O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO ESTATAL NA SAÚDE E AS DIVERGÊNCIAS FEDERATIVAS
Rogério Tadeu Romano
Em 1988, o Brasil rumou para um caminho democrático ao ver promulgada a sua Constituição-cidadã.
Alinha-se a Constituição de 1988, no Brasil, a um moderno Estado Democrático de Direito que reclama uma Democracia Participativa aberta, dentro de uma Constituição aberta a todas as instâncias de participação permanente. Fácil e ver que os esquemas político-institucionais baseados em estruturas antigas, do tipo liberal-individualista, não se adaptam às novas exigências da ordem coletiva.
O Estado tem o dever de zelar pela saúde, a educação, a A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperem.
As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do Poder Público, nos termos da lei, a que cabe executá-los diretamente ou por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
Na lição de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 696), se a Constituição atribui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde, significa que sobre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação que é o sentido do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.
A atuação no campo da saúde diz respeito ao sistema único de saúde, integrado por uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever de relação jurídica que tem no polo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito à promoção e à proteção da saúde é ainda um direito coletivo. O sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais (DF) e municípios, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, de atendimento integral, com prioridades para atuações preventivas e da participação da comunidade, o que confirma seu caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social, coletivo, de outro.
Responsável pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, na medida em que a Constituição fala em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir a assistência à saúde pela iniciativa privada, que ela também admite.
Pois bem.
É impositiva a ação estatal, em todas as esferas federativas, quando o assunto é a saúde pública.
O Princípio da obrigatoriedade da ação estatal ensina que o Estado deve prevenir, por todos os meios possíveis, as ameaças à saúde pública.
No passado presente, é sempre indispensável dizer, vivemos a maior crise sanitária de nossa geração. Suas repercussões são terríveis na ordem econômica, social, da educação.
Os entes federativos têm vivido sérios problemas quanto à adequação das medidas que devem ser tomadas, no exercício do poder de polícia, em face da Lei nº 13.979/2020.
Sabe-se que a Constituição disciplinou a competência dos entes federativos como concorrente.
Mas, será dito que o Município tem competência para adotar medidas próprias dentro de seu especial interesse local.
Sobre a matéria disse o ministro Carlos Velloso, no AI-AgR nº 481.886:
“Ora, a fixação do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, situados no território do Município, é da competência deste, dado que se constitui em matéria ou assunto de interesse local (C.F., art. 30, I). Destarte, a legislação local, que assim disponha, desde que o faça de forma razoável, tem legitimidade constitucional. Assim procedendo, a legislação municipal não causa ofensa aos dispositivos inscritos no art. 170, IV, (livre concorrência), V (defesa do consumidor) e VIII (busca do pleno emprego), dado que esses princípios devem ser visualizados no sistema da Carta. Haveria ofensa ao princípio da livre concorrência se a legislação proibisse para uns o funcionamento num certo horário e facultasse para outros. Isto, evidentemente não ocorre, no caso. É dizer, o horário de funcionamento é para todos os estabelecimentos comerciais. Os princípios de defesa do consumidor e busca do pleno emprego (C.F., art. 170, V, art. 5o, XXXII) (C.F., art. 170, VIII), por sua vez, devem conviver com o poder de polícia exercido pelo Município, que tem por finalidade o interesse coletivo. No caso, interfere o interesse de parcela da comunidade, que são os empregados dos estabelecimentos, com direito ao descanso. De outro lado, a busca do pleno emprego não e faz desordenadamente.
A alegação no sentido de que a legislação municipal, no ponto, é atentatória ao princípio da isonomia □ C.F., art. 5o, caput, não é razoável, dado que o horário estabelecido atinge a todos e não apenas a alguns comerciantes. Não há invocar, no ponto, o horário de funcionamento de lojas situadas em “shopping-centers’ , dado que essas lojas não se igualam, em termos de localização, às lojas situadas nas vias públicas. Ora, o princípio da igualdade se realiza na medida em que desiguais são tratados com desigualdade e iguais com igualdade.” (AI (AgR) nº 481.886-SP, 2ª T., unânime, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 1.4.2005).
E se houver discordância com relação ao horário comercial dentro do confronto entre os decretos estadual e municipal na matéria?
Por óbvio, aplica-se a Súmula 645 do STF e ainda Súmula Vinculante:
PSV 89
A proposta foi formulada pelo ministro Gilmar Mendes com o objetivo de converter a Súmula 645 do STF em súmula vinculante. A partir da publicação, o verbete deverá ser convertido na Súmula Vinculante 38: “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”.
Mas, recentemente, em sede de Suspensões de Liminares, onde o mérito não foi objeto de cogitação, mas a adoção de medidas determinadas em face de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, em março deste ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, restabeleceu a plena eficácia do Decreto estadual 65.545/2021 de São Paulo que determinava a classificação do Município de São José dos Campos na fase vermelha do Plano São Paulo de combate à pandemia da Covid-19. A decisão cautelar foi proferida em dois pedidos de Suspensão de Liminar (SL 1428 e SL 1429) contra decisão do Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) que havia autorizado a migração do município para a fase laranja, menos rígida.
Então o que fazer com relação a matéria, envolvendo fechamento do comércio e dos serviços não essenciais, até mesmo um lockdown, tomados na devida proporcionalidade, quando União, Estados, Municípios, têm decisões conflitantes, de caráter prescritivos, com functores deônticos?
Penso que o assunto, por envolver uma pandemia, tem que ser tratado como direito à saúde.
Se entendido como tal a competência seria concorrente, como julgado pelo Supremo na ADi 6341. Por compreender ser aplicado ao caso o princípio da precaução/prevenção, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria. Sobre a matéria há interesse estudo de Gabriel Vedy (O princípio constitucional da precaução como instrumento do meio ambiente e da saúde pública", Ed. Forum, 3ª ed., 2020).
Essa vertente diz respeito à aplicação dos princípios da prevenção e da precaução o que exigiria maior atenção das autoridades sanitárias e o implemento de medidas mais severas.
Em sendo assim, sob essa ótica, na controvérsia entre as medidas legais tomadas pelo município ou pelo Estado Membro, adotar-se-ia a mais grave e a mais incisiva para o caso.
O objetivo do Princípio da Prevenção é o de impedir que ocorram danos à saúde, concretizando-se, portanto, pela adoção de cautelas, antes da efetiva execução de atividades potencialmente produtoras de danos.
O Princípio da Precaução, por seu turno, possui âmbito de aplicação diverso, embora o objetivo seja idêntico ao do Princípio da Prevenção, qual seja, antecipar-se à ocorrência das agressões à saúde.
Enquanto o Princípio da Prevenção impõe medidas acautelatórias para aquelas atividades cujos riscos são conhecidos e previsíveis, o Princípio da Precaução encontra terreno fértil nas hipóteses em que os riscos são desconhecidos e imprevisíveis, impondo à Administração Pública um comportamento muito mais restritivo quanto às atribuições de fiscalização e de licenciamento das atividades potencialmente danosas à saúde.
Com isso proteger-se-ia o direito à saúde, que tem natureza difusa na sociedade.
Para tanto, é preciso reconhecer que, tendo em mente a equivalência valorativa entre os princípios da precaução e da prevenção, viabilizar-se-ia a sua consideração em duas dimensões, duas faces de uma mesma moeda: a) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos são previsíveis ou conhecidos (situação tradicionalmente associada ao princípio da prevenção); e b) havendo ameaça de lesão, cujos reflexos não são previsíveis ou não são conhecidos (situação comumente associada ao próprio princípio da precaução).
Essa necessidade de atuação do Poder Público é respaldada na existência de outro princípio: o princípio da obrigatoriedade da ação estatal.
Sendo assim, repito, há de prevalecer a norma do ente federativo concorrente que, sendo mais restritiva, tenha o maior condão profilático na matéria, dentro de um necessário pacto pela vida.