CAPÍTULO 1/2 - ‘FAÇA O QUE EU DIGO, NÃO FAÇA O QUE EU FAÇO’
Ainda é aventado em diversos debates políticos que os prazos prescricionais de alguns crimes deveriam ser alargados, tendo em vista que a sistemática processual ‘a brasileira’ oportuniza um leque muito amplo de recursos aos advogados.
Tal sofisma não merece guarida, pois a ausência de um julgamento em tempo adequado não se deve à quantidade de recursos oportunizados, pois constituem valioso instrumento em favor da presunção de inocência. Não se justifica diminuir o leque de instrumentos do acusado em razão da ineficiência do Estado. Ao contrário, o Estado quem deve se amoldar à legislação federal que discorre sobre processo, quando esta não combate o próprio texto constitucional.
Por óbvio, a morosidade dos julgamentos não é um fator unívoco e fácil de compreender. Ao contrário, é produto de diversos problemas de gestão pública acumulados (como a quantidade colossal de processos que um juiz deve administrar; a ausência de uma gestão efetiva nos órgãos públicos que se debruçam sobre a atividade jurisdicional; a inexistência de punição aos servidores públicos quando da inércia imotivada em impulsionar os processos, sobretudo juízes; ausência de concursos públicos para preenchimento de mais vagas para promotores, juízes e defensores, etc.), bem como uma esquizofrenia jurisprudencial e normativa, não sendo a pretensão, nesse momento, discorrer sobre tais aspectos que evidenciam a inaptidão do Estado, hoje, para consumar os objetivos que a própria Constituição elege como baluarte para a prestação de um atendimento jurídico adequado à sociedade, quais sejam, o julgamento em um tempo razoável, o acesso à justiça e a confiança de que as desavenças levadas a um tribunal serão apreciadas (contorno do princípio da segurança jurídica).
Dando continuidade ao debate, a prescrição é um instrumento que serve como constrangimento epistemológico da atuação do Estado, obstando uma inércia infinita no que tange ao poder do punir. Se o Estado (que faz a lei) não se submete à própria, estaríamos diante do famoso brocardo “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, não merecendo vez tal lógica em uma democracia constitucional.
Ironicamente, os maiores propulsores da tese de que os recursos deveriam ser limitados, enxugando os códigos de processo e diminuindo a quantidade de recursos ditos protelatórios, se utilizam dos mesmos quando são alvo investigações. Não é preciso ir muito longe, basta trazer à memoria o Procurador Federal Deltan Dallagnol, que sozinho é um ávido crítico da prescrição e da ‘enormidade’ de recursos no processo penal.
Em 2016 o membro do Ministério Público Federal foi alvo de um processo administrativo disciplinar (PAD), tendo sido reconhecido no caso o decurso do prazo prescricional:
“Em entrevista concedida ao Jornal da Manhã em 2016, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da autointitulada "força-tarefa da lava jato" em Curitiba, afirmou que 97% dos casos de corrupção não são punidos. "Uma das razões para a impunidade", destacou na ocasião, é a prescrição. Agora, cerca de quatro anos depois, o inveterado crítico de "recursos protelatórios" conquistou uma prescrição para chamar de sua
Isso porque nesta terça-feira (25/8) o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu não abrir processo administrativo disciplinar (PAD) para investigar a conduta de Deltan Dallagnol, justamente porque as penas que poderiam ser aplicadas a ele já estavam prescritas. A abertura do PAD era um dos três pedidos feitos ao CNMP pela defesa de Lula. A apreciação do caso já havia sido adiada 42 vezes.
[...]
Dallagnol foi beneficiado por um processo mal conduzido. Desde que foi ajuizado, em 15 de setembro de 2016 — apenas um dia depois da apresentação em PowerPoint —, a apreciação do caso foi adiada 42 vezes pelo CNMP.
Ao finalmente julgar o pedido de Lula, a maioria dos conselheiros considerou que a conduta do coordenador da "lava jato" possibilitaria a instauração de PAD.
[...]
O julgamento desta terça-feira contou com manifestações que revelam as peculiaridades do caso. Marinela disse ser uma infelicidade para ela estar ali reconhecendo a impossibilidade de tratar o tema julgado. "Essa não é uma constante nesta casa. É com tristeza que estamos aqui reconhecendo a prescrição", afirmou.”[1]
Vê-se, pois, que a prescrição foi lamentavelmente assumida pelos próprios condutores do julgamento. Ademais, em nenhum momento o Procurador Federal evidenciou remorso ao aplicar todos os instrumentos possíveis, com fim exclusivo de favorecer a sua estratégia de defesa.
CAPÍTULO 2/2 – O PROCESSO PENAL COMO PENA INTERCORRENTE
Noutra senda, para que se entenda o absurdo da tese da imprescritibilidade/alargamento do prazo prescricional, se faz necessário fazer destaque que tão somente a circunstância de figurar em um processo penal já é, por si só, uma pena, haja visto a espetacularização dos crimes, para começar, isso porquê: (1) o Estado pune pela demora, estando o acusado com uma pecha de ‘criminoso’ enquanto durar o processo criminal; (2) porquê seria admitir que o Estado perpetuasse o processo eternamente; (3) porquê no decorrer do processo penal, diversas medidas (prisões preventivas/cautelares) são propostas e renovadas para colimar o suposto ofensor e desobstruir as vias para cumprimento dos objetivos da investigação criminal – consigne-se que muitas delas arbitrárias, ante a manifesta ausência de motivação das prisões cautelares/preventivas.
Acrescente-se, neste último ponto, que essas prisões têm servido, na maioria dos casos, como pena definitiva antes do trânsito em julgado da ação, como forma de burlar a própria sistemática constitucional.
Salienta o processualista Dr. Aury Lopes Jr., que:
“quando se julga além do prazo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgando um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de prevenção específica e retribuição (muito menos da falaciosa “ressocialização”)
[...]
Imaginamos a situação de alguém que, aos 20 anos de idade, comete um delito qualquer e, após o fato, muda de cidade. Constitui família, emprego, enfim, vira um “homem médio” (figura clássica da mitologia penal…) e, passados 30 anos, volta às origens e se descobre réu. Reabre-se o processo, a prova já foi colhida antecipadamente e sem a sua presença, e a
sentença condenatória surge quase que naturalmente… Como legitimar uma pena de prisão, sob o argumento da ressocialização, num caso assim? Impossível...” (Jr., 2019, pp. 681, 682)
Nesse liame, para o acusador, não seria surpreendente um processo de duração de décadas. Entretanto, para o acusado, a existência do processo por si só já seria uma verdadeira punição. Para tanto, algumas pessoas contra-argumentam utilizando um ditado muito inadequado, qual seja “quem não deve não teme”.
Ocorre que, quando se está no banco dos réus, até quem não deve teme ao arbítrio do Estado, porque só sabe como é desbalanceado o processo penal quem já figurou em um; só sabe como o Judiciário e o Ministério Público por vezes descumprem a legalidade quem milita diariamente na seara. Ora, o descumprimento da lei por quem deveria resguardá-la já é motivo suficiente para que qualquer imputado se encha de temor, pois, muitas vezes munido de uma sanha punitivista, o Ministério Público atua através de meios ilegítimos para justificar meios legítimos.
Não bastasse o descumprimento da legislação, há também o problema de termos um Processo Penal imbricado por um modelo inquisitorial de persecução criminal, a legitimar um atuar dos juízes parcial, que atuam de ofício para buscar provas contra o acusado, modelo este que colide frontalmente ao que predispõe o texto constitucional acusatório, que propugna os princípios do in dubio pro reo e da imparcialidade do julgador.
Acrescente-se a isso: inquéritos infindáveis; delegados que, por ausência de maior regulamentação e fiscalização sobre sua atividade, descumprem preceitos básicos do contraditório e da ampla defesa (inobstante não se aplique à fase pré-processual o contraditório, é de se reconhecer que a forma da obtenção das provas, a inquirição das testemunhas, a omissão do delegado, etc., tudo isso influirá no julgamento, de modo que deve ser dado ao indiciado a possibilidade de se manifestar, ainda na fase investigativa, sobre os relatos das demais testemunhas); oitivas completamente aliciadas que induzem o investigado ao erro; negativa de todos os pedidos de diligência requestados pelo investigado; inclusão do inquérito policial no processo de instrução, de modo tal que os magistrados se utilizem de elementos informativos adquiridos no I.P. para fundamentar, ainda que não exclusivamente baseada nesses indícios, a sua decisão, constituindo clara afronta ao modelo acusatório programado pela CF/88. Merece ressalva, excetuada as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, todos os demais atos investigatórios da fase do inquérito policial devem ser confrontados em contraditório judicial para que tenham o condão de fundamentar uma condenação.
Por fim, feita a síntese alhures, o presente excerto tem o objetivo de trazer ao debate a necessária reflexão sobre a prescrição num contexto tão dicotomizado por debates ideológicos. A lei é para todos e, à despeito de partido, cor, raça, gênero, a sua aplicação é pressuposto primário num Estado Democrático de Direito. Já diria o ditado ‘Pau que bate em Chico, bate em Francisco’. Então por que o Deltan abriu a exceção para si?
[1] https://www.conjur.com.br/2020-ago-25/42-adiamentos-deltan-escapa-processo-administrativo-cnmp