Doenças raras e medicamentos de alto custo: Um desafio para a efetivação do direito à saúde

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Além das dificuldades de saúde inerentes às chamadas doenças raras, indivíduos acometidos por essas enfermidades possuem também os elevados preços dos medicamentos como um enorme obstáculo. Diante deste problema, o que pode ser feito pelo poder público?

1 - O que são doenças raras?

Doença rara pode ser definida como uma patologia caracterizada pela sua ocorrência relativamente baixa. Segundo a Organização Mundial da Saúde, são consideradas doenças raras aquelas que atingem até 65 pessoas a cada 100 mil, e ultrarraras, as que atingem apenas 1 a cada 50 mil.

Em geral, as doenças raras apresentam uma ampla diversidade de sintomas, que podem variar entre pessoas com a mesma condição e não tem cura. Segundo especialistas, existem ao redor de 7000 a 8000 doenças classificadas como raras.

Estima-se que no Brasil existem 13 milhões de pessoas portadoras de doenças raras, de acordo com pesquisas da Interfarma. Destas doenças, 75% afetam crianças e 80% delas tem origem genética, enquanto o restante se manifesta a partir de causas bacterianas ou virais, alérgicas e ambientais, e são degenerativas ou proliferativas. Dos pacientes totais, 30% deles morrem antes dos cinco anos de idade. As doenças raras muitas vezes apresentam risco de morte, mas quando o paciente sobrevive, não raramente a sua qualidade de vida se altera ao perder autonomia para realizar atividades cotidianas, como andar, comer e respirar.

 

2 – Por quê medicamentos são de custo tão elevado? (medicamentos órfãos)

O alto preço dos medicamentos pode ser explicado pelo elevado valor de investimentos realizados na pesquisa e desenvolvimento de um novo produto. Em geral, estes medicamentos são altamente inovadores, sendo produtos de biotecnologia e outras tecnologias avançadas, como engenharia genética e engenharia de tecidos. Espera-se que o valor investido seja recuperado em um curto período, pois com o passar do tempo, além do produto deixar de ser inédito, a empresa perderá o direito da patente, que segundo a Lei 9.279/96, pode durar até 20 anos. Durante o período em que uma companhia detiver o monopólio sobre um medicamento, ela poderá praticar preços mais altos do que seriam aceitos em um livre mercado, para que a empresa obtenha lucro e tenha incentivos para desenvolver novos fármacos. Apenas após o fim do período de patente que outros laboratórios poderão produzir o medicamento de referência sob a forma dos medicamentos genéricos. Estes medicamentos são mais baratos pois os seus custos de desenvolvimento já foram pagos.

Outro fator que eleva o preço destes medicamentos é o mercado restrito. Uma vez que as doenças são raras, a busca por estes medicamentos também é restrita. Muitas farmacêuticas não consideram vantajoso o desenvolvimento e produção destes fármacos para um número limitado de doentes. Entretanto, a demanda por estes medicamentos é inelástica, ou seja, os portadores de doenças raras sempre estarão dispostos a comprar estes medicamentos pagando um preço alto, independente se são ricos ou não. Dessa forma, o preço poderá se manter alto, pois sempre haverá demanda (ainda que baixa). Por isso, o preço elevado se mantém.

No Brasil os preços dos medicamentos são regulados pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, juntamente com um comitê executivo e com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Um novo produto é analisado e classificado em seis categorias, cada uma estabelecendo critérios para a fixação dos preços dos medicamentos.

A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos estabelece e divulga, mensalmente, no site da ANVISA, uma lista com o preço máximo que medicamentos podem ser comercializados em território nacional. Nenhuma farmácia, drogaria, laboratório, distribuidor ou importador pode comercializar remédios com preços acima dos estabelecidos pela CMED.

Entretanto, há uma discussão ética sobre o alto custo destes medicamentos, já que a vida de muitos pacientes depende do uso destes.

3 – O fornecimento do tratamento para estas doenças pelo SUS

A constituição de 1988 define em seu artigo 196 que

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Respeitando os princípios constitucionais da equidade e da universalidade, as doenças raras devem receber a mesma atenção do Sistema Único de Saúde, apesar do alto nível de complexidade que em geral exigem.

O atendimento para esse tipo de doenças é realizado prioritariamente na Atenção Básica e o custeio dos procedimentos relacionados ao diagnóstico é realizado por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação, que é repassado posteriormente aos estados, municípios e ao Distrito Federal.

Para que novas tecnologias e medicamentos ligados à essas doenças sejam incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), se faz necessário um estudo da Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias do Ministério da Saúde. Dessa forma, será estabelecido quais são os benefícios que se pode esperar da nova tecnologia, os riscos ao paciente e quais são os custos para a saúde pública.

Em 2014, o Ministério da Saúde, através da Portaria GM/MS nº 199 de 30/01/2014, instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), além de instituir incentivos financeiros de custeio. O documento tem como objetivo o estabelecimento de diretrizes para o cuidado com as pessoas portadoras de doenças raras na rede de atenção à saúde, e possui caráter nacional, sendo utilizado pelas secretarias de saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios na regulação do acesso assistencial, autorização, registro e ressarcimento dos procedimentos correspondentes e pelos serviços de saúde habilitados à rede de saúde pública.

Adicionalmente, entende-se que, ao estabelecer estas diretrizes, seria possível organizar a atenção às pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde, de forma a proporcionar a redução do sofrimento dos afetados e o ônus emocional sobre os pacientes e seus familiares, bem como a racionalização de recursos pelo gestor de saúde, que deve utiliza-los da maneira mais eficiente possível.

Além do mais, a ANVISA aprovou a Resolução-RDC nº 205/2017 que está em vigor desde 2018 e estabelece, dentre outras matérias, o procedimento especial para anuência de ensaios clínicos, certificação de boas práticas de produção e registro de novos fármacos para tratamento, diagnóstico e para a prevenção desse tipo de doenças.

 

4 – O processo de judicialização para conseguir o tratamento e medicamentos para tratar doenças raras

Entretanto, devido ao alto custo exigido para o tratamento destas doenças raras, o que inclui, muitas vezes, a utilização de medicamentos considerados órfãos, de alto custo, o Sistema Único de Saúde enfrenta dificuldades para prover assistência adequada aos portadores.

O custo para tratar apenas um paciente com doença rara, em geral, pode ser equivalente ao custo para tratamento de dezenas ou centenas de pessoas com doenças convencionais. Dessa forma, há uma sobrecarga no sistema de saúde, e o impasse de destinar os recursos em prol de um número restrito de pacientes ou de uma ampla maioria.

Desse modo, uma alternativa seria recorrer aos órgãos administrativos de controle a partir de um requerimento na Secretaria de Saúde do Estado ou do Município, no entanto, esse trâmite costuma ser muito demorado, criando um empecilho para aqueles que não podem esperar até uma resposta definitiva.

Diante disso, muitas vezes a solução encontrada por portadores de doenças raras é de recorrer ao judiciário. Como é dever constitucional do Estado fornecer atendimento integral à saúde e adequada assistência farmacêutica, o requerimento, na maioria das vezes, é concedido pelos Juízes com base na garantia do mínimo existencial aos indivíduos, para que tenham uma vida digna, independente se o governo possui ou não recursos para tal. Isso faz com que não sejam aceitas alegações do princípio da reserva do possível, nem do “comprometimento das demais contas públicas”, como fica evidenciado a partir do enunciado da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45 (ADPF 45):

 

“EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).”

De acordo com o Ministério da Saúde, dos dez medicamentos mais demandados por ação judicial no SUS, nove deles são para doenças raras, o que representa um gasto de cerca de R$1,2 bilhão de reais. Esse processo de judicialização acaba tornando esses medicamentos ainda mais caros, tendo em vista que o governo perde o poder de negociar e administrar contas.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese respectiva ao Tema 500, em 09/11/2020, de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na ANVISA, exceto em casos excepcionais, em que estabelece alguns requisitos para a concessão judicial. Entretanto, não existe uma lei específica que obriga o poder público a comprar medicamentos de alto custo registrados na ANVISA para doenças raras.

A judicialização do acesso a esses tipos de medicamentos também atinge os planos de saúde privados quando não fornecidos, que se defendem alegando que a cobertura de remédios se restringe ao rol previsto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o que é questionado por Tribunais que defendem que o rol da ANS não impede o tratamento em caso de doenças raras.

 

5 -  O caso Zolgensma

 

Zolgensma é o nome dado ao fármaco utilizado para tratar a Atrofia Muscular Espinhal (AME), e ficou conhecido por ser o medicamento mais caro do mundo. A AME é uma rara doença genética que é degenerativa e progressiva, e os indivíduos atingidos por ela nascem sem o gene SMN1, que tem por papel a produção de uma proteína que alimenta os neurônios motores, que por sua vez encaminham ao cérebro os impulsos elétricos para os músculos. Sem tal proteína, perde-se a função muscular, culminando com as consequentes atrofia e paralisação dos músculos, afetando a respiração, a deglutição, a fala e a capacidade de andar. Sem tratamento, a AME pode levar à morte antes dos dois anos de idade.

O valor do medicamento verificado nos Estados Unidos corresponde a R$12 milhões, porém a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão federal responsável pela definição dos preços máximos dos medicamentos no Brasil, estipulou em R$ 2,878 milhões o limite para venda do Zolgensma, o que significa uma expressiva redução no valor da droga, mas que ainda significaria um rombo no orçamento no caso de ter muitas pessoas atendidas pelo SUS. Uma projeção feita mostra que se, por ano, há 3 milhões de nascimento no Brasil, e 1 a cada 10.000 crianças nascem com AME, ou seja, 300 crianças por ano nascem com a doença no país. Considerando que metade delas terão AME do tipo 1, para o qual Zolgensma foi aprovado, o custo do seu fornecimento universal pelo SUS, com o preço original de R$12 milhões por dose, seria de R$1,8 bilhões por ano e, no caso do preço máximo estipulado no Brasil, o custo total por ano seria de R$431,7 milhões.

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Atualmente, para tratamento da AME no Brasil, utiliza-se o medicamento Spinraza, fornecido pelo SUS, que, ao contrário do Zolgensma que é administrado em dose única, deve ser aplicado por períodos regulares de 4 meses durante toda a vida da pessoa acometida por essa doença, com o custo de 145 mil reais por cada dose.

Até dezembro de 2020, pelo menos seis famílias conseguiram, pela via judicial, que o governo fornecesse o medicamento mais caro do mundo.

 

6 – Políticas Públicas

 

No ano de 2012, surgiu a Frente Parlamentar Mista de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (FPMDR), composta por deputados e senadores que possuem como fim estimular a discussão política do assunto, além da produção de leis relativas ao tema. O objetivo primário é dar visibilidade à causa para que a sociedade e os parlamentares tratem com maior atenção as dificuldades enfrentadas pelos portadores de doenças raras no Brasil. Atualmente, a deputada federal Mara Gabrilli (PSDB – SP) preside o órgão.

Dentre as suas principais funções, a FPMDR faz o acompanhamento legislativo sobre o tema e pauta comissões, promove eventos sobre a temática, busca promover conhecimento e auxílio na divulgação de métodos de terapias, recursos terapêuticos, pesquisas e remédios para as doenças raras.

 

Conclusões

 

É evidente que as doenças raras representam um enorme desafio ao orçamento público, pois os medicamentos para o seu tratamento são excessivamente onerosos aos cofres públicos. No entanto, destaca-se que a saúde é um direito social garantido a todos, e que como os preços dos remédios não são acessíveis ao cidadão médio, o Estado deve estar preparado para prestar o auxílio necessário aos cidadãos que dele precisem, e para isso é imprescindível que o gestor público seja norteado pelo princípio da eficiência (Art. 37/CF), utilizando os recursos públicos de maneira a alcançar uma relação de melhor custo-benefício entre os resultados obtidos e os recursos empregados, afinal, para atender a estes indivíduos pode ser necessário o uso de verbas destinadas a outros programas.

Apesar das discussões sobre o tema terem avançado, ainda existe uma dificuldade muito grande em contornar o problema das doenças raras, que como mencionado atingem um número elevado de pessoas no país, tendo em vista que o contingente populacional brasileiro é um dos maiores do mundo, e somado a isto, existe a problemática da escassez de recursos e o alto custo dos medicamentos. Neste sentido, realizando uma ponderação entre os princípios do mínimo existencial e da reserva legal, o poder judiciário reiterou que a saúde, como direito de todos e dever do Estado, não pode ser negada a esses indivíduos.

 

Referências

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BASSETE, Fernanda. ANVISA REDUZ EM R$ 9,2 MILHÕES PREÇO DO REMÉDIO MAIS CARO DO MUNDO. Época. Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/anvisa-reduz-em-92-milhoes-preco-do-remedio-mais-caro-do-mundo-1-24789281?versao=amp. Acesso em 17 de fev. 2021

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Doenças Raras – Quais são e por que são chamadas desta forma?. PFIZER. Disponível em: https://www.pfizer.com.br/noticias/ultimas-noticias/doencas-raras-quais-sao-e-porque-sao-chamadas-assim. Acesso em 18 de fev. 2021.

 MANCINI, Natali. Por que o preço de medicamentos é tão alto?. Revista Abrale. 2019. Disponível em: https://revista.abrale.org.br/por-que-o-preco-dos-medicamentos-e-tao-alto/. Acesso em 19 de fev. 2021.

 Saiba por que o preço de remédio ainda é tão caro para o consumidor final. INOVAFARMA. 2018. Disponível em: https://www.inovafarma.com.br/blog/preco-remedio-brasil/. Acesso em 19 de fev. 2021.

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Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA (Tema 500 - STF). Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/jurisprudencia/recurso-repetitivo-e-repercussao-geral/dever-do-estado-de-fornecer-medicamento-nao-registrado-pela-anvisa-tema-500-stf-8A80BCE57498B5200175AD4A55216DF4.htm#.YDFf19hKjIU. Acesso em 20 de fev. 2021

VALÉCIO, Marcelo De. MEDICAMENTO MAIS CARO DO MUNDO AGORA NO BRASIL. ICTQ. Disponível em:https://www.ictq.com.br/assuntos-regulatorios/1924-medicamento-mais-caro-do-mundo-agora-no-brasil. Acesso em 17 fev. 2021

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