Os reflexos da pandemia no Direito Penal

Uma análise acerca do aumento da criminalidade

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O presente estudo busca retratar os impactos da Pandemia do Covid-19 no Direito Penal, para tanto se toma por base o artigo do Migalhas: Perspectivas do Direito Penal. A pandemia aumentará a criminalidade?

Resumo

O presente estudo busca retratar os impactos da Pandemia do Covid-19 no Direito Penal, de forma que surge os questionamentos: como o direito penal, no Brasil, vem agindo como meio legítimo para garantir o distanciamento social como mecanismo necessário de contenção da propagação do vírus? Bem como garantir a justiça, o contraditório e ampla defesa em tempos de criminalidade crescente? Como o distanciamento social tem afetado o próprio sistema de justiça criminal e de execução penal os desafios do Direito Penal tendem a buscar garantias de proteção da saúde pública, verificando-se os desdobramentos no sistema penal e na execução penal em tempos de pandemia pela Covid-19. Para tanto se toma por base o artigo do Migalhas: Perspectivas do Direito Penal. A pandemia aumentará a criminalidade? com o intuito de trazer para a discussão o colapso que o vírus provocou no sistema prisional brasileiro, fazendo emergir um panorama contemporâneo de crise epidemiológica que reflete na gramática desumana das prisões do país, amplificada pela situação de mortalidade e exposição ao risco de morte da população prisional e do pessoal penitenciário, bem como o enaltecimento da violência nas comunidades.

INTRODUÇÃO

A expansão do Direito Penal é um fenômeno cuja incidência é notória nas últimas décadas, seja por meio das transformações na estrutura do delito, seja pelo crescimento do número de pessoas criminalizadas. No primeiro caso, o Brasil acompanha uma tendência de tantos outros países, com transformações na criminalização primária caracterizada pelo maior destaque aos crimes de perigo, ampliação de normas penais em branco, novos contornos de desmaterialização do bem jurídico, dentre outras, que foram seguidas por uma inflação legislativa em matéria penal. No segundo caso, o Brasil se distancia de boa parte dos países do ocidente por ter levado a cabo um processo de criminalização secundária nas últimas três décadas de tamanha expressividade, que singulariza seu expansionismo penal.

Diante de tais apontamentos, MAGALHÃES e MARIANO (2020), enaltecem que o aumento da taxa de desemprego, a diminuição da renda, as quedas de produção, arrecadação e investimentos, acarretaram um aumento da ocorrência dos crimes, especialmente os patrimoniais, evidenciando que a elaboração de políticas públicas é imprescindível para minimizar impactos significativos da criminalidade.

Dessa forma, se cria o chamado Direito Penal de emergência, vetor de uma política criminal que aposta no endurecimento das normas penais como forma de responder às demandas sociais por segurança pública. Ocorre que, paradoxalmente, a expansão punitiva materializada em um processo de encarceramento em massa, fato este que resulta na piora significativa nas condições de aprisionamento de centenas de milhares de pessoas.

Em meio a esse quadro, irrompe uma emergência sanitária em decorrência da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), que por suas características específicas torna ainda mais delicada a crise na esfera penal. Esse fenômeno tem gerado reflexões por todo o mundo e demanda a tomada de ações concretas e emergenciais, especialmente no campo da execução penal.

Tais questões preocupam os juristas, tanto na seara econômica quanto na seara penal, visto que os trâmites se tornam a cada dia menos céleres, tornando a manutenção de cárcere em massa exacerbada, de maneira a aumentar o contágio quanto para a consolidação das organizações criminosas que podem se fortalecer, em substituição ao Estado, na defesa da saúde dos presos.

É notória a tensão política e social em torno da saúde pública, intensificada pela pandemia, visto que o país não possui condições e estrutura adequada para o tratamento do coronavírus a todas as pessoas contaminadas, o que caracteriza um ambiente já conhecido de vulneração dos direitos dos cidadãos, notadamente o direito social à saúde. Dessa forma, a específica periculosidade da pandemia é que  agravou uma situação de crise já existente há muitos anos em diversos países, o que pode ser traduzido como uma normalidade da exceção.

Nessa perspectiva. NICOLAI (2020) em artigo para o Conjur ressalvou uma perspectiva otimista, que é o fato de a crise proporcionar novas tecnologias e interações que possibilitem o acesso à justiça e o exercício da defesa. Já TÓRTIMA (2020) aborda a necessidade de contenção de medidas de persecução penal durante a epidemia. Notadamente, de medidas cautelares patrimoniais sobre empresas eventualmente envolvidas na prática de ilícitos, considerando a crise financeira e a necessidade de sobrevivência de empresas que inclusive terão que dispensar empregados e deixarão de pagar credores, quadro que só não se agravaria com a adoção de medidas drásticas.

Para MAGALHÃES e MARIANO (2020) a relação entre a criminalidade urbana e as transformações econômico-sociais não é assunto recente e inovador. As obras de Platão e Aristóteles já associavam a miséria como fator determinante para ocorrência de crimes, evidenciando que as crises econômicas seriam causa para aumento da criminalidade.

E numa situação como essa de pandemia, crise econômica, desemprego, politização, o Direito Penal está longe de ser a solução para o problema.

Cita-se o artigo 268 do Código Penal (CP), que predispõe que infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, onera pena de detenção de um mês a um ano e multa, de maneira a se afirmar que a população nem mesmo sabe a que se refere o ato normativo administrativo, nem tão pouco compreende que a propagação de doença infecto - contagiosa é crime e pode ser punida. MAGALHÃES e MARIANO (2020) enaltecem que ocorre uma tentativa simplista de explicar o crime pelo puro determinismo economicista.

Cabe sustentar que, o período de pandemia demonstrou até o momento que, a própria Suprema Corte não tem respondido de maneira satisfatória aos reclamos emergências que agravaram a vida prisional no país, tanto em ações individuais quanto em demandas coletivas, como as medidas cautelares requeridas no bojo da ADPF 347 ou mesmo habeas corpus coletivos para pessoas no grupo de risco.

É fato que o sistema prisional brasileiro não possui capacidade de fornecer atendimento à saúde das pessoas que vivem em comunidade, tão pouco das pessoas presas. Junto a isso, o aumento contínuo e desenfreado da população prisional amplifica as violações e obstaculiza a distribuição dos recursos humanos e dos serviços penais. Nas prisões, as pessoas (população prisional, familiares, servidores etc.) estão expostas ao risco de infecção. Trata-se de uma relação de perigo concreto que pode constituir a enfermidade com relação a todas as pessoas, estando detidas ou não.

DAIELLO (2020) disse não ver necessidade de mais direito penal para solucionar os problemas de criminalidade decorrentes da pandemia, afirmando que cabe a polícia e ao Estado o dever de tratar o problema como uma questão de saúde pública, não como uma questão criminal. Sobre a questão das medidas criminais contra empresas, lembrou que a quebra de empresas tem reflexos sobre a sociedade em geral, pois gera desemprego e, assim, aumento da pobreza e, portanto, aumento da criminalidade. Sobre encarceramento DAIELLO (2020), pontuou que o preso deve perder apenas a liberdade, mas continuar tendo direito à saúde e integridade física.

É evidente que a correlação entre criminalidade e crise econômica é tema complexo muito questionado nas ciências criminais, seja pelos inúmeros fatores que podem influenciar nos dados, seja pelas variáveis de cada país, que fazem com que não seja possível ignorar as diferenças culturais e sociais de cada localidade. Não há desse modo, como se falar no desenvolvimento de uma teoria criminológica transcultural, tal como aponta CHANG (1976, p.10).

Nesse sentido, cabe sustentar que num período de crise de saúde pública se faz necessário analisar os aspectos penais envolvidos neste cenário. Em primeiro lugar, deve-se apontar o direito individual fundamental mais precioso, previsto no art. caput, da Constituição Federal (CR), que é o direito à vida, de maneira a não se esquecer de que sejam quais forem os fatores de modificação dos níveis normais de convivência não se pode desconsiderar que as estatísticas são um reflexo da criminalização exarcebada, decorrentes de uma de crise há tempos anunciada.

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Diante de tais apontamentos, as autoridades sanitárias brasileiras se preocuparam, em destacar o delito do art. 268. Este crime, diversamente da epidemia, é norma penal em branco e depende de complemento, vale dizer, do conhecimento de determinação do poder público exigindo isolamento (separação de doentes ou contaminados pelo coronavírus), nos termos do art. 2º, I, da Lei 13.979/2020, quarentena (restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de estarem contaminadas, mas não enfermas), conforme art. 2º, II, da referida Lei ou outra medida, como a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, entre outras.

Para a configuração do crime previsto no art. 268 do CP é preciso agir com dolo, pois inexiste a forma culposa, cuja a intenção do agente se configura não em causar epidemia, nem tampouco contaminar alguém, mas simplesmente não respeitar a ordem do poder público para se isolar ou ficar em quarentena. É uma infração penal de perigo abstrato (presume-se a potencialidade lesiva de quem infringe a determinação do poder público) e formal (basta à conduta de infringir a ordem para se consumar independente de qualquer resultado naturalístico, como gerar contágio).

Cabe ressaltar que é uma infração de menor potencial ofensivo, comportando transação e não há prisão em flagrante, mas o encaminhamento do agente para lavrar o termo circunstanciado, com o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal.

MAGALHÃES e MARIANO (2020) enaltecem que embora seja relevante observar os padrões adotados em outras crises econômicas, o cenário atual de pandemia causado pelo coronavírus extrapola a mera retração nas atividades econômicas e apresenta particularidades importantes, como o isolamento social e fechamento de fronteiras, que podem influenciar de forma significativa nas tendências de delitos praticados.

Diante disso, o Direito Penal de emergência, caracterizado pelo endurecimento das normas penais como resposta às demandas sociais por segurança pública, paradoxalmente, contribuiu com a expansão punitiva e o aumento exacerbado da população prisional. Tal processo converteu o sistema penitenciário brasileiro em um caso de evidente emergência humanitária em virtude do agravamento significativo das condições de aprisionamento do país.

Frente a isso, torna-se imprescindível reclamar por um direito penal de emergência sanitária, a fim de que ações concretas e emergenciais sejam tomadas especialmente no campo da execução penal, em estrito e absoluto respeito aos direitos humanos. O atual momento do sistema punitivo é um novo marco da história de massacres nas prisões do país. Trata-se de uma situação que se distancia da trajetória constitucional, e acentua o estado de colapso do sistema prisional brasileiro. A crise epidemiológica contemporânea escancara a gramática desumana nas prisões, ampliada pela mortalidade e exposição ao risco de morte da população prisional e do pessoal penitenciário. Assim, a emergência humanitária se coloca numa posição central em defesa dos direitos humanos.

Para MAGALHÃES e MARIANO (2020) no cenário atual de emergência de saúde pública, os impactos na economia vêm acompanhado de novas regras sociais o que pode não só levar a um incremento das práticas delitivas, como também a uma mudança de tendência nos crimes praticados pelas organizações criminosas que certamente serão afetadas pela retração econômica de forma que as Autoridades Públicas não podem olvidar os reflexos que a crise sanitária pode desencadear nos demais âmbitos sociais da nação, em especial no aumento da criminalidade. Fundamental que o Brasil, à luz das principais economias mundiais, inclusive para proteger a segurança pública nacional, adote medidas fiscais, monetárias e políticas para enfrentamento da crise econômica causada pelo Covid-19.

Ao contrário do tradicionalmente chamado Direito Penal de emergência, há aqui uma verdadeira emergência, que tragam respostas adequadas aos fins propostos e cujo resultado tem guarida no quadro normativo da justiça e do Estado Democrático de Direito.

É preciso, pois, reconhecer que a real emergência é causada pelo próprio sistema penal e o direito penal de emergência legítimo é aquele de viés que propague o contraditório e ampla defesa, que tem por resposta salvar vidas, reduzir danos e dores e reafirmar a dignidade humana.

Por certo, acima da aplicação de leis penais, em cenário já conturbado pela crise do coronavírus, está a conscientização da população no tocante ao seu dever cívico de proteger a sua saúde e a de outros membros da coletividade onde vive. Nesta fase, emerge a responsabilidade moral de cada um, mais relevante do que a responsabilidade penal pelos males porventura causados, para que todos possam caminhar no mesmo sentido em prol do bem-estar, da saúde pública e da justiça plena.

 

Sobre as autoras
Sandra Mara Dobjenski

Pesquisadora Direito Penal e Processo penal e a relação com a mídia. Especialista em Direito Penal e Processo Penal - UNINTER. Especialista em Direito penal económico – Centro Universitário UNINTER. Especialista em Direito Penal e Criminologia- UNINTER. Bacharel em Direito - FAC -Faculdade Curitibana. -Licenciada em Pedagogia na Faculdade - UNIBAGOZZI - Centro Universitário Bagozzi. Especialista em Direito Educacional - Uninter. Criadora, idealizadora Memorex Penal - @sandradobjenski _ criminalista - jurista, autora de artigos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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