1. Introdução
O transporte marítimo é modal de larga utilização, correspondendo a 90% de todo o comércio internacional1. É nessa perspectiva que se desenvolve o presente trabalho, uma vez que este investiga a responsabilidade civil de embarcações estrangeiras envolvidas em incidentes de derramamento de óleo em mar brasileiro, como o que aconteceu na região costeira do Nordeste no fim de agosto deste ano2.
Com isso, objetiva-se estudar a responsabilização do agente poluidor, observando questões de jurisdição e lei aplicável, a fim de averiguar a que leis os tribunais brasileiros deverão se remeter, para solucionar os casos de responsabilidade por danos causados ao meio marinho brasileiro. Para tanto, serão estudadas leis e convenções internacionais a respeito do tema, sob os pontos de vista de autores especialistas em direito marítimo como Gureev, Yoshifumi Tanaka e Eliane Octaviano.
2. Revisão de literatura
Iniciando-se pela análise da soberania do Estado sobre suas águas, como Gureev ressalta, o regime do mar é composto não apenas por leis nacionais, mas internacionais, porquanto o Estado permite o acesso de navios estrangeiros, sobre os quais agem tais normas.3 Aliás, segundo ele, embarcações marítimas, por serem internacionais por natureza, não podem ser regulamentadas apenas por norma nacional, necessitando, pois, de regulamentação jurídica internacional para navegação segura no mar, com tomada de medidas e observância de procedimentos mundialmente praticados, o que, segundo ele, é realmente complexo.4
No que tange à jurisdição, Eliane Octaviano explica que o Estado costeiro tem controle jurídico sobre o mar territorial5 e complementa com a análise do CPC, que estabelece a jurisdição civil contenciosa ou voluntária sobre todo o território nacional6. Além disso, comenta que “No que tange à competência jurisdicional [...] os ordenamentos jurídicos remetem à competência do local do fato e à regência da lex fori …”7 e que acidentes de navegação em mar brasileiro envolvendo embarcações estrangeiras geram competência do local do fato: Brasil.8 Isso encontra fundamento no art. IX da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo, de 1969 (CLC/69), que prevê que, em caso de incidentes de poluição, as ações para indenização somente podem ser impetradas nos tribunais do contratante prejudicado. Desse modo, em consonância com o art. 21, III e 23, I do CPC e art. 12. da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (LINDB), estabelece-se a competência do foro brasileiro. Quanto ao direito material, por falta de legislação específica, faz-se interpretação teleológica do art. 8º e seu parágrafo 1º da LINDB, estabelecendo que, por ser o mar bem imóvel, as relações a ele atinentes são do Brasil, lugar de sua situação.
A responsabilidade por danos marinhos por derramamento de óleo de navio estrangeiro é definida por cerca de duas dezenas de legislações nacionais e internacionais como a CF, a LINDB, o Código Civil, bem como as Leis nº 6.938/81, nº 9.966/00, nº 7.661/88 dentre outras mais específicas. Já no âmbito internacional, destacam-se a Convenção de Montego Bay de 1982 (CNUDM), a MARPOL 73/78, as Regras de Haia-Visby de 1924 e a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil em Danos Causados por Poluição por Óleo de 1969 (CLC/69).
Em linhas gerais, no âmbito internacional, a responsabilidade pela poluição marinha fundamenta-se no art. 235, 1 da CNUDM o qual, segundo Yoshifumi, estabelece aos Estados a responsabilidade sobre a proteção e preservação do meio marinho, devendo eles dispor de recursos para garantir a pronta reparação em caso de poluição ambiental marinha, de modo que se tornam obrigados a cooperar para implementar as regras internacionais existentes e para desenvolver legislação internacional a esse respeito9. Nesse enfoque, a MARPOL 73/78 dispõe sobre a prevenção de poluição marinha e principais regras como vistoria, limitação de descarga de óleo no mar, iniciativas governamentais para equipagem de descarga de óleos, posse de livros de registro de óleo e sobre obrigações gerais dos contratantes sobre seus navios, sendo que, logo no art. 1º, as Partes se comprometem a cumprir as regras, a fim de impedir a poluição do meio marinho por meio de descargas10 de substâncias danosas.
Ainda no tocante à poluição marinha causada por derramamento de óleo, vale mencionar a observação de Yoshifumi quanto à limitação da CLC/6911, dado que seu art. II prevê que esta é aplicada “[...] exclusivamente aos danos por poluição causados no território, incluindo o mar territorial de um Estado contratante, e às medidas preventivas tomadas para evitar ou minimizar tais danos.” e seu art. III prevê que o proprietário do navio é o responsável por qualquer dano por poluição causado por óleo que tenha sido derramado ou descarregado, e que, em seu parágrafo 4º, dispõe que nenhum pedido de indenização por poluição pode ser formulado contra o proprietário de outro modo que não seja baseado na Convenção. Assim, a responsabilidade limita-se a valores determinados por tonelada do navio poluidor, não devendo a indenização ultrapassar determinada quantia estabelecida, conforme se deduz do art. V.
Como se observa, a CLC/69 não é suficiente ao ordenamento jurídico internacional para fornecer as devidas compensações, entretanto é a única convenção internacional capaz de mensurar indenizações cabíveis para derramamentos de óleo no mar. Esse é também o entendimento de Eliane Octaviano, que cita o art. 3º, 4, segundo o qual para a ação indenizatória de danos ambientais decorrentes de derramamento de óleo, nenhum pedido pode ser formalizado contra o proprietário se não estiver consubstanciado na Convenção12.
Após análise de leis pertinentes ao tema e de doutrina, pode-se observar que a responsabilidade do proprietário é prevista no art. 5º do Decreto 4.136 e no art. 25, § 1º, I da Lei 9.966/0013, entretanto, segundo a autora, é possível validar a citação do armador estrangeiro por meio do agente marítimo conforme súmula 363 do STF14.
Em que pese a responsabilização do proprietário do navio, muito mais frequente é a responsabilização na figura do armador. Assim é o entendimento da Lei 9.537, cujo art. 2º, III prevê o armador como aquele que “[...] em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais [...]”15 e assim se encontra na doutrina, porquanto conforme a exegese finalista, é o armador que detém e responde pela gestão náutica16. Além disso, é mister ressaltar que, em muitos contratos, haverá a vigência das Regras de Haia-Visby, consoante a qual o responsável é o armador17. Para isso, ainda, corrobora o art. 3,1 da CLC/6918 e o art. 5º, II do Decreto 4.136/02, segundo os quais o armador é o responsável pelos danos e infrações por derramamento de óleo.
Nesse enfoque, de modo geral, a responsabilidade é prevista no ordenamento jurídico brasileiro por meio da conjugação dos art. 5º e 225 da CF e dos art. 186. e 927 do CC, que responsabilizam nacional ou estrangeiro pela poluição do meio marinho, bem como dos art. 3º,IV; 4º,VII e 14, § 1º da Lei nº 6.938/81, que buscam responsabilizar e obrigar à reparação o poluidor do meio marinho.
Por fim, no intuito de determinar o exato responsável, em termos legais, pode-se mencionar o art. 6º do Decreto 4.136/02 que dispõe que a responsabilidade será identificada mediante apuração em procedimento administrativo.
3. Resultados e Discussão
O resultado do presente trabalho é a constatação da existência de responsabilidade de agentes estrangeiros causadores de danos ambientais ao meio marinho brasileiro por derramamento de óleo por meio da conjugação de diversas leis e convenções atinentes ao tema. A discussão tece-se em torno da determinação de qual, entre os agentes envolvidos na atividade marítima internacional, é o mais legitimado a ser responsabilizado pelo dano ambiental.
4. Conclusões
Por natureza, a atividade marítima entre diferentes países é internacional e, na ocorrência de poluição por derramamento de óleo em mar brasileiro, a determinação da pessoa responsável é tema de elevada complexidade, haja visto as dezenas de leis nacionais e internacionais sobre o assunto e a inexistência de documentos legais específicos. Tudo depende da relação jurídica entre os agentes e da apuração dos fatos. O ordenamento brasileiro exige a responsabilização do poluidor e possui meios para atingi-lo, mesmo que tenha de se adentrar nos meandros do direito marítimo internacional para solucionar a legitimidade passiva do agente poluidor.
Referências Bibliográficas
MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol I. - Barueri, SP: Manole, 2008.
MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol II. - Barueri, SP: Manole, 2008.
YOSHIFUMI, Tanaka. The international law of the sea. New York: Cambridge U. Press, 2012.
ГУРЕЕВ, Серней Александрович, ЗЕНКИН Игорь Вмкторович, ИВАНОВ Георгий Георгиевич. Международное морское право: учеб. пособие [Direito internacional marítimo: manual de estudos]. Москва: Норма: ИНФРА - М, 2011. p. 247.
Notas
1 GOVERNO DO BRASIL. Essencial para o comércio exterior, transporte marítimo avança no Brasil. 25/11/2017. Disponível em: <https://legado.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2017/11/essencial-para-o-comercio-exterior-transporte-maritimo-avanca-no-brasil>. Acesso em (15/11/2019)
2 FELLET, João. Vazamento de óleo no nordeste: quais órgãos são responsáveis por limpar, investigar e punir. 29/10/2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-50191420>. Acesso em (19/11/2019)
3 ГУРЕЕВ, Серней Александрович, ЗЕНКИН Игорь Вмкторович, ИВАНОВ Георгий Георгиевич. Международное морское право: учеб. пособие [Direito internacional marítimo: manual de estudos]. Москва: Норма: ИНФРА - М, 2011. p. 247.
4 Idem, p. 241.
5 MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol. I. - Barueri, SP: Manole, 2008. p. 58
6 Idem, p. 104
7 MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol. II. - Barueri, SP: Manole, 2008. p. 587
8 Idem, p. 588
9 YOSHIFUMI, Tanaka. The international law of the sea. New York: Cambridge U. Press, 2012. p. 291.
10 Art. II 3, (a): “Descarga”: [...] qualquer escapamento, lançamento, derramamento, vazamento [...];
11 YOSHIFUMI, Tanaka., op. cit., p. 292
12 MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol. II. - Barueri, SP: Manole, 2008. p. 588
13 Idem, p. 579.
14 Súmula 363 STF: A pessoa jurídica de direito privado pode ser demandada no domicílio da agência, ou estabelecimento, em que se praticou o ato.
15 Art. 2º, III.
16 MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Curso de direito marítimo. Vol. I. - Barueri, SP: Manole, 2008. p. 244
17 Art. 1º,(a): "Carrier" includes the owner or the charterer who enters into a contract of carriage with a shipper. Nota: a versão portuguesa de Portugal trouxe como tradução o conceito de “armador” como proprietário ou afretador.
18 Art. 3,1: [...], o armador, no momento do incidente,será responsável pelo dano por poluição causado por qualquer óleo do próprio navio, a bordo ou que se origine no navio, considerando-se que, se um incidente consiste em uma série de ocorrências com a mesma origem, a responsabilidade caberá ao proprietário do navio no momento em que se produza a primeira de tais ocorrências.