Crimes de colarinho branco: compliance empresarial e técnicas de investigação anticorrupção

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Nos últimos tempos os crimes de colarinho branco sofreram severo golpe com a edição da lei anticorrupção. Ao lado do compliance, despontam técnicas de investigação contra a corrupção como instrumentos imprescindíveis ao enfrentamento da criminalidade.

Resumo: nos últimos tempos os crimes de colarinho branco sofreram severo golpe com a edição da lei anticorrupção. Ao lado das iniciativas de compliance empresarial, despontam técnicas de investigação contra a corrupção como instrumentos imprescindíveis ao enfrentamento da criminalidade organizada.

Palavras-chave – crimes de colarinho branco, compliance empresarial, investigação, corrupção, técnicas.

Abstract: in the last times, white-collar crimes have suffered a severe blow with the enactment of the anti-corruption law. Next to the initiatives of corporate compliance investigative techniques against corruption dispute, as instruments imprintible to the facing of organized criminality.

Keywords – white-collar crimes, corporate compliance, investigation, corruption, techniques.

1. Introdução

Desde o advento da globalização da economia e o consequente surgimento dos direitos difusos, houve uma crescente preocupação dos países e organizações estato-cêntricas no sentido de repressão ou minimização dos delitos de corrupção, geralmente praticados por representantes de empresas multinacionais com ou sem a participação de agentes públicos.

Os atos de corrupção alcançam diversos setores da vida em comunidade, gerando desequilíbrio social, descrédito nas instituições democráticas e a necessidade, cada vez mais ampla, do desenvolvimento de técnicas e do aprimoramento de leis anticorrupção.

Nesse sentido, emerge a inelutável realidade dos chamados “delitos de colarinho branco”, ou “white collar crimes”, expressão apresentada, pela primeira vez, em 1939 à Sociedade Americana de Sociologia por Edwin Sutherland. A expressão é um contraponto aos crimes comuns ou “crimes de rua”, que eram tachados de “blue collar crimes”, ou crimes de colarinho azul, em alusão ao uniforme (“macacão”) azul escuro, utilizado pelos operários, nas fábricas e indústrias americanas no início do século XX.

Os crimes de colarinho branco apresentam duas peculiaridades ínsitas e concomitantes: o status social de seus autores e o vínculo da ação criminosa com sua atividade profissional. Nesse viés, despontam os crimes contra a ordem tributária, as relações de consumo, a economia popular, o mercado de ações, os crimes falimentares, os crimes ambientais etc. Em regra, seus autores “são pessoas ou grupos de pessoas de amplo prestígio social e político, com fácil trânsito em todas as áreas governamentais”.[1] Tais infrações corruptivas implicam, quase sempre, no tráfico de influência, no favorecimento, na condescendência delituosa, no pagamento de propinas, muitas vezes com a participação de agentes públicos aéticos e desonestos.

Assim sendo, o mundo empresarial passou a regular a funcionalidade interna da empresa por meio da utilização de compliance. Compliance, do verbo to comply, significa agir em conformidade com as regras, com as normas internas da empresa. Vale dizer, é preciso agir segundo padrões de ética, honestidade e transparência no dia a dia dos negócios.

No Brasil, a ferramenta da ética corporativa empresarial passa a ser adotada, como instrumento coadjuvante de enfrentamento à corrupção no Poder Público, complementando as ações correcionais dos mecanismos de controle interno e externo da Administração Pública.

Com efeito, a promulgação da Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção e, antes disso, da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) propiciou a criação de novos paradigmas investigativos ou de técnicas anticorrupção.

2. Crimes de colarinho branco. Origem da expressão. Conceito: Comportamento do criminoso de colarinho branco.

Os crimes de colarinho branco (“white collar crimes”) foram assim denominados por Edwin Sutherland, em 1939, quando de sua apresentação à Sociedade Americana de Sociologia. Sutherland caracterizou tais crimes, partindo da premissa de que seus autores eram indivíduos da alta sociedade que se valiam de sua estatura econômica e social.

A expressão “white collar crimes” faz alusão aos colarinhos brancos das camisas dos grandes diretores executivos, sempre bem vestidos, com ternos e costumes de grife, isto é, com roupas impecáveis e colarinhos brancos engomados e perfeitos.

Tal expressão, usada por Sutherland, emergiu em contraposição aos denominados “blue collar crimes” (crimes de colarinho azul), termo usado como referência aos operários ou trabalhadores comuns das fábricas e indústrias norte-americanas, que se utilizavam de uniformes azuis (macacões). A classe trabalhadora estaria relacionada aos crimes comuns, tais como, furtos, roubos, homicídios, que não demandavam potencial intelectivo ou econômico de seus sujeitos ativos, bastando tão só o seu caráter intimidatório com relação às vítimas.

Em verdade, os crimes de colarinho branco alcançam, em sua gênese, um segmento da alta sociedade e se vinculam às suas atividades empresariais ou econômicas. Destarte, as fraudes, os crimes contra o sistema financeiro, as licitações fraudulentas, a evasão de divisas, a sonegação fiscal etc são exemplos de infrações não violentas e praticadas por agentes do alto escalão governamental ou social.

Ensina Renata Ribeiro Batista[2] que “a simples definição do que sejam tais crimes exerceu e ainda exerce profunda influência nas pesquisas e estudos sobre tal fenômeno. Isso porque estabeleceu-se uma disputa entre duas abordagens bem distintas de crimes de colarinho branco: uma fundada em um conceito de crime focado na figura do ofensor (offender – based approach), de cunho subjetivo; outra fundada em um conceito de crime que prioriza as características da ofensa (offense – based approach), de cunho objetivo. A escolha por uma ou outra abordagem, cada qual com seus limites próprios, conduz a diferentes questionamentos e respostas” (sic).

Seja por uma ótica ou por outra, a abordagem dos crimes de colarinho branco permite refletir que são praticados por indivíduos de alto gabarito social ou que “estejam em situação ou função” de poder com evidente relação com sua atividade financeira, empresarial ou política.

É consenso entre os criminólogos que o comportamento criminoso, pouco importa a qualidade social de seu autor, é apreendido numa relação de convívio, dadas a intimidade e frequência do processo de aprendizagem (Teoria da Associação Diferencial).

Os principais dados estatísticos sobre crimes de colarinho branco englobam como atos de corrupção (em sentido amplo) os crimes fiscais; as fraudes genéricas (bancárias, securitárias e financeiras); os falsos; os demais crimes econômicos ou corporativos. Deflui desse prisma importante registro acerca do percentual de delitos econômicos, corporativos ou de “colarinho branco” efetivamente praticados, mas que não são comunicados às autoridades policiais ou judiciais. Tem-se aqui o que se a doutrina denomina por cifra dourada.

Em consequência dos delitos de colarinho branco, observam-se como reações do criminoso, em função do meio em que vive, três aspectos fundamentais: competitividade, narcisismo (egocentrismo) e propensão a assumir riscos.

A competitividade ou pressão por resultados é uma constante no mundo globalizado dos negócios. A cultura da competição produz o individualismo e a necessidade de vencer qualquer competição, bem como a ânsia pelo poder, dinheiro e status social.

O narcisismo (egocentrismo exacerbado) é também algo comum no ambiente dos chefes das grandes corporações. A par da vaidade, da centralização de poder, de autoridade, traços de arrogância nas relações hierárquicas são perceptíveis, pois o criminoso de colarinho branco supõe “merecer” mais que os outros e se atribui a si “o direito de ter mais ou de preferência” (entitlement).

Por derradeiro, há uma significativa propensão a assumir riscos em suas ações, porque o criminoso de colarinho branco tem medo de regredir (“medo de queda”) no status social. É o “medo de descer a escada social”, de diminuir o nível econômico de vida a que se acostumou, daí a necessidade, quase que inerente, de correr riscos. Para manter o “life style” e, mediante as pressões financeiras do mercado, não hesita em ingressar no mundo sombrio da criminalidade econômica, não tanto por desejo de maiores luxos e riquezas, mas para manutenção da posição então ocupada.

2.1 Lavagem de Dinheiro ou branqueamento de capitais.

Lavagem de dinheiro ou branqueamento de capitais (Portugal) é um processo consistente na transformação de recursos obtidos de forma ilícita em ativos aparentemente de origem lícita, inserindo-os em diversos setores do mercado.

A lavagem de dinheiro ou “money laundering” foi expressão utilizada pelo jornal inglês The Guardian, nos anos 1970, com o famoso caso Watergate, em que um informante aconselhara o repórter a “seguir o dinheiro”, investigando-se um esquema fraudulento de desvio de recursos para a reeleição do Presidente dos EUA, Richard Nixon que, inclusive, culminou na sua renúncia.

Outra possível origem do termo remete ao mafioso Al Capone que, à época da Lei Seca, nos anos 1920, teria comprado uma cadeia de lavanderias em Chicago, formando uma empresa fictícia ou “de fachada”, a Sanitary Cleaning Shops. Tal ramo de negócios teria sido montado com o dinheiro “sujo” (ilegal) advindo da exploração da prostituição, do comércio clandestino de bebidas alcoólicas, do jogo e da extorsão.

No Brasil, a lei de regência sobre a matéria (Lei nº 9.613/1998) dispõe sobre a tipificação de condutas atinentes aos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores.

Ensina Fernando Capez[3] que a “lavagem de dinheiro, como atividade complexa e concatenada que é, comporta as seguintes fases: Placement: também conhecida na doutrina como introdução. Nessa primeira fase, se busca introduzir o dinheiro ilícito no sistema financeiro [...]. Laudering: também conhecida na doutrina como etapa da transformação, ocultação ou dissimulação, na qual é realizada uma série de negócios ou movimentações financeiras objetivando impedir o rastreamento e encobrir a procedência ilícita dos recursos. Integration: por fim, o último passo é o da integração, no qual os bens, já com a aparência de regulares, são formalmente incorporados ao sistema econômico, em geral mediante operações no mercado imobiliário”.

Há inúmeras técnicas de lavagem de dinheiro, sobretudo com o desenvolvimento tecnológico, como ocorre hoje, por exemplo, com as criptomoedas (bitcoins).

No entanto, ainda subsistem métodos mais antigos e comuns, como assevera Ricardo Antonio Andreucci[4]: “... tais como: 1) mescla (commingling) – o agente da lavagem mistura seus recursos com os recursos legítimos; 2) empresa de fachada – entidade legalmente constituída que participa ou aparenta participar de negócios lícitos, mas possui como escopo a lavagem de dinheiro; 3) contrabando de dinheiro, ou seja, transporte físico do dinheiro”.

É claro que os exemplos acima referidos não esgotam os assuntos sobre lavagem de dinheiro e corrupção. O “dolus malus” das negociatas pode, ainda, envolver ouro, pedras preciosas, obras de arte, cheques administrativos, cartões corporativos de crédito etc.

3. Compliance. Conceito. Características. Gestão empresarial aplicada. Administração Pública, controle interno e compliance.

A palavra compliance origina-se do verbo inglês “to comply”, que significa agir de acordo com normas pré-estabelecidas, em conformidade com o Direito.

O programa de compliance surgiu com o escopo de lançar mecanismos de controle interno das empresas, com base em três preceitos básicos: ética, honestidade e transparência. Destarte, com esse estilo de procedimento padrão adotado, como paradigma de atuação do “porteiro ao diretor”, evitar-se-iam ações criminosas ou, pelo menos, haveria sensível redução de sua ocorrência.

O uso de compliance é diferente conforme o país em que se aplica, à vista das diferenças dos ordenamentos jurídicos. Cada Estado é soberano para editar suas normas, estabelecendo preceitos e comportamentos empresariais, com base na ética, na honestidade e transparência de ações.

No Brasil, as empresas enquanto pessoas jurídicas não respondem pela prática de ilícitos penais, salvo alguns casos de responsabilidade por crimes ambientais (art. 225, § 3º da CF).

Desde o processo de democratização do Brasil, no início dos anos 1980, o Brasil vem adotando diversos instrumentos internacionais de tutela de direitos fundamentais, bem como se coobrigou na repressão internacional aos delitos transnacionais, sobretudo aqueles referentes à corrupção estatal que, via de consequência, produzem miséria, exclusão social, doenças, desequilíbrio e injustiça.

Por conta desse prisma, o Brasil editou uma série de diplomas legais para dar corpo ao combate à corrupção, para além do próprio Código Penal, a saber: Lei de Defesa da Concorrência; Lei de Combate ao Crime Organizado; Lei da Lavagem de Dinheiro, esta última alterada pela Lei Anticorrupção em 2013.

A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.848/13) exigiu que as empresas adotassem objetivamente o sistema de compliance, como forma de acabar com a corrupção e o crime organizado, conforme veremos mais adiante.

Os programas de compliance precisam ser inseridos nas empresas por meio de sua governança corporativa, isto é, os dirigentes, os líderes das empresas devem apresentar postura ética, de integridade e transparência de ações a fim de que seus seguidores/liderados possam seguir tais condutas. Isso é fundamental para a própria reputação da empresa. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC[5] usa do termo “compliance” para designar um conjunto de ações sistemáticas envolvendo acionistas, cotistas, diretores, conselheiros etc.

A gestão empresarial moderna de governança compartilhada tem no programa de compliance três colunas de sustentação: formulação, implementação e a consolidação.

Na formulação é imperiosa a avaliação de riscos de corrupção a que a empresa se sujeita e, nesse sentido, além da legislação interna, é preciso verificar o disposto nas Convenções Internacionais assinadas pelo Brasil. Os riscos devem ser mensurados de acordo com os possíveis prejuízos (danos) que venham causar.

Em seguida, na implementação mostra-se inafastável o exemplo dos superiores hierárquicos (tone at the top), ou seja, os líderes devem demonstrar por ações, mais que por palavras, a imagem ética e honesta da empresa, servindo de símbolo de integridade para seus subordinados.

A par disso, as regras de conformidade da empresa devem ser escritas em linguagem simples e acessível e colocadas ao alcance de conhecimento dos funcionários da empresa, por meio de cursos, palestras etc, fazendo-se a consolidação dos preceitos de ética, honestidade e transparência de ações.

Os funcionários e candidatos a emprego na empresa devem ser submetidos, periodicamente, a teste de avaliação sobre o código de ética da empresa e medidas anticorrupção.

Sabe-se que a transparência de ações deve ser a norma genérica dos empregados, no entanto, há casos em que o sigilo profissional é obrigatório, inclusive mediante termo firmado de confidencialidade, sob pena de demissão por justa causa (art. 482, g, CLT), sem prejuízo de eventual responsabilidade penal (art. 325, CP).

Ensina o professor Diogo de Figueiredo Moreira Junior[6] que a Administração Pública é “o conjunto de atividades preponderantemente executórias, praticadas por pessoas jurídicas de direito público ou por suas delegatárias, gerindo recursos total ou parcialmente públicos, na prossecução dos interesses legalmente cometidos ao Estado”.

Assim sendo, a Administração Pública realiza diuturnamente uma série de atividades satisfativas visando atender aos interesses e necessidades da população, referentes ao seu bem-estar.

Entretanto, essa multiplicidade inesgotável de tarefas no Estado de Direito deve observar e ter por parâmetros de regulação as leis e, primordialmente, a Constituição Federal.

Irrompem, por conseguinte, mecanismos de controle aos atos praticados pela Administração Pública, quer no que atine à legitimidade, quer no que se refere à legalidade.

Irene Nohara[7], com habitual lucidez, explica que “controle da Administração Pública significa o conjunto de mecanismos que permitem a vigilância, a orientação e a correção da atuação administrativa para que ela não se distancie das regras e princípios do ordenamento jurídico e dos interesses públicos que legitimem sua existência”.

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Os mecanismos de controle interno (autocontrole) são exercidos com base no primado da hierarquia, por meio da fiscalização e correção dos órgãos corregedores. De outra parte, o controle externo dá-se por meio da fiscalização contábil-financeira e parlamentar, por intermédio do Tribunal de Contas e do Poder Legislativo, assim como o controle judicial (de legalidade), a cargo do Poder Judiciário.

A Administração Pública indireta, exercitada por interposta pessoa, compreende as autarquias, as fundações, as empresas públicas, as sociedades de economia mista que, malgrado não se subsumam a preceitos herméticos da hierarquia, são controladas finalisticamente, por intermédio de supervisão, quanto a resultados alcançados. No mais, hoje em dia ganham relevo nessas instituições corporativas, em função de uma atividade ombreada à vida privada, os programas de compliance.

Nesse diapasão, ressalta-se que a atuação mercadológica dos entes paraestatais, com atribuições de feição executiva nos programas socioeconômicos do Estado que, mercê das inovações da competitividade do novo modelo de capitalismo globalizado, deve pautar sua régua de proceder segundo critérios éticos, honestos e transparentes (compliance).

Assevera Débora Motta Cardoso[8] que “o conceito de compliance insere-se entre os objetivos da boa governança corporativa e, nesses termos, esse instituto, que abrange o criminal compliance, desempenha um papel importante na diminuição dos riscos legais, especialmente no que se refere à lavagem de dinheiro e à corrupção. Isso porque, entre os objetivos relativos à governança corporativa, estão aqueles que buscam impedir que pessoas ligadas à prática desses crimes se infiltrem no mercado financeiro, fazendo-o por meio da imposição às instituições bancárias de normas de credibilidade, transparência e ética”.

4. Corrupção. Conceito aberto. Corrupção sistêmica no Brasil. Compliance Anticorrupção.

A corrupção é um tema que emerge como um grande problema da sociedade moderna, inerente e indissociável da condição humana e recorrente ao longo da história.

Compreende-se que o fenômeno da corrupção é elemento obstaculizante da concretização do Estado Democrático de Direito, sobretudo na expansão dos direitos sociais e econômicos.

A corrupção subverte a ordem jurídica, privilegia castas, mantém distinções, abala a moralidade pública e favorece interesses inconfessáveis de indivíduos inescrupulosos.

A corrupção, como fenômeno de múltiplo aspecto, pode ser encarada sob o ponto de vista político, social, econômico, jurídico etc.

Desponta consentâneo ao estudo desse trabalho o conceito tradicional de corrupção pública, como sendo todo e qualquer ato que viole deveres funcionais com o fim de obtenção de vantagens privadas indevidas.

Nesse sentir preleciona Melina Castro Montoya Flores[9] que “’o corrupto’ é o agente que faz uso da função para atender finalidade distinta da do interesse público, movido pelo objetivo de alcançar vantagem pessoal. Aqui, portanto, o funcionário “degrada” ou “deteriora” a autoridade de que foi investido em proveito próprio”.

A corrupção é um delito bifronte, eis que apresenta uma variável ativa e outra passiva, vale dizer, há corruptores e corruptos. E, por alçar aspectos multifacetados, a corrupção é um delito que, usualmente, ocorre na calada da noite, às escondidas, dificultando, por evidente, a obtenção de provas materiais de sua consumação.

A corrupção, enraizada na cultura e na gênese brasileira, quase sempre se amolda a uma zona nebulosa, não muito fácil de se descrever ou definir, comumente disfarçada sobre a forma de “doações”; “presentes”; “ação entre amigos”; “apoio” etc.

As relações envolvendo corrupção necessariamente carecem de confiança recíproca, sigilo e blindagem.

É bem de ver que, quando a corrupção é tida por sistêmica, isto é, quando passa de um órgão para contaminar todo o sistema vigente no país, atingindo, por exemplo, contratos públicos, insumos hospitalares, atividade policial, merenda escolar, ação parlamentar, futebol, loterias e apostas e até mesmo a ação do Ministério Público e a jurisdição etc, há que existir imediata e enérgica resposta das instituições democráticas e do ordenamento jurídico para por termo a essa desorganização, sob pena de fenecimento do próprio Estado.

Destarte, é crucial romper o elo entre a corrupção ativa (pagamento de propina) e a corrupção passiva (recebimento da propina), desestabilizando a relação harmoniosa entre corruptores e corruptos, com base na delação premiada e outros elementos de prova colhidos na investigação criminal.

Sempre se acreditou que a figura do delator, no âmbito criminal, era de alguém execrável, porque, inclusive, nos denominados “crimes de rua” (tráfico, roubo, furto etc.) a traição é punida com a morte, numa nítida subcultura delinquente, informada até por preceitos religiosos, que relembram o episódio da traição de Jesus Cristo, por seu apóstolo preferido Judas Iscariotes.

A criminalidade empresarial no Brasil, embora por força da CF esteja vinculada aos crimes contra o meio ambiente, muitas vezes não significa que as empresas não corrompam servidores públicos, parlamentares etc. Assim, a expressão criminalidade empresarial se refere aos crimes praticados no interesse da empresa ou por meio de seus empresários.

De fato, com as transformações operadas no mundo globalizado, principalmente pelo alto desenvolvimento da tecnologia da informação, as empresas passaram a necessitar cada vez mais da utilização de técnicas ou programas de compliance, como instrumentos criminológicos de controle social da atividade empresarial, com vistas à prevenção de ações deletérias por parte de seus colaboradores.

É nessa realidade que cabem os sistemas de compliance, compreendidos como um conjunto de normas e procedimentos fixados e revisados periodicamente pela empresa para identificar e avaliar os riscos da prática de atos corruptivos e para preveni-los, assim como adotar uma imediata resposta em caso de sua ocorrência.

5. Lei Anticorrupção (Lei nº 12846/2013) e novos métodos de coibir a corrupção.

                        Os novos métodos de enfrentamento da corrupção consistem no uso de  técnicas especiais de investigação criminal e são decorrentes das obrigações assumidas pelo Brasil, no campo internacional, por meio da Convenção Internacional contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena de 1988), Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo de 2000); Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida de 2003).

                        Além dos diplomas internacionais, havia a lei nº 9034/95 (Lei sobre o Crime Organizado), que foi revogada pela Lei nº 12850/2013. Essa mais recente legislação, em seu art. 3º, estabeleceu como novos standards de investigação criminal a colaboração premiada; a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; ação controlada; acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, bem como os dados cadastrais; interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas; afastamentos dos sigilos financeiro, bancário, e fiscal e infiltração de policiais.

                        Tais incrementos investigativos, no sentir de Fausto Martin de Sanctis[10] “visam ao combate efetivo do crime organizado para viabilizar processamento e julgamento eficaz, célere (no tempo adequado e correspondente às necessidades) e abrangente das condutas então investigadas”.

                        Outra novidade, introduzida na esfera empresarial, é a figura do acordo de leniência, que é firmado entre o Poder Público e agentes envolvidos em infrações da empresa, com apresentação de provas, com o fito da redução das penalidades que seriam impostas, uma vez cessadas as atividades ilegais.

5.1 Acordo de Leniência

                        A Lei Anticorrupção estabeleceu a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas por atos de corrupção e fraudes licitatórias no Brasil e no exterior, fixando também a possibilidade de celebração de acordo de leniência (arts. 16 e seguintes).

                        É plenamente possível a celebração de acordo de leniência entre a Administração Pública de qualquer esfera federativa e a pessoa jurídica responsável (empresa) pelo infracional que colabore de forma efetiva com as investigações, de sorte a identificar outras pessoas envolvidas nos atos de corrupção, bem como a fornecer provas de modo mais célere. 

                        Conforme explica João Daniel Rassi[11], “devem ser preenchidos os seguintes requisitos segundo a lei: a pessoa jurídica tem de ser a primeira a manifestar-se pela colaboração na elucidação do delito; deve cessar seu envolvimento; deve admitir sua participação e cooperar em todas as fases das investigações e do processo administrativo”.

5.2 Colaboração premiada

                        A colaboração premiada, prevista na Lei nº 12850/2013 (arts. 3ª A e seguintes), consiste num meio de obtenção de prova que pressupõe utilidade e interesse públicos, com vistas à concessão de um prêmio legal ao agente colaborador que auxiliar no desmantelamento de organização criminosa, seja identificando os demais cúmplices, localizando os proveitos da infração penal, revelando a estrutura hierárquica da organização dentre outras revelações citadas em lei.

                        O acordo de colaboração premiada tem natureza jurídica de negócio jurídico processual e tem como marco fundamental a confidencialidade e é quebra de confiança e violação de sigilo sua divulgação, antes do levantamento do sigilo por decisão judicial.

                        Advindo um ou mais resultados positivos da colaboração, ao réu o juiz poderá conceder o perdão judicial, reduzir a pena em até dois terços ou substituí-la por sanções restritivas de direitos.

                        O acordo de delação ou colaboração premiada deverá necessariamente contar com a participação do advogado do acusado ou defensor público (art. 3º B, §1º, Lei 12850/2013).

                        É importante deixar patente que nenhuma das seguintes medidas poderá ser decretada com base apenas nas declarações do colaborador: medidas cautelares reais ou pessoais; recebimento de denúncia ou queixa-crime; sentença condenatória.

5.3 Responsabilidade administrativa e judicial (civil).

                        A responsabilidade administrativa da pessoa jurídica (empresa) envolvida em atos de corrupção possibilita a aplicação das seguintes sanções previstas no art. 6º da Lei Anticorrupção: multa, calculada em valores situados em décimo por cento (0,1%) e vinte por cento (20%) do faturamento bruto do último exercício anterior à instauração do processo administrativo, publicação extraordinária da condenação.

                        Para a aplicação de tais penalidades é indispensável a instauração de processo administrativo sancionatório (arts. 8º e seguintes), assegurados a ampla defesa e o contraditório.

                        Além da responsabilidade administrativa e de eventual celebração de acordo de leniência, a pessoa jurídica estará, ainda, obrigada a reparar integralmente o dano causado (art. 16, § 3º, Lei Anticorrupção).

                        A responsabilidade judicial decorre da prática de atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, que ofendam o patrimônio público nacional ou estrangeiro ou aos princípios existenciais da administração pública ou ainda aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, na esteira do assentado nos incisos I a IV do art. 5º da Lei Anticorrupção.

                        Tais atos deletérios, uma vez cometidos, ensejam a adoção por parte da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, por meio de suas advocacias públicas ou procuradorias ou ainda pelo Ministério Público do ajuizamento de ação com o objetivo de aplicação das seguintes penas às empresas infratoras: perdimento de bens, valores, direitos advindos da infração; suspensão ou interdição parcial de suas atividades; dissolução compulsória da pessoa jurídica (pena de morte da pessoa jurídica); proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entes públicos pelo prazo de 1(um) a 5 (cinco) anos.

                        Importante ressaltar que a sanção de dissolução da pessoa jurídica (pena de morte da empresa) será aplicada quando ficar provada a utilização habitual da empresa para a prática de atos de corrupção e ter sido constituída para ocultar ou mascarar interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos corruptivos.

5.4 Cooperação individual (whistheblower) e denúncia anônima. Infiltração virtual de agentes.

                        Com a entrada em vigor no Brasil da Lei nº 13608/2018 (Denúncias anônimas e recompensas), o sistema jurídico nacional passou a regulamentar e fomentar a participação da comunidade nas investigações criminais, ensejando a criação dos “Disque-Denúncias”, resguardando o sigilo dos denunciantes, preservando-se o anonimato.

                        O denominado Pacote Anticrime (Lei nº 13964/2019) acrescentou uma novel figura àquele diploma legal – o whistheblower – apelidado de “informante do bem”, conforme lição autorizada de Janio Konno Júnior[12].

                        A doutrina especializada em compliance anticorrupção empresarial dispõe que o whistheblower deva ter informes reais, concretos, factíveis acerca do ilícito penal citado, mas sem coparticipação nos fatos incriminados que delata, pois, do contrário, cuidar-se-ia da delação ou colaboração premiada.

                        Nesse sentido aduz Janio Konno Júnior[13] que “fica clara a intenção do legislador em obter informações, por exemplo, de funcionários públicos ou empresas privadas nos crimes contra a Administração Pública, que podem ser investigados de forma mais segura e abrangente, com a aplicação desta técnica”.

                        A par da preservação de sua identidade, ao “informante do bem” assegura-se tutela contra perseguições ou responsabilização civil ou penal. 

                        Com relação à sistemática de denúncias anônimas, a CF garante a livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato (art. 5º, IV, CF).

                        A denúncia anônima não pode ser desprovida de outros elementos de prova, sob pena de imprestabilidade. Nesse sentido o STF[14] pontuou: As autoridades públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unicamente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de persecutio criminis”.

                        O STJ admite denúncia anônima, desde que devidamente motivada e baseada em investigação prévia ou sindicância, para deflagração de processo administrativo disciplinar levando-se em conta o poder de autotutela da Administração (Súmula 611 – STJ)

                        A infiltração virtual de agentes foi fixada pelo Pacote Anticrime, com a introdução dos artigos 10-A e seguintes na Lei nº 12850/2013.

                        A infiltração virtual terá cabimento quando não for possível a produção de provas por outros meios; valerá mediante ordem judicial por até 6 (seis) meses, à vista da investigação dos crimes atinentes às organizações criminosas.

                        No decorrer da investigação o agente infiltrado deverá colher e gravar todos os elementos sensíveis à demonstração do fato apurado.

                       

5.5 Interceptação telefônica e de dados de telemática

A Constituição Federal assegura no art. 5º, XII a inviolabilidade das comunicações como consectário da proteção à privacidade e dignidade da pessoa humana, excepcionando a tutela somente nas hipóteses legais para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

A norma regulamentadora do dispositivo é a Lei 9.296/96, que disciplinou a possibilidade de interceptação telefônica e de telemática (dados), desde que presentes os seguintes requisitos cumulativos: quando for imprescindível à investigação criminal ou produção de prova no processo penal; haja ordem judicial e nas hipóteses específicas veiculadas na lei, isto é, indícios razoáveis de autoria, imprescindibilidade à investigação ou processo criminal de infrações apenadas com reclusão.

Tanto as interceptações telefônicas quanto a de dados de telemática dar-se-ão por um período de 15 (quinze) dias, prorrogáveis por igual período.

Hoje em dia, com a tecnologia dos smartphones, os meios de comunicação virtual são muito mais utilizados que a própria telefonia, de maneira que a interceptação de dados de telemática é importante ferramenta ao alcance do Delegado de Polícia ou do Representante do Ministério Público na condução dos atos de investigação criminal ou processual.

5.6 Gravação ambiental e direito à privacidade.

O direito à privacidade e a garantia de preservação da intimidade encontraram substrato protetivo constitucional contra a ingerência espúria externa.

A intimidade guarda relação com o trato das relações intersubjetivas do indivíduo, com o seu âmago, com o íntimo recesso de seu lar, compreendendo laços de família e amizade, ao passo que o conceito de privacidade tem uma amplitude mais elástica, abrangendo também relações comerciais, de estudos, profissionais etc.

Contudo, resta ponderar não haver liberdade pública ou direito fundamental absolutos, de sorte que, mesmo a privacidade ou intimidade, podem sofrer restrições constitucionais, tais como, busca e apreensão, interceptação telefônica e de dados, prisão em flagrante ou por mandado judicial e outras limitações expostas nos estados constitucionais de crise (Estado de Defesa ou Estado de Sítio, arts. 136, 137 e seguintes da Constituição Federal).

Gravação ou interceptação ambiental, na preciosa lição do professor Luciano Anderson de Souza[15] “consiste na captação, realizada por alguém, de sons ou imagens produzidas por outras duas ou mais pessoas no local em que se encontram, sem que essas tenham ciências daquele”.

A Lei 9.296/96, alterada pelo Pacote Anticrime, fixou o art. 8º- A, incisos I e II, estabelecendo a captação de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, condicionando-a à presença de dois requisitos importantes, indícios razoáveis de autoria ou participação em crimes punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos ou em infrações penais conexas. O outro requisito é a impossibilidade de a prova ser produzida por outros meios disponíveis e eficazes.

É bem de ver que a gravação ambiental deve ser utilizada como ultima ratio, na medida em que a intimidade e/ou a privacidade só podem ser excepcionadas da tutela constitucional nas situações limites, bem como no processo de captação é possível que sejam gravados diálogos com terceiros, que não tenham a menor conexão com os fatos objetos da investigação.

Ressalte-se a inadmissível e odiosa prática, em tese atribuível àqueles que conduzem investigações criminais, mais por apego às câmeras televisas que pela busca da verdade real, de revelação à mídia do conteúdo de conversas telefônicas interceptadas ou da gravação ambiental colhida, destruindo reputações alheias, o que tipifica infração penal. O malsinado lavajatismo é um exemplo de desmandos dessa espécie.

A captação de sinais pode se dar em locais públicos ou privados, previamente informados ao juiz, somente poderá ser acessada pelo Delegado de Polícia ou pelo Promotor de Justiça, correndo necessariamente em sigilo.

É curial o Estado dotar a polícia judiciária de recursos orçamentários amplos para a aquisição e desenvolvimento de novas tecnologias investigativas para enfrentamento do crime organizado além fronteiras.

5.7.  Poder Requisitório na investigação e quebra de sigilo de provedores da internet e de aplicativos de comunicação.

A Constituição Federal estabeleceu competência investigatória criminal às polícias civis, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal. Semelhante atribuição se deu à Polícia Federal no âmbito da União (art. 144, §§ 1º e 4º, CF).

Daí ser uma heresia jurídica e moral advogar a tese de que os delegados de polícia não precisam conhecer da investigação criminal, de vez que são administradores ou gestores. Uma de duas: ou é fruto de um analfabetismo jurídico de raiz ou irrompe como leviandade de caráter.

Aos delegados de polícia a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional asseguraram um feixe de competência e poderes-deveres, muitos deles de nítido caráter decisório. Daí, v.g., o Delegado de Polícia decidir pela decretação da prisão em flagrante do suspeito; determinar o indiciamento do investigado, submetendo-o à identificação criminal (se não possui documento legal de identidade); determinar a reprodução simulada dos fatos; requisitar perícias, vistorias, avaliações etc. Por tudo isso e mais o Delegado de Polícia é tratado pela legislação adjetiva como autoridade policial, haja vista seu poder de decisão e requisição.

Além das disposições, acima aludidas, a Lei nº 12.830/2013 dispôs que as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais, exercidas pelo delegado de polícia, são essenciais ao Estado e exclusivas, com natureza de atividade jurídica. Mais disso, acrescenta que ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe-lhe a direção da investigação criminal, por meio do inquérito policial ou outro procedimento legal, com o fim do deslinde da autoria e comprovação da materialidade delitiva.

No decorrer da investigatio cabe à autoridade policial (delegado de polícia) o poder legal de requisitar perícias, documentos, informações e dados relevantes à apuração dos fatos. O poder requisitório significa que o delegado decide e determina que se cumpra um dever legal, sob pena de responsabilidade criminal.

Por isso, diz-se que requisitar é ordenar que se cumpra a lei integralmente, sob pena de desobediência.

Nesse sentido, nem todos os policiais ostentam a categoria ou status funcional de autoridade. Autoridade Policial é o Delegado de Polícia porque a ele se atribui o poder decisório e requisitório. Os demais policiais são agentes a serviço da autoridade.

Bem por isso, o inesquecível Caio Tácito já avisava “não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito”.

No que se refere aos delitos de colarinho branco, em especial de corrupção, muitas ações incriminadas deixam vestígios ou indícios de prova nas nuvens digitais das empresas eletrônicas Google e Apple.

Para uma investigação mais exitosa, deverá a autoridade policial oficiar a tais empresas para preservação do histórico de navegação registrado em nuvem, ou ainda restauração do aplicativo Whatsapp e linha do tempo de pesquisas nesses instrumentais. Depois disso, deverá representar ao juiz pelo afastamento do sigilo de tais dados, o que nem sempre encontra uniformidade decisória jurisprudencial.

Os professores Higor Vinicius Nogueira Jorge, Márcio Rogério Porto, Hélio Molina Jorge Júnior e Ulisses da Nóbrega Silva[16], em brilhante ensaio, sustentam que “aprioristicamente cabe considerar que o delegado de polícia, durante a tramitação de um inquérito policial, pode representar para que o Poder Judiciário emita uma determinação para que o Google, Apple ou Microsoft promova o fornecimento de informações de interesse da investigação”.

6. Prevenção da corrupção pela inserção da cidadania na agenda federativa. A utilização da Inteligência Artificial no papel de prevenção à corrupção.

O Brasil enfrenta uma crise de corrupção, no âmbito dos três poderes, jamais vista em tamanho, intensidade e consequências.

Desde o processo de redemocratização (1989) já conta o país com 2 (dois) Presidentes da República afastados por impeachment, inúmeros parlamentares presos e condenados, governadores, prefeitos, vereadores, juízes, promotores, policiais e servidores públicos afastados ou presos por corrupção.

A corrupção brasileira é de raiz, crônica, derivada de um processo histórico de colonialismo explorador. A par disso, há um sistema político centralizador, que remonta à monarquia, com a concentração de poderes e rendas nas mãos do órgão central (União). Mais: o sistema eleitoral congressual cria condições para que o Executivo – refém permanente do Parlamento – maneje o orçamento como uma “ação entre amigos”, deferindo emendas parlamentares propositivas e distribuindo cargos em comissão para apaniguados.

É o fermento ideal para o bolo da corrupção. Adicione-se a isso a constante impunidade e letargia do sistema de distribuição de justiça penal.

Todavia essa avalanche sistemática e permanente de atos de corrupção, nas três esferas de poder, por toda a federação, não justifica e nem autoriza o desrespeito aos princípios constitucionais e regras orientadoras do devido processo criminal brasileiro.

Em tempos da Operação Lava Jato[17] assistiu-se no Brasil, por um lado, a uma vertente efetiva de enfrentamento à corrupção, com a ação coordenada em força tarefa por Delegados de Polícia e Procuradores da República (MPF), que culminou na prisão de inúmeros políticos, dentre os quais um ex-Presidente da República; centenas de apreensões de bens, dinheiros e valores, arrestos, sequestros de iguais patrimoniais ilícitos e a repatriação de dinheiro evadido criminosamente para outros países.

Porém, de outro lado, a vaidade e projeto de poder de alguns dos protagonistas da Lava Jato fizeram com que a operação passasse por cima de direitos fundamentais de investigados, com inequívocos espetáculos midiáticos de cerceamento de defesa, vazamento seletivo de informações sigilosas à grande imprensa e outros abusos, com o consentimento de setores da mídia coarctados ou submissos e o aval da população juridicamente néscia.

Sob o falacioso, no entanto envolvente, argumento do ativismo judicial (originário do sistema norte-americano) a força tarefa da Lava Jato, muitas vezes coonestada por alguns ministros do STF, passou a interpretar criativamente as normas constitucionais, no afã de fazer justiça a qualquer preço. Essa postura hermenêutica expansiva violou, por vezes, os cânones comezinhos de legalidade, impessoalidade, moralidade e, sobretudo, o princípio publicístico da confiança legítima, os quais exigem do Estado atuação leal e coerente, por intermédio de suas funções típicas, de modo a vedar condutas contraditórias, uma vez que os cidadãos sempre esperam do Poder Público a edição de leis, atos administrativos e prolatação de sentenças que preservem ou restaurem a paz pública e a tranquilidade social. As decisões do Estado-Juiz não podem alterar o conteúdo da CF sem observância do devido processo legislativo do poder constituinte de reforma.

É preciso instar a Pasta da Educação para inserção nos currículos escolares de estudos sobre a cidadania como fonte permanente de combate à corrupção.

Cidadãos cônscios de seus deveres assumem postura ética de compromisso com a Nação. Isso reduz marginalidades e desigualdades sociais. Resgata-se a dignidade do ser humano, inserindo-o no contexto político-social do país, na qualidade de agente transformador.

A corrupção traz benefícios aos piores criminosos, isto é, àqueles que subtraem o civismo de um país. Prevalecem os desonestos sobre os homens leais e dignos, invertendo-se a ordem natural das coisas e se abrindo caminho para a desconstrução do Estado, transformando-o numa massa disforme, desregrada, dividida e distribuída desordenadamente no espaço territorial.

O desenvolvimento da tecnologia de ponta, sobretudo na área de informática, com os supercomputadores, softwares de última geração e a adoção, cada vez mais presente, das técnicas de compliance empresarial anticorrupção, possibilitaram a implementação da Inteligência Artificial (I.A.) no combate às fraudes e condutas ilícitas nas empresas.

Certo é que o uso de tecnologia de I.A. deve estar em consonância com os direitos fundamentais, sob pena de imprestabilidade e de ofensa à Constituição Federal.

A inteligência artificial, por intermédio de padrões pré-estabelecidos de cultura ética, de honestidade, integridade e transparência da empresa, compila dados estruturais com vistas à prevenção, detecção e busca de algum elemento ou fragmento que possa ilustrar conduta irregular ou fora da ética.

Nesse sentido, a inteligência artificial precisa ser alimentada pelos dados coligidos na empresa, a fim de que possa desenvolver um processo de aprendizagem (“machine learning”), baseado em condutas íntegras, probas e em conformidade com as regras.

7. Conclusão

O Brasil não pode mais esperar para adotar medidas sérias e efetivas no combate à corrupção sistêmica e endêmica que o consome.

Além de medidas rigorosas no campo penal, frente aos desafios do crime organizado, quer da criminalidade a varejo, quer dos delitos de colarinho branco, é imprescindível que a lei de execução penal adote critérios mais rígidos e fechados em prejuízo de um garantismo penal exagerado que desserviu aos interesses coletivos.

De outra banda, é preciso dotar as polícias judiciárias de autonomia técnica, funcional, financeira e administrativa, tornando-as verdadeiramente imparciais e refratárias às ingerências espúrias e deletérias de governantes desonestos ou tiranos na sua atividade-fim.

Mais disso, o equilíbrio processual deve ser cláusula pétrea, descabendo superposição de poderes aos órgãos acusatórios, em detrimento da defesa, sob pena de retorno à inquisição por hostes, disfarçados de arautos da legalidade.

O advento do compliance empresarial mostrou-se importante ferramenta condicionante e fiscalizadora de integridade, lealdade, transparência e conformidade, plenamente aplicável à administração pública.

Não é inexequível que a Administração Pública possa utilizar, para além dos mecanismos de controle interno e externo, de programas de compliance, adotando regras de integridade e manuais de comportamento ético no serviço público.

A ética, a integridade, a honestidade e a transparência não convivem ou toleram a presença da corrupção, em quaisquer de seus trajes, às escondidas ou às claras.

Essas ações investigativas imprescindíveis representam a garantia de permanência do Estado Democrático de Direito.

Afinal de contas: quem tem medo da Democracia?

8. Referências Bibliográficas

Andreucci, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial, 5ª edição, Saraiva, 2009.

Batista, Renata Ribeiro. Corrupção: Aspectos Sociológicos, criminológicos e jurídicos. Coord. Daniel de Rezende Salgado e tal, Ed. JusPodivm, 2020.

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Konno Jr, Janio. Enfrentamento da Corrupção e Investigação Criminal Tecnológica. A figura do whistheblower e a infiltração de agentes no combate aos crimes contra a administração pública. Editora JusPodivm. 2020.

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Souza, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime Lei 13.964/2019. Ebook. Editora Revista dos Tribunais. 2020.


[1] Penteado Filho, Nestor Sampaio. Manual Esquemático de Criminologia, 9ª edição, Editora Saraiva, 2019, pg. 114.

[2] Corrupção: Aspectos Sociológicos, criminológicos e jurídicos. Coord. Daniel de Rezende Salgado e tal, Ed. JusPodivm, 2020, pg. 204.

[3] Curso de Direito Penal, vol. 4, 2ª Ed., Ed. Saraiva, 2007, pg. 585/586

[4] Legislação Penal Especial, 5ª edição, Ed. Saraiva, 2009, pg. 383

[5] Disponível em: <www.ibgc.org.br>. Acesso em: 16.11.2020.

[6] Curso de Direito Administrativo, 11ª edição, Ed. Forense, RJ, 1996, pg. 81.

[7] Direito Administrativo, 3ª edição, Editora Atlas, 2013, pág. 833.

[8] A extensão do compliance no Direito Penal: análise crítica na perspectiva da Lei de Lavagem de dinheiro. Tese de Doutorado. FADUSP. 2013, pg. 39. Ineditorial

[9] O crime de corrupção e a análise do ato de ofício. In. Corrupção Aspectos sociológicos, criminológicos e jurídicos. Coord. Daniel de Resende Salgado et al. Editora Jus Podivm. 2020. pg. 546

[10] Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro, 2ª edição, Ed. Saraiva, S.P., 2015, pg. 31.

[11] Estudos em homenagem a Vicente Greco Filho. Considerações iniciais sobre o acordo de leniência na nova Lei Anticorrupção (Lei nº 12846, de 1 de agosto de 2013). Editora Liberais. São Paulo. 2014. pg 267.

[12] Enfrentamento da Corrupção e Investigação Criminal Tecnológica. A figura do whistheblower e a infiltração de agentes no combate aos crimes contra a administração pública. Edit. JusPodivm. 2020. pg 160.

[13] Idem

[14] STF, HC 100.042-0/RR. Rel. Min. Celso de Mello

[15] Comentários ao Pacote Anticrime Lei 13.964/2019. Ebook. Editora Revista dos Tribunais. 2020. R.B. 8-2

[16] Enfretamento da corrupção e investigação criminal tecnológica. Procedimentos, fontes abertas, estudos de casos e Direito Anticorrupção. Editora Jus Podivm. 2020. pg. 33.

[17] Denominou-se Operação Lava Jato o conjunto de investigações, algumas controversas, em andamento pela Polícia Federal do Brasil e Ministério Público Federal, que cumpriu mais de mil mandados de busca e apreensão, de prisão temporária, de prisão preventiva e de condução coercitiva, visando apurar um esquema de lavagem de dinheiro que movimentou bilhões de reais em propina. A operação teve início em 17 de março de 2014 e contou com 71 fases operacionais autorizadas, entre outros, pelo então juiz Sérgio Moro, durante as quais prenderam-se e condenaram-se mais de cem pessoas. Investigou crimes de corrupção ativa e passiva, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, organização criminosa, obstrução da justiça, operação fraudulenta de câmbio e recebimento de vantagem indevida.

Sobre os autores
Nestor Sampaio Penteado Filho

Delegado de Polícia de Classe Especial. Mestre em Direito Processual Penal. Professor da Academia de Polícia de SP. Professor Universitário. Autor de obras jurídicas, dentre as quais do Manual Esquemático de Criminologia, Ed. Saraiva, 11ª edição, 2021.

Alberto Angerami

Gerente de Compliance do Instituto Butantã/SP. Presidente do DENATRAN (2013/2015). Delegado Geral Adjunto de SP (2009/2010). Corregedor Geral da Polícia de SP (2008-2009). Bacharel em Direito PUC/SP e Especialista em Direito Administrativo PUC/SP. Professor Emérito da ACADEPOL/SP. Professor Universitário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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