A Reclamação Constitucional, de acordo com o dispositivo legal do artigo 105, inciso I, alínea “f”, da Constituição Federal [1], é genuíno instrumento processual utilizado nas hipóteses de desobediência, pelos órgãos administrativos ou jurisdicionais, das decisões ou súmulas vinculantes proferidas pelo Pretório Excelso, ou mesmo na situação de usurpação da competência do STF.
Para o Ministro Gilmar Mendes “a definição de sua natureza jurídica não constitui tarefa fácil, por inexistir consenso na doutrina e na jurisprudência. Pacificado está somente o entendimento de se tratar a reclamação de medida jurisdicional, pondo fim à antiga discussão de que a reclamação constituiria mera medida administrativa. Tal entendimento de quando o instituto era identificado com a correição parcial, mas, como explicita Marcelo Navarro Dantas, o fato de a jurisprudência do STF reconhecer, na reclamação, seu poder de produzir alterações em decisões tomadas em processo jurisdicional e da decisão em reclamação produzir coisa julgada confirmam seu caráter jurisdicional” (MENDES, 2006, p. 24) [2].
Nessa mesma linha, a reclamação busca corrigir situação em que a autoridade de uma decisão judicial se encontrar ameaçada, conforme ensina a doutrina de STRECK: “por intermédio da reclamação, é possível a provocação da jurisdição com a finalidade de solver lide decorrente do conflito entre os que persistem na invasão de competência ou no desrespeito das decisões de determinado tribunal e, por outro lado, aqueles que pretendem ver preservada a competência e a eficácia das decisões exaradas pelo tribunal que teve sua decisão desrespeitada” (STRECK, 2016, p. 1295) [3].
Com o recente julgamento da Reclamação n.º 41557/SP [4], o Supremo passou a entender que o desrespeito por parte de outros órgãos jurisdicionais, nos casos em que pelos mesmos fatos e provas houver absolvição do agente pela ilicitude das provas ou demonstrada a negativa de autoria, poderá ser levado à discussão em sede de Reclamação para que a decisão absolutória surta efeitos no processamento da ação de improbidade.
O Supremo Tribunal Federal tratou de analisar a possibilidade de obstar o curso de ação civil pública de improbidade administrativa nos casos de trancamento da ação penal ou não recebimento da denúncia pelo reconhecimento da negativa de autoria ou da ilicitude da prova, quando houver identidade entre as partes, o mesmo contexto fático-probatório e pedidos de cunho punitivista.
Em linhas gerais, especialmente pelo que se colhe do voto do excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes, se reafirmou a tese de mitigação da independência entre as esferas penal e cível, especialmente nos casos de direito administrativo sancionador que deve ser considerado como um autêntico subsistema penal, pois recebe como parâmetro as mesmas linhas principiológicas da legalidade, proporcionalidade, presunção de inocência e non bis in idem.
Segundo seu entendimento, nos casos em que a ação penal e a ação civil pública de improbidade administrativa tiverem a mesma identidade entre sujeitos, o mesmo conjunto fático-probatório e a presença de sanções de natureza punitivista, a decisão da seara criminal que reconhecer a ilicitude das provas ou a comprovada negativa de autoria, imporá a necessidade de trancamento da ação de improbidade que gerará uma causa impeditiva de recebimento da petição inicial ou do processamento dos autos.
Nessa lógica, trata-se o direito administrativo de autêntico subsistema penal que recebe como parâmetro as mesmas linhas principiológicas, onde há, da mesma maneira, a transposição das garantias constitucionais, penais e processuais penais de modo que não se pode permitir aos autos da improbidade administrativa um regular processamento – quando existente decisão penal que ateste a inexistência de autoria – levando-se em conta que centros iguais de ilicitude não podem levar à dupla persecução e a uma dupla punição, o que é amplamente vedado pelo princípio non bis in idem.
Diante dessa regra, o princípio mencionado, assim como os demais, deve ser aplicado não somente dentro dos subsistemas, como também e especialmente na relação que se coloca entre o direito penal e o direito administrativo para que se evite a múltipla valoração e punição do mesmo fato com idêntico fundamento jurídico.
Isto ocorre pela necessidade de mitigação do princípio da independência entre as instâncias, considerando que tal regra não é absoluta, admitindo a interferência de outras instâncias, com prevalência da sentença penal condenatória ou, a depender do fundamento da absolvição, da sentença penal absolutória, já que a matéria penal não pode ser revista pelo sistema administrativo sancionador, o que ocorre no inverso na possibilidade de revisão pelo sistema penal quanto ao fato do direito administrativo, assim como já sedimentado pela extensa jurisprudência do Pretório Excelso, a dizer: RE 1272316 [5]; MS 33214 [6]; RE 1044681 [7]; MS 26988 [8].
Outrossim, “a ilicitude é uma só, do mesmo modo que um só, na essência, é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas 'sobre um mesmo plano, sobre um só mapa-mundi'. Assim, não há como falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. Conforme acentua BELING a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau, está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com a outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um discrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KUKULA justamente chama de 'estéril especulação', idêntica à demonstração da quadratura do círculo” (HUNGRIA, 1995, p. 15) [9].
E a relativização sobre a independência entre as instâncias encontra guarida no artigo 935 do Código Civil que prevê a impossibilidade de novo questionamento sobre a existência de fato ou conduta cujo deslinde tenha esgotado o conhecimento do acervo fático-probatório na esfera penal [10].
O que se afirma, com isso, é que se o juízo criminal já valorou a prova por meio de decisão definitiva, descabe a realização de nova apreciação por outro juízo ou Tribunal seja qual for a classificação jurídica e ainda que sobre eventual ato improbo, nos casos em que estiver comprovado que sobre aquele fato o agente não foi o autor.
Aliás, registre-se que o novo entendimento da Corte Suprema vai de encontro com as inovações e alterações introduzidas pela Lei n.º 13.964/19 [11] no Código de Processo Penal [12], especialmente no caso do acordo de não persecução penal em que se definiu a possibilidade de sua formulação quando não for cabível o arquivamento, tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de crime sem violência ou grave ameaça com pena mínima inferior a quatro anos, de modo que o prefalado acordo suprirá eventuais reparações nas ações de improbidade administrativa.
Com isso, não restam dúvidas de que é plenamente possível a relação de aderência temática entre uma decisão reclamada, que afronta decisão que valorou a prova para o reconhecimento da negativa de autoria, inexistência do fato ou ilicitude das provas, e a decisão paradigma, que tenha firmado tese por meio de decisão definitiva, como pressuposto de viabilidade do cotejo de provas pré-constituídas em procedimentos distintos, mas com os mesmos elementos de fatos e provas.
Nesse sentido, a comum prática de conceder regular processamento aos autos da improbidade administrativa, mesmo diante do trancamento da ação penal que verse sobre os mesmos fatos e provas, deverá ser revista por parte dos juízos e Tribunais que passarão, a partir da decisão da Suprema Corte na Reclamação n.º 41557/SP, a respeitar decisões da seara penal sobre o exame das provas.
Dessa maneira, nos casos em que se verificar a identidade entre as partes, a similitude de acervos fáticos, narrativas dúplices e pedidos de sanções punitivas haverá necessidade do trancamento da ação civil pública de improbidade administrativa quando o juízo criminal tiver reconhecido a negativa de autoria, a inexistência do fato ou a ilicitude das provas, nos termos, acertadamente, do entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS:
[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira. A Reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal: Algumas Notas. Direito Público, n. 12, Abr-Maio-Jun/2006, Doutrina Brasileira. p. 24.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Art. 988. In:_____; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1295.
[4] STF. Rcl 41557, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021.
[5] STF. RE 1272316 ED-AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 21/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-025 DIVULG 09-02-2021 PUBLIC 10-02-2021.
[6] STF. MS 33214 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 05-08-2019 PUBLIC 06-08-2019.
[7] STF. RE 1044681 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 06/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-055 DIVULG 20-03-2018 PUBLIC 21-03-2018.
[8] STF. MS 26988 AgR-terceiro, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-038 DIVULG 21-02-2014 PUBLIC 24-02-2014.
[9] HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. In: Seleção Histórica da RDA (Matérias Doutrinárias Publicadas em Números Antigos de 1 a 150), Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 15, 1945-1995.
[10] BRASIL. Código de Processo Civil (2015). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 11 mar. 2021.
[11] BRASIL. Lei n.º 13.964/19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm. Acesso em: 11 mar. 2021.
[12] BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 11 mar. 2021.