantes é o acesso a intérprete. A disponibilização e efetivação desse direito deve ser avaliado a partir da compreensão da língua portuguesa e dos atos processuais pelo indígena. Aliás, importante frisar que o mero conhecimento da língua portuguesa não é o bastante para que seja dispensada a presença de intérprete.

Sobre a necessidade da presença de intérprete, é importante mencionar que esse procedimento precisa ser adotado também no âmbito do Inquérito Policial, tendo em vista que, não raras vezes, o indígena terá contato com a Autoridade Policial antes de ter contato com a Autoridade Judicial e é possível que os indígenas que figurem como indiciados, testemunhas ou meros informantes em procedimentos extrajudiciais não possuam o domínio da língua portuguesa ou sintam-se intimidados com a presença de procedimentos, pessoas e autoridades que não possuem contato com regularidade.

O Manual da Resolução nº 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça aponta que:

[...] não é porque a pessoa acusada de um crime transmitiu alguma informação em português que ela está apta a reelaborar os eventos passados relacionados a um suposto crime dentro da estrutura argumentativa linear exigida para a determinação da verdade processual. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 23)

Assim, além da importância da presença do intérprete, tanto na fase do Inquérito Policial como na fase da instrução processual, ressalta-se que é também essencial que ao investigado ou réu indígena seja garantida a compreensão dos termos da acusação, bem como dos fatos e dos fundamentos jurídicos.

Preleciona o jurista indígena Tédney Moreira Silva acerca da importância do intérprete:

O interrogatório e a qualificação de acusado indígena deveriam ser realizados na presença de antropólogo nomeado pelo juiz, que, preferencialmente, tivesse produzido o laudo antropológico correspondente, ou por representante do órgão de assistência federal dos indígenas. O interrogado que não soubesse a língua nacional oficial ou não tivesse dela pleno domínio ou tivesse, ainda, dificuldade em sua compreensão, deveria ser assistido, durante a qualificação e interrogatório, por intérprete de sua língua materna. (SILVA, 2015)

Nesse sentido, verifica-se que um dos grandes impasses para a busca da real verdade dos fatos que envolvam indígenas pode ser a comunicação, quando não observadas as particularidades da fala do acusado indígena durante o interrogatório ou depoimento.

Sobre a presença do intérprete no processo penal os professores Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto ensinam:

Algumas observações merecem ser formuladas. Suponha-se, por exemplo, que o juiz domine amplamente o idioma alemão e, por isso, não encontre nenhuma dificuldade em interrogar um réu germânico. Nem por isso, contudo, estará dispensado de nomear um intérprete. Primeiro, porque a prova não se destina apenas ao juiz, mas pelo sistema de comunhão, também às partes. Segundo, em função de que esse domínio da língua possivelmente não se estenderá à acusação e à defesa. É provável, assim, que o promotor e o advogado não contem com a mesma facilidade. E, terceiro, em virtude de que o intérprete, quando nomeado, exercerá seu múnus sob compromisso, podendo, eventualmente, responder pelo crime de falsa perícia de que cuida o art. 342 do Código Penal. Não se trata, pois, de desconfiar dos conhecimentos do Magistrado, mas de conferir maior solenidade e segurança ao ato, evitando que se transforme em um diálogo privado entre ele e o acusado. (CUNHA; PINTO, 2019)

A autonomia dos povos indígenas para a construção de suas instituições jurídicas deve ser respeitada e observada, e é do Estado a responsabilidade de proporcionar a proteção e a eficácia destes costumes e sistemas, intrínsecos da cultura indígena.

Ademais, quando se assegura ao indígena réu ou acusado o direito de intérprete nos casos em que for necessário, se assegura também o direito de preservar a cultura e a língua do indígena, direito humano inalienável.

  • Disposições da Resolução nº 287/2019 do CNJ acerca da tomada de decisão nos casos envolvendo acusados ou réus indígenas

Em homenagem ao artigo 10 da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, o artigo 7º da Resolução CNJ nº 287/2020 determina que “a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Em seguida, preleciona o parágrafo primeiro do referido artigo que “a autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio)” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Além disso, ressalta-se que o artigo 9º da mencionada Resolução prevê que, se não for possível a aplicação de reprimendas próprias da comunidade indígena, “a autoridade judicial deverá, ao definir a pena e o regime de cumprimento desta, considerar as características culturais, sociais e econômicas, as declarações e a perícia antropológica” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Quanto ao artigo 8º da Resolução CNJ nº 287/2020, este aborda a medida cautelar alternativa à prisão, a qual, quando foi aplicada, deve ser adaptada “às condições e aos prazos que sejam compatíveis com os costumes, local de residência e tradições da pessoa indígena” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

Outrossim, a Resolução em questão, em seu artigo 10º, dispõe que, caso não exista estrutura para a imposição de ferramentas e meios próprios da comunidade indígena de responsabilização e, caso não seja possível a aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão, ou seja, somente de forma excepcional, “a autoridade judicial deverá aplicar, sempre que possível e mediante consulta à comunidade indígena, o regime especial de semiliberdade previsto no art. 56 da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio), para condenação a penas de reclusão e de detenção” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019).

O regime especial de semiliberdade cumprido na própria comunidade ou próximo desta é meio utilizado para reconhecer a organização cultural dos indígenas e é através desse instituto que há a chance do indígena se ressocializar e reestabelecer o vínculo com sua cultura.

Ocorre que, muitos Tribunais negam a aplicação semiliberdade, como no HC: 88853 MS 2007/0190452-1, por exemplo, por meio de decisões e sentenças fundadas em conceitos jurídicos construídos com ideais etnocêntricos, resultado da concepção do judiciário acerca da integração dos réus indígenas à “sociedade nacional”. Acerca do tema, menciona o jurista indígena Tédney Moreira da Silva:

Determinar quem é e quem não é indígena; dizer quem tem ou não tem amparo por legislação protetiva específica; manipular um precário conceito sobre sua natureza atemporal e universal (índio arquetípico); atribuir ou não a identidade étnica do outro segundo parâmetros etnocêntricos e racistas: estas são as funções políticas possibilitadas pelo discurso penal, feito com base na criminologia positivista, e desempenhadas pelas agências do sistema punitivo contemporâneo – processo que intitulamos de penalidade civilizatória. (SILVA, 2015)

Diante do exposto neste tópico, principalmente quanto à resolução de conflitos e responsabilização observando costumes e normas das próprias comunidades indígenas, ouvindo-as e consultando-as sempre que possível, nota-se que as práticas mencionadas resultarão em avanços que propiciarão maior reconhecimento de interesses dos povos indígenas, notadamente no que se refere ao pluralismo jurídico.

É importante que existam meios de coexistência entre o direito costumeiro indígena e o positivado nacional vigente, sem preeminências injustificadas, pois a essência do respeito a esse pluralismo jurídico está contida na Constituição de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Afirmar que apenas o direito positivo possui eficácia para a resolução de problemas que circundam as comunidades indígenas, seria negar a existências desses povos e de sua diversidade.

Assim, considerando que a própria Carta Magna permite e reconhece direitos e interesses indígenas criados a partir da tradição, nada mais justo que estes sejam incluídos no rol dos interesses e direitos do direito ordinário brasileiro, garantindo aos povos indígenas idêntica proteção.

  • Tratamento das pessoas indígenas privadas de liberdade

Conforme mencionado, a privação da liberdade de pessoas indígenas deve ser a exceção, aplicada somente em caso de expressa manifestação da comunidade ou por razão devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. Como por exemplo, em casos de estupro de vulnerável, onde o abusador geralmente mora com a família e com a vítima.

Havendo necessidade de encarceramento do indígena, o artigo 14 da Resolução CNJ 287/2019 apresenta uma série de obrigações que o juiz da execução da pena deverá observar e fiscalizar.

Oportunamente, importante mencionar que o direito positivado, ao impor uma sanção, nem sempre alcança o fim esperado. A estrutura social dos povos indígenas possui regras e penas próprias, motivo pelo qual, devem ser realizadas ainda mais discussões para averiguar quando o encarceramento será o artifício mais apropriado para a ressocialização.

De acordo com os ensinamentos de Dalmo de Abreu Dallari (2001) viver em meio a vícios e violência dos hábitos capitalistas de interação humana é sentenciar o indígena à destruição física, psíquica e moral, antecipando seu desaparecimento espiritual e cultura, o que é contração às tutelas, proteções e direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e demais tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Existe um grande desafio em ressocializar uma pessoa que nem sempre associa os costumes da sociedade que lhe cerca, tendo em vista que possui modo de vida e tradições próprias, por fazer parte de uma cultura diferente, e que há décadas é compelido a integrar essa mesma sociedade que lhe reprova por suas diferenças. Por este motivo é muito difícil a sanção por meio do encarceramento surta bons efeitos. O encarceramento, quando aplicado, devasta a cultura indígena, ferindo, principalmente, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (art. 8º, §1 e 2) e demais regras jurídicas garantistas mencionadas neste trabalho.

CONCLUSÃO

A partir da análise realizada foi possível observar avanços para que sejam promovidas mudanças na cultura jurídica dos tribunais do País, a fim de que seja respeitado o pluralismo cultural, legal, linguístico e, consequentemente, a autonomia dos povos indígenas.

É essencial que ao indígena seja assegurado na justiça criminal o respeito às suas circunstâncias pessoais, sociais e econômicas, bem como motivos e outros elementos da pratica do delito, desde o inquérito policial, bem como durante todo o processo penal, valendo-se da efetiva assistência jurídica, com a presença de um especialista em antropologia, e ainda, com o auxílio de um intérprete especializado em sua língua materna, por exemplo.

As previsões contidas na Resolução n.º 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça certamente contribuem significativamente para a implementação de sistema judicial garantista para esses povos, tendo em vista que influenciam e instigam a análise de perspectivas sobre como a cultura indígena afeta o comportamento dos indígenas quando estes infringem norma penal do direito positivado.

Por fim, evidente que os debates sobre a questão indígena no âmbito criminal não terminarão neste momento, mas sim quando efetivamente asseguradas e respeitadas as singularidades e diferenças relacionadas aos povos indígenas.

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Sobre a autora
Evelyne dos Santos Melo

Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Escola de Direito do Ministério Público de Mato Grosso do Sul – EDAMP. Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados - UNIGRAN. Advogada licenciada. Assessora Jurídica no MPMS.

Informações sobre o texto

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