A obrigatoriedade da atuação dos entes estatais no caso da pandemia da covid-19

14/03/2021 às 15:55
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE O CONFLITO DE COMPETÊNCIA NA ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA A SAÚDE, NO ÂMBITO FEDERATIVO, E A OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO ESTATAL.

A OBRIGATORIEDADE DA ATUAÇÃO DOS ENTES ESTATAIS NO CASO DA PANDEMIA DA COVID-19

Rogério Tadeu Romano

I – O DIREITO À SAÚDE E O CONFLITO ENTRE AS AÇÕES DOS ENTES DA FEDERAÇÃO

Discute-se aqui sobre a competência dos municípios de tratar de assuntos de especial interesse local no que concerne ao combate aos efeitos da covid-19.

Art. 30. Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

…………

O Município está no conceito da federação brasileira, tal como determina o artigo 18 da CF.

Dir-se-á que há competência concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para editar sobre normas de saúde.

Como fica a situação com relação ao funcionamento do comércio?

Sobre tal já decidiu o STF:

É o caso da Súmula Vinculante 38: “Competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial.” No caso, verifico que a competência para disciplinar o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais é do município, tendo em vista o que dispõe o art. 30, I, da CF/1988. Esta Corte já possui entendimento assentado nesse sentido, consolidado no enunciado da Súmula 645/STF: “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”. (…) deve-se entender como interesse local, no presente contexto, aquele inerente às necessidades imediatas do Município, mesmo que possua reflexos no interesse regional ou geral. Dessa forma, não compete aos Estados a disciplina do horário das atividades de estabelecimento comercial, pois se trata de interesse local. [ADI 3.691, voto do rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 29-8-2007, DJE 83 de 9-5-2008.]

“Está claramente definido no art. 30, I, da CF/1988 que o Município tem competência para legislar sobre assuntos de interesse local. (…) 8. Entre as várias competências compreendidas na esfera legislativa do Município, sem dúvida estão aquelas que dizem respeito diretamente ao comércio, com a consequente liberação de alvarás de licença de instalação e a imposição de horário de funcionamento, daí parecer-me atual e em plena vigência, aplicável inclusive ao caso presente, a Súmula 419 desta Corte, que já assentara que “os Municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas”. [RE 189.170, voto do rel. min. Marco Aurélio, P, j. 1º-2-2001, DJ de 8-8-2003.].

Com efeito, a controvérsia constitucional instaurada na presente causa já se acha dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, (…) ao julgar a ADI 3.691/MA, rel. min. Gilmar Mendes (…). Esse entendimento tem sido observado pelo Supremo Tribunal Federal, cujas decisões, proferidas em sucessivos julgamentos sobre a matéria ora em exame, reafirmaram a tese segundo a qual compete ao Município — por tratar-se de matéria de interesse local (CF/1988, art. 30, I) — fixar o horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, sem que o exercício dessa prerrogativa institucional importe em ofensa aos postulados constitucionais da isonomia, da livre iniciativa, da livre concorrência, do direito à saúde ou da defesa do consumidor (…). [RE 926.993, rel. min. Celso de Mello, dec. monocrática, j. 27-11-2015, DJE 245 de 4-12-2015).

Mas, afinal, o que é interesse local que determine essa competência do Município com relação a esses assuntos?

Deve-se entender como interesse local, no presente contexto, aquele inerente às necessidades imediatas do município, mesmo que possua reflexos no interesse regional ou geral. Dessa forma, não compete aos Estados a disciplina do horário das atividades de estabelecimento comercial, pois se trata de interesse local.

II – ENTENDIMENTOS DO STF

O STF possui entendimento assentado nesse sentido, consolidado no enunciado da Súmula n° 645/STF: “” É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”. No mesmo sentido, inúmeros precedentes da Corte, dentre os quais cito: RE-AgR n° 203.358, 2a T., unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29.8.1997; RE n° 174.645, 2a T. , unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 17.11.1997; RE n° 237.965, Pleno, unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 31.3.2000; RE n° 274.028, 1a T., unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 10.8.2001; RE n° 189.170, 2a T., maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 8.8.2003; AI-AgR n° 481.886, 2a T., unânime, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 1.4.2005.

Sobre a matéria, disse Uadi Bulos (Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 607) que:

“Mas, no que tange ao conceito de “interesse local”, aplica-se ou não toda aquela exegese doutrinária, avalizada pela jurisdição de nossos Tribunais, a respeito da expressão “peculiar interesse municipal? Parece-nos que sim. Nada obstante o fato de o constituinte de 1988 ter substituído a terminologia “peculiar interesse municipal” por interesse local, o certo é que cairá na esfera de atribuições do município tudo aquilo que for predominante ao gerenciamento de seus negócios próprios nos limites das atribuições que as normas constitucionais e ordinárias lhe irrogam. Isso não significa exclusividade, pois, como profligou Hely Lopes Meirelles, “Peculiar Interesse não é o interesse exclusivo do Município, não é interesse privativo da localidade, não é interesse único dos municípios. Se se exigisse essa exclusividade essa privatividade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o reflexamento da União e do Estado-membro, como também não há interesse regional ou nacional, que não ressoa nos Municípios, como partes integrantes da Federação brasileira, através dos Estados a que pertencem. O que define e caracteriza o peculiar interesse inscrito como dogma constitucional é a predominância do interesse do Município sobre o Estado e a União(Direito municipal brasileiro, 4ª edição, 1981, pág. 86).”

Sobre a matéria, disse o ministro Carlos Velloso, no AI-AgR n° 481.886:

“Ora, a fixação do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, situados no território do Município, é da competência deste, dado que se constitui em matéria ou assunto de interesse local (C.F., art. 30, I). Destarte, a legislação local, que assim disponha, desde que o faça de forma razoável, tem legitimidade constitucional. Assim procedendo, a legislação municipal não causa ofensa aos dispositivos inscritos no art. 170, IV, (livre concorrência), V (defesa do consumidor) e VIII (busca do pleno emprego), dado que esses princípios devem ser visualizados no sistema da Carta. Haveria ofensa ao princípio da livre concorrência se a legislação proibisse para uns o funcionamento num certo horário e facultasse para outros. Isto, evidentemente não ocorre, no caso. É dizer, o horário de funcionamento é para todos os estabelecimentos comerciais. Os princípios de defesa do consumidor e busca do pleno emprego , (C.F., art. 170, V, art. 5o, XXXII) (C.F., art. 170, VIII), por sua vez, devem conviver com o poder de polícia exercido pelo Município, que tem por finalidade o interesse coletivo. No caso, interfere o interesse de parcela da comunidade, que são os empregados dos estabelecimentos, com direito ao descanso. De outro lado, a busca do pleno emprego não e faz desordenadamente.

A alegação no sentido de que a legislação municipal, no ponto, é atentatória ao princípio da isonomia □ C.F., art. 5o, caput, não é razoável, dado que o horário estabelecido atinge a todos e não apenas a alguns comerciantes. Não há invocar, no ponto, o horário de funcionamento de lojas situadas em “shopping-centers’ , dado que essas lojas não se igualam, em termos de localização, às lojas situadas nas vias públicas. Ora, o princípio da igualdade se realiza na medida em que desiguais são tratados com desigualdade e iguais com igualdade.” (AI(AgR) n° 481.886-SP, 2ª T., unânime, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 1.4.2005).

E se houver discordância com relação ao horário comercial dentro do confronto entre os decretos estadual e municipal na matéria?

Por óbvio, aplica-se a Súmula 645 do STF e ainda Súmula Vinculante:

PSV 89

A proposta foi formulada pelo ministro Gilmar Mendes com o objetivo de converter a Súmula 645 do STF em súmula vinculante. A partir da publicação, o verbete deverá ser convertido na Súmula Vinculante 38: “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”

Mas, adite-se, que em matéria de saúde, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que governos estaduais e municipais têm poderes para decretar ordens restritivas durante a pandemia —entre as quais o isolamento social, a quarentena, a suspensão de atividades de ensino, as restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas —, mesmo que o governo federal tome depois medida em sentido contrário. Ainda segundo o ministro, a validade dos decretos dos governos estaduais e das prefeituras poderá ser analisada pelo Judiciário individualmente:

“Não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/ isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos”.

Mas tudo isso não afasta a competência da União Federal em legislar em termos gerais sobre a matéria, atendidos os interesses regionais que são atinentes ao Estado membro e ao Distrito Federal como unidades federativas.

Raul Machado Horta, um dos teóricos brasileiros que mais têm dedicado atenção ao tema do federalismo, considera que o constituinte de 1988 “enriqueceu a autonomia formal, dispondo que a competência da União consistirá no estabelecimento de normas gerais, isto é, normas não exaustivas, e a competência dos Estados se exercerá no domínio da legislação suplementar”. Complementando essa observação, oferece em seguida uma noção muito precisa: “A lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a afeiçoá-la às peculiaridades locais” (Estudos de Direito Constitucional, Del Rey, Belo Horizonte, 1995, págs. 419/420).

Para José Afonso da Silva, que integrou a Comissão Afonso Arinos, encarregada de elaborar o anteprojeto de Constituição que serviu de ponto de partida para os constituintes de 1988, pode-se falar com propriedade numa legislação principiológica, na qual se enquadrariam a fixação de normas gerais e a legislação sobre diretrizes e bases (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Ed.Revista dos Tribunais, 1989, pág.434). Para ele, portanto, legislar sobre normas gerais significa estabelecer princípios sobre determinada matéria, deixando para a legislação suplementar o estabelecimento de regras relativas a situações particulares.

Observo o caso envolvendo a controvérsia entre os decretos do Município de Natal e do Estado do Rio Grande do Norte em matéria de horário de funcionamento das atividades e a questão das chamadas atividades essenciais. As decisões que listo abaixo servem de guia para tal, além daqueles que já mencionei.

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Recentemente, em março deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, restabeleceu a plena eficácia do Decreto estadual 65.545/2021 de São Paulo que determinava a classificação do Município de São José dos Campos na fase vermelha do Plano São Paulo de combate à pandemia da Covid-19. A decisão cautelar foi proferida em dois pedidos de Suspensão de Liminar (SL 1428 e SL 1429) contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) que havia autorizado a migração do município para a fase laranja, menos rígida.

Inicialmente, a Vara da Fazenda Pública de São José dos Campos havia indeferido o pedido de nulidade do decreto, formulado pela prefeitura municipal. Em análise de recurso, o TJ-SP acatou a argumentação de que a taxa de ocupação de leitos no município era inferior a 75% e deferiu a tutela provisória.

Na decisão, o ministro Fux observou que o agravamento recente da pandemia, causado, entre outros fatores, pelo surgimento de variantes do vírus e cujos efeitos extrapolam as fronteiras dos municípios e dos estados, indica a necessidade de harmonia e de coordenação entre as ações públicas dos diversos entes federativos. Ele salientou que as medidas governamentais adotadas para o enfrentamento da pandemia extrapolam, em muito, o mero interesse local.

De acordo com o ministro, o decreto, expedido no exercício de competência legítima da administração estadual, conforme já reconhecido pelo STF, não é desproporcional nem irrazoável em seu conteúdo. Na sua avaliação, a decisão do TJ-SP representa potencial risco de violação à ordem público-administrativa e à saúde pública, diante da real possibilidade de que venha a desestruturar as medidas adotadas pelo estado para fazer frente à pandemia.

A medida foi tomada no âmbito da SL SL 1428 e ainda SL 1429.

Em liminar deferida na Suspensão de Segurança (SS) 5467, o ministro Fux suspendeu a eficácia de decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí que havia sustado parcialmente os efeitos do decreto. O presidente do STF entendeu que o governo estadual atuou de forma legítima e dentro de suas atribuições constitucionais e, como no caso de São Paulo, destacou a possibilidade de que a suspensão do decreto desestruture as medidas de combate à pandemia adotadas pelo Piauí.

Mas observo que essas decisões estão no âmbito de providências de ordem metajurídica, tomadas no âmbito de suspensão de liminar, onde se verificam aspectos políticos.

A Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, em seu artigo 4º, determinou que compete ao Presidente do Tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Na suspensão de liminar não se enfrentam o mérito, o litígio. Trata-se de providência cautelar, na linha de Calamandrei, não esgotando o pedido formulado.

Essas providências não enfrentam o mérito, sequer em cognição superficial, como é próprio das liminares. Elas têm nítido caráter político, daí porque metajurídicos.

III - O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO ESTATAL

Penso que o assunto, por envolver uma pandemia, tem que ser tratado como direito à saúde. Se entendido como tal a competência seria concorrente, como julgado pelo Supremo na ADi 6341. Por compreender ser aplicado ao caso o princípio da precaução/prevenção, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria. Sobre a matéria há interesse estudo de Gabriel Vedy (O princípio constitucional da precaução como instrumento do meio ambiente e da saúde pública", Ed. Forum, 3ª ed., 2020).

Outra vertente diz respeito à aplicação dos princípios da prevenção e da precaução o que exigiria maior atenção das autoridades sanitárias e o implemento de medidas mais severas.

Em sendo assim, sob essa ótica, na controvérsia entre as medidas legais tomadas pelo município ou pelo Estado Membro adotar-se-ia a mais grave e a mais incisiva para o caso.  

O objetivo do Princípio da Prevenção é o de impedir que ocorram danos à saúde, concretizando-se, portanto, pela adoção de cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos.

O Princípio da Precaução, por seu turno, possui âmbito de aplicação diverso, embora o objetivo seja idêntico ao do Princípio da Prevenção, qual seja, antecipar-se à ocorrência das agressões à saúde.

Enquanto o Princípio da Prevenção impõe medidas acautelatórias para aquelas atividades cujos riscos são conhecidos e previsíveis, o Princípio da Precaução encontra terreno fértil nas hipóteses em que os riscos são desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública um comportamento muito mais restritivo quanto às atribuições de fiscalização e de licenciamento das atividades potencialmente danosas à saúde.

Com isso proteger-se-ia o direito à saúde, que tem natureza difusa na sociedade.

Para tanto, é preciso reconhecer que, tendo em mente a equivalência valorativa entre os princípios da precaução e da prevenção, viabilizar-se-ia a sua consideração em duas dimensões, duas faces de uma mesma moeda: a) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos são previsíveis ou conhecidos (situação tradicionalmente associada ao princípio da prevenção); e b) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos não são previsíveis ou não são conhecidos (situação comumente associada ao próprio princípio da precaução).

Essa necessidade de atuação do Poder Público é respaldada na existência de outro princípio: o princípio da obrigatoriedade da ação estatal.

Sendo assim, repito, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria, dentro de um necessário pacto pela vida.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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