Comentários acerca dos artigos. 1° e 2° da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei n° 11.101/2005)

29/03/2021 às 20:03
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O presente artigo se propõe a analisar os artigos da Lei n° 11.101/2005, os quais ampliaram consideravelmente o alcance dos institutos da falência e da recuperação de empresas, em comparação com o Decreto-Lei n° 7.661/1945, que antes regulava a matéria.

1 INTRODUÇÃO

            A falência e a recuperação judicial/extrajudicial são instrumentos do direito empresarial que se relacionam intimamente com o direito das obrigações, tendo sidos aperfeiçoados com a evolução do direito. Para se ter uma ideia, a falência trouxe, por muito tempo, uma carga negativa para o comerciante que a ela se sujeitasse, passando uma ideia de pessoa desonesta, que não tinha aptidão para gerir um negócio nem honrar suas obrigações.

             Atualmente, o viés é outro. O princípio da função social da empresa, corolário do princípio da função social da propriedade, previsto em sede constitucional, deu uma nova característica essencial que norteia a aplicação desses institutos: a primazia da manutenção da atividade empresarial, ainda que para isso haja uma mudança na titularidade do empreendimento.

            Dessa feita, pode-se dizer que a falência e a recuperação judicial/extrajudicial são dois regimes empresariais aplicados a uma situação específica, qual seja, a empresa em crise.

            Como afirma Marlon Tomazette (2019):

Essas dificuldades, naturais no exercício da empresa, podem acabar culminando em crises dos mais diversos tipos, que podem advir de fatores alheios ao empresário (sujeito que exerce a empresa), mas também podem advir de características intrínsecas a sua atuação. Elas podem significar uma deterioração das condições econômicas da atividade, bem como uma dificuldade de ordem financeira para o seu prosseguimento.

            A Lei n° 11.101/2005 dispõe em seu bojo a regulamentação dos processos de falência e recuperação judicial/extrajudicial, fixando, em seu artigo 1°, o campo de incidência da lei: o empresário e a sociedade empresária.

            O art. 2° da referida lei também refere ao âmbito de abrangência dos institutos, excluindo da aplicação da lei algumas entidades.

            À primeira vista, parece-nos muito simples discernir se determinada entidade poderá se submeter ao regime falimentar ou à recuperação judicial/extrajudicial. Contudo, esse campo é muito mais delicado do que se pensa. Nem todas as exclusões são absolutas, por exemplo.

            A análise da legitimidade passiva específica torna-se relevante no âmbito da prática, vez que a partir dela se pode identificar os sujeitos aptos a requerer a falência ou a recuperação judicial/extrajudicial.

      Nessa perspectiva, o presente estudo se propõe a dissecar as referidas disposições, trazendo à tona entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, de forma a elucidar de tornar mais claro quem de fato está abrangido ou excluído do regime estabelecido pela Lei n° 11.101/2005.

 

2 A FALÊNCIA E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL/EXTRAJUDICIAL

            Amador Paes de Almeida (2013) afirma que a falência pode ser encarada sob duas óticas: a econômica e a jurídica.

            Na perspectiva econômica, assinala o autor:

Dentro desse raciocínio, falência, como observa J. C. Sampaio de Lacerda (Manual de direito falimentar, p. 11), “é a condição daquele que, havendo recebido uma prestação a crédito, não tenha à disposição, para a execução da contraprestação, um valor suficiente, realizável no momento da contraprestação”.

            Do ponto de vista jurídico, “falência é um processo de execução coletiva contra o devedor insolvente”.

            Evidentemente que o Direito Falimentar atua no que concerne à falência jurídica.

            Já segundo Sérgio Campinho (2017),

A falência (...) é a medida judicialmente realizável para resolver a situação jurídica do devedor insolvente. Essa solução não implica, necessariamente, a liquidação judicial do patrimônio do devedor insolvente - falência-liquidação -, revelando-se, outrossim, como promotora da recuperação da empresa por ele desenvolvida - falência-recuperação.

         Registre-se ainda que a falência é um instrumento que remonta à Idade Média, período no qual era considerada inclusive um delito.

            Por muito tempo o viés negativo da palavra deu a ideia de negligência, má-fé, fraude, ardil e desonestidade aos empresários falidos.

            Atualmente, o conceito de falência trás em seu bojo um objetivo extremamente importante e que evidencia a mudança desse entendimento: a preservação da empresa.

            Assim, além de ser empregado apenas quando a recuperação judicial ou extrajudicial não puder operar, o processo de falência será norteado não pela satisfação plena dos interesses dos credores, como ocorria na legislação anterior, mas pela ideia de manutenção das fontes produtoras, dos empregos dos trabalhadores e da atividade empresarial como um todo, ainda que para isso seja necessária uma nova administração.

            Como assevera Amador Paes de Almeida (2013):

Modernamente, em que pese ressentir-se a falência de aspecto negativo (o falido é sempre visto com reservas), vai o instituto passando por grandes transformações, assumindo pouco a pouco um sentido marcadamente econômico-social, em que sobressai o interesse público que objetiva, antes de tudo, a sobrevivência da empresa, vista hoje como uma instituição social.

            Esse novo entendimento é inclusive materializado na nova Lei que disciplina a matéria:

Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa.

            A recuperação judicial é um instrumento novo que surgiu com o advento da Lei n° 11.101/2005.

            Antes disso, instituto similar era aplicado: a concordata, a qual também remonta à época da Idade Média.

            Conforme apontamentos de Amador Paes de Almeida (2013):

O instituto da concordata tinha uma finalidade: salvaguardar devedor desventurado e honesto, e que se encontrasse temporariamente endividado, da falência. Impedia tal declaração e, por via de consequência, os resultados que dela decorriam. A concordata, com efeito, pondo fim a uma série interminável de abusos, constituiu-se na solução jurídica destinada a salvar o empresário dos percalços da falência consistindo, naquela oportunidade, o meio eficaz para assegurar a sobrevivência da empresa, considerada, nos dias atuais, verdadeira instituição social, por isso que, na expressão portentosa de Louis Boucrat, “a empresa é um organismo, isto é, um agrupamento organizado, hierarquizado de homens ligados entre si por diversos vínculos, tais como contrato de sociedade, de salário etc., em colaboração para a realização de um fim determinado; grupo que possui, quase sempre, uma duração independente dos homens que o constituem, uma personalidade diferente dos indivíduos que o compõem”.

            Complementando, Sérgio Campinho (2017) assevera:

A concordata, na esteira do Decreto-Lei n. 7.661/45, não exibia feição contratual. Sua natureza era a de um favor legal. Os credores a ela então sujeitos, os quirografários, não eram chamados a manifestarem suas vontades. Preenchendo o devedor os requisitos pela lei impostos, passava ele a fazer jus a esse favor, dirigindo ao juiz a sua pretensão, que, por sentença, a deferia.

             Dessa forma, pode-se dizer que a legislação trazia um instituto de todo modo “engessado”, que não permitia efetivamente uma negociação entre devedor e credor, dificultando assim a recuperação da empresa.

            Com o advento da Lei n° 11.101/2005, nasce a recuperação de empresas como uma alternativa ao instituto da concordata preventiva.

            Tal como a falência, a recuperação tem como objetivo a manutenção da atividade empresarial, conforme assevera o art. 47 da nova legislação:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

            Registre-se, contudo, que ela se apresenta como uma solução prévia ao processo falimentar, que passa a ser uma medida de caráter extremo.

            Atualmente, a recuperação da empresa pode se dar pela via judicial ou pela extrajudicial. Nesta, o papel do Poder Judiciário se restringe a uma eventual homologação, enquanto que naquela há uma atuação judicial mais contundente.

            Acerca da recuperação judicial, dispõe Sérgio Campinho (2017):

A recuperação judicial, segundo perfil que lhe reservou o ordenamento, apresenta-se como um somatório de providências de ordem econômico-financeiras, econômico-produtivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de uma empresa possa, da melhor forma, ser reestruturada e aproveitada, alcançando uma rentabilidade autossustentável, superando, com isso, a situação de crise econômico-financeira em que se encontra seu titular - o empresário -, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego e a composição dos interesses dos credores.

           Nas palavras de Marlon Tomazette (2019) acerca da recuperação extrajudicial:

Embora a intervenção do Poder Judiciário possa ser medida otimizadora para a conclusão do acordo entre o devedor e seus credores, é certo que ela também representa custos mais elevados, com a necessidade de atuação de um administrador judicial, de um procedimento de verificação de créditos e até da convocação de assembleias de credores. Em razão disso, devese abrir outro caminho para a celebração desse acordo, um caminho mais rápido, informal e econômico, a saber, a recuperação extrajudicial, na qual a intervenção estatal é apenas acessória. A recuperação extrajudicial, portanto, “outorga ao devedor que atingiu um estado crítico, a possibilidade de administrar extrajudicialmente um acordo com seus credores de uma maneira simples e prática”. Em outras palavras, trata-se de um acordo firmado extrajudicialmente entre o devedor e seus credores com o objetivo de superação da crise econômico-financeira, levado apenas eventualmente à homologação pelo Poder Judiciário. O objetivo e a natureza são os mesmos da recuperação judicial, vale dizer, trata-se de um contrato para superação da crise, mas sua realização é mais simples e mais prática, uma vez que a intervenção do Poder Judiciário é eventual e meramente homologatória. Trata-se de algo muito similar ao prepackaged plan do direito norte-americano e ao acuerdo preventivo extrajudicial do direito argentino. A existência dessa recuperação extrajudicial não prejudica outras modalidades de acordo entre o devedor e seus credores (Lei no 11.101/2005 – art.167).

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            Nesse contexto, depreende-se que a falência, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial são institutos gerais do direito das empresas em crise.

            Assim, cabe mencionar que, na forma como se opera o mercado capitalista, em regra, as crises empresariais são solucionadas por meio de mecanismos do próprio mercado, sem a intervenção estatal.

            Contudo, quando se trata de uma crise com o potencial de abalar estruturas econômicas e prejudicar não só quem possui o risco do negócio, o empreendedor, pode o Estado intervir por meio dos institutos da falência e da recuperação de empresas.

            A crise de rigidez é evidenciada quando há uma espécie de “engessamento” da atividade empresarial, que não consegue se adaptar às mudanças do mercado, seja em face de novas tecnologias, de novos hábitos de consumo, de novas formas de produção, de escassez de matéria-prima etc.

            Já a crise de eficiência se manifesta quando, apesar de possuir potencial, a empresa opera com rendimentos que não demonstram o aproveitamento máximo desse potencial.

            Essas duas modalidades de crise, por si só, não ensejam de imediato a atuação estatal para sua resolução, pois em regra afetam apenas os interesses do empresário.

            A crise econômica ocorre quando a empresa funciona no prejuízo, ou seja, quando seus lucros são menores que suas despesas. Seus desdobramentos podem ser efetivamente prejudiciais ao funcionamento do mercado como um todo.

            A crise financeira se materializa na incapacidade de a empresa fazer frente às próprias dívidas, com os recursos financeiros à disposição. Ou seja, o empresário não consegue honrar os compromissos firmados com fornecedores, investidores, funcionários etc. Como se pode perceber, essa modalidade de crise não afeta somente o empresário devedor, mas também prejudica aqueles com os quais a empresa firmou contratos.

            Por fim, a crise patrimonial representa a disparidade entre o ativo e o passivo da empresa, sendo este maior que aquele. Trata-se da insolvência.

            Nessa perspectiva, a falência e a recuperação de empresas não são de aplicabilidade imediata diante de uma situação de crise empresária. De outra maneira, como parte de uma solução jurídica com viés social, esses institutos são aplicados quando a crise representar um risco a credores, aos funcionários, ao Fisco etc.

3 O EMPRESÁRIO E A ABRANGÊNCIA DA LEI N° 11.101/2005

                  Atualmente, a falência e a recuperação judicial/extrajudicial estão disciplinadas pela Lei n° 11.101/2005:

Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.

            De pronto, pode-se afirmar que nem todos os devedores estão sujeitos ao regime falimentar, mas tão somente os devedores empresários individuais ou a sociedade empresária.

               Assim, para compreender a abrangência dos institutos, inicialmente é relevante mencionar o conceito de empresário. Nas palavras de Tomazette (2019):

Tais sujeitos, empresário individual, EIRELI e sociedade empresária, são espécies do gênero empresário e delimitam o âmbito de incidência da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, os quais não se aplicam a todos indistintamente, mas apenas a eles. A importância desses sujeitos no cenário econômico justifica o tratamento diferenciado e a criação de tais institutos. Para entender a quem se aplica a falência, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial, é fundamental identificar quem se enquadra ou não no conceito de empresário.

                Dessa forma, tem-se no art. 966 do Código Civil de 2002:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.bParágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

            Registre-se que os requisitos presentes na disposição supramencionada são cumulativos, de forma que é necessário que estejam presentes todos eles para que o sujeito seja considerado empresário.

              Contudo, antes de aprofundar o conceito, cabe trazer a brilhante lição de Amador Paes de Almeida (2013) acerca da amplitude da definição de empresário:

O direito romano estendia a falência não somente ao devedor comerciante, mas, igualmente ao devedor civil. Os países de cultura romanística, todavia, de um modo geral, restringiram-na exclusivamente ao comerciante, ao contrário do que ocorria com os países germanos ou anglo-saxões, que a aplicavam, também, aos não comerciantes. Atualmente, dois são os sistemas vigentes: a) restritivo; b) ampliativo. Na primeira hipótese, a falência só alcança o devedor comerciante. Na segunda, ao revés, abrange não somente o comerciante, mas, igualmente, o devedor civil. O Brasil, até a promulgação da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro 2005, adotava o sistema restritivo, limitando a falência ao devedor comerciante, reservando ao devedor civil o instituto da insolvência civil. Com a promulgação da lei nominada, o País passa a adotar o sistema ampliativo (com restrições), estendendo a falência ao empresário e à sociedade empresária, em conformidade, aliás, com as atuais nomenclaturas do Código Civil, ora em vigor.

            Em consonância com esse entendimento, tem-se os ensinamentos de Sérgio Campinho (2017):

Tradicionalmente, o sistema adotado pelo Direito brasileiro, quanto à sujeição ao procedimento falimentar, é o restritivo. Previa o art. 1° do Decreto-Lei n.. 7.661/45 que considerava-se “falido o comerciante”. Reafirmava, assim, a natureza mercantil do instituto, presente desde o Código Comercial de 1850. Com o advento do Código Civil de 2002, impôs-se uma releitura do prefalado art. 1° do diploma de 1945, a fim de adaptá-lo à nova ordem jurídica pelo hodierno Código instituída que, de forma geral e definitiva, incorporou a teoria da empresa a qual, diga-se de passagem, já se desenhava em algumas leis esparsas, como as Leis n. 8.245/92 (Lei de Locações), na parte relativa à renovação compulsória da locação, e n. 8.934/94 (Lei de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins).

            Dessa forma, compreende-se que, atualmente, o sistema adotado pela legislação comercial no que tange à amplitude do conceito de empresário aplicado à Lei n° 11.101/05 é o ampliativo com restrições.

            No que se refere ao conceito de empresa, intimamente atrelado ao conceito de empresário, Fábio Ulhoa (2009) menciona:

Dizia o jurista italiano: “O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado”. Baseando-se, então, no multifacetado fenômeno econômico da empresa, Asquini distinguia quatro perfis: subjetivo, funcional, patrimonial (ou objetivo) e corporativo. Pelo primeiro perfil, a empresa é vista como empresário, isto é, como o exercente de atividade autônoma, de caráter organizativo e com assunção de risco. Neste caso, a pessoa (física ou jurídica) que organiza a produção ou circulação de bens ou serviços é identificada como a própria empresa. Corresponde este perfil subjetivo a certo uso coloquial da palavra (“a empresa faliu”, “a empresa está contratando pessoal” etc.). Segundo Asquini, “na economia de troca o caráter profissional da atividade do empresário é um elemento natural da empresa. O princípio da divisão do trabalho e a necessidade de repartir no tempo as despesas da organização inicial, de fato, orientam naturalmente o empresário, para especializar sua função por meio de uma atividade em série, dando lugar a uma organização duradoura, normalmente, com escopo de ganho. Pelo perfil funcional, identifica-se a empresa à própria atividade. Neste caso, o conceito é sinônimo de empreendimento e denota uma abstração, um conjunto de atos racionais e seriais organizados pelo empresário com vistas à produção ou circulação de bens ou serviços. É este perfil da empresa que a evolução doutrinária da teoria irá prestigiar. Para Asquini, porém, ele é apenas um dos conceitos jurídicos atribuíveis ao fenômeno: “em razão da empresa econômica ser uma organização produtiva que opera por definição, no tempo, guiada pela atividade do empresário, é que, sob o ponto de vista funcional ou dinâmico, a empresa aparece como aquela força em movimento que é a atividade empresarial dirigida para um determinado escopo produtivo”. Pelo terceiro perfil, a empresa corresponde ao patrimônio aziendal ou estabelecimento. É o conceito objetivo, que muitas vezes corresponde a certo uso coloquial do termo (“vou à empresa”, “a empresa fica em São Paulo” etc.), em que há a identificação dela com o local em que a atividade econômica de produção ou de circulação de bens é explorada. Neste sentido, Asquini pondera: “O fenômeno econômico da empresa, projetado sobre o terreno patrimonial, dá lugar a um patrimônio especial distinto, por seu escopo, do restante patrimônio do empresário (exceto se o empresário é pessoa jurídica, constituída para o exercício de uma determinada atividade empresarial, caso em que o patrimônio integral da pessoa jurídica serve àquele escopo)”. E, por fim, pelo perfil corporativo, a empresa é considerada, na formulação asquiniana, uma instituição, na medida em que reúne pessoas - empresário e seus empregados - com propósitos comuns. Asquini reputava que “o empresário e os seus colaboradores, dirigentes, funcionários operários, não são de fato, simplesmente, uma pluralidade de pessoas ligadas entre si por uma soma de relações individuais de trabalho, com fim individual; mas formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual se fundem os fins individuais do empresário e dos singulares colaboradores: a obtenção do melhor resultado econômico na produção”.

            Dessa feita, esgotando as referências teóricas do conceito de empresa, que aqui se mostram suficientes para a compressão do empresário e do âmbito de incidência da Lei n° 11.101/2005, passa-se agora a analisar algumas características necessárias para que determinado sujeito seja considerado empresário, quais sejam:

a) a atividade;

b) a economicidade;

c) a organização;

d) a profissionalidade;

e) produção ou circulação de bens ou serviços;

f) o direcionamento ao mercado;

g) assunção do risco.

            A atividade do empresário não pode ser um ato isolado e eventual, mas deve ser um conjunto de atos voltado a um fim comum.

            No que se refere à economicidade, tem-se que a atividade do empresário é essencialmente econômica, voltada para a produção de novas riquezas. Isto é, busca-se gerar lucro para o explorador.

            A organização aqui referida diz respeito aos fatores de produção. Ou seja, o empresário tem articulados o capital, a mão-de-obra, os insumos e a tecnologia, de forma que essa organização prevaleça sobre suas eventuais atividades pessoais.

               A profissionalidade se refere à estabilidade e habitualidade da atividade exercida.

         Em relação à produção ou circulação de bens ou serviços, tem-se que a produção de bens se refere à fabricação de produtos ou mercadorias (ex.: montadora de carros, fábricas de lápis escolar, indústria de alimentos congelados etc.), enquanto que a produção de serviços significa a efetiva prestação de serviços (ex.: hospitais, bancos, seguradoras, escola, provedoras de acesso à Internet, estacionamentos, lava-jatos etc.). Já a circulação diz respeito à intermediação na cadeia de escoamento de mercadorias (circulação de bens) ou de serviços (circulação de serviços). Como exemplo desta temos as agências de viagens, e como exemplo daquela temos a

         Quanto ao direcionamento ao mercado, essa característica implica dizer que tanto a produção como a circulação de bens ou serviços são voltadas a terceiros, e não ao próprio empresário, que não as utiliza em seu proveito.

            Por fim, no que tange à assunção do risco, pode-se inferir que, na atividade empresarial, o empresário assume todo o risco do empreendimento, não podendo transferi-lo a terceiros.

               Cabe mencionar ainda a disposição do parágrafo único do art. 966 do Código Civil/2002, a qual dispõe de exclusões do conceito de empresário:

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

           Tais exclusões não são à toa. Justificam-se em razão do papel secundário que assume a organização da atividade frente à pessoalidade. Assim, nas profissões intelectuais, de natureza científica, literária ou artística, não há uma “fôrma”, um modelo, uma padronização a ser sempre seguido, senão uma adequação caso a caso.

           Dito isso, passaremos efetivamente ao âmbito de incidência da Lei n° 11.101/2005, que, como foi dito anteriormente, foi de certa forma ampliado pela nova legislação.

           Assim, retomando a análise do dispositivo já mencionado, tem-se que o novo ordenamento falimentar se aplica à falência do empresário e da sociedade empresária.

           Nessa perspectiva, interessantes são os ensinamentos de Marlon Tomazette (2019):

Quando a lei se reporta a empresário, deve-se entender uma referência ao empresário individual, que é a pessoa física que exerce a empresa em seu próprio nome, assumindo todo o risco da atividade. É a própria pessoa física que será o titular da atividade. Ainda que lhe seja atribuído um CNPJ próprio, distinto do seu CPF, não há distinção entre a pessoa física em si e o empresário individual. Com a Lei no 12.441/2011 também devem ser abrangidas as Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRELIs) que são uma pessoa jurídica criada como centro autônomo de direitos e obrigações para o exercício individual da atividade empresarial. Independentemente da natureza, o fato é que EIRELI poderá ser usada para exercer atividade empresarial e, por isso, se enquadra no conceito de empresário. Ao lado do exercício individual da empresa, é cada vez mais comum a utilização de sociedades para tal mister, especialmente pela união de esforços e/ou capitais que é possível nas sociedades. Atividades maiores dificilmente podem ser exercidas individualmente, sendo frequente e muito útil a formação de sociedades. Havendo a formação de sociedades, elas é que assumirão a condição de empresário, na medida em que as obrigações e o risco da empresa serão da sociedade. Tais sujeitos, empresário individual, EIRELI e sociedade empresária, são espécies do gênero empresário e delimitam o âmbito de incidência da falência, da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, os quais não se aplicam a todos indistintamente, mas apenas a eles. A importância desses sujeitos no cenário econômico justifica o tratamento diferenciado e a criação de tais institutos.

            Sumariamente, podemos resumir a aplicabilidade da lei falimentar da seguinte maneira:

Tipo empresarial

Sujeita-se ao regime falimentar?

Empresário individual

Sim

EIRELI

Sim

Sociedade simples

Não

Sociedades anônimas

Sim

Comandita por ações

Sim

Sociedade cooperativa

Não

Sociedade em conta de participação

Não

Sociedade limitada

Sim

Empresários rurais

Depende

           

No que se refere ao empresário rural, leciona Sérgio Campinho (2017):

O empresário rural, entendido como tal aquele cuja atividade rural constitua sua principal profissão, fica submetido, em princípio ao regime do direito civil, não estando, desse modo, sujeito à falência ou à recuperação. Não é, portanto, considerado juridicamente empresário.

No entanto, permite o Código Civil de 2002 que ele requeira a sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis de sua respectiva sede e, efetivando o registro, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário individual ou à sociedade empresária, conforme o caso ( arts. 971 e 984 do citado Código). A partir de então, passará a ser sujeito passivo da falência ou da recuperação.

            Outra situação interessante diz respeito ao espólio. Sob essa ótica, afirma Amador Paes de Almeida (2013):

Espólio, como se sabe, são os bens deixados pelo morto, via de regra, designado pela expressão latina de cujus, abreviatura de de cujus sucessione agitur, isto é, de cuja sucessão se trata, servindo, portanto, para indicar o falecido. Na ocorrência de morte de uma pessoa, seus herdeiros sucedem-na nos direitos e obrigações, respondendo o espólio (os bens do de cujus) pelas dívidas que este porventura tenha deixado, como dispõe o art. 597 do Código de Processo Civil: “O espólio responde pelas dívidas do falecido; mas, feita a partilha, cada herdeiro responde por elas na proporção da parte que na herança lhe coube”. Na hipótese de o de cujus ter sido empresário, verificando-se o estado de insolvência, não só o credor pode requerer a falência do espólio, mas também o cônjuge sobrevivente, os herdeiros e o inventariante. [...] A falência do espólio suspende o processo de inventário, cumprindo ao administrador judicial realizar os atos pendentes em relação aos direitos e obrigações da massa falida.

          No mesmo sentido, Sérgio Campinho (2017):

O empresário individual pode falecer em estado de insolvência, ou, até mesmo, pode ela aflorar após a sua morte. Como a existência da pessoa natural termina com a morte, não se concebe possa ser declarada a falência do de cujus, Daí ter a Lei de Falência e Recuperação encontrado a solução de sujeitar ao procedimento falimentar o espólio do devedor empresário, tal qual já o fazia a lei revogada de 1945.

3.3 EXCLUSÕES LEGAIS

            A Lei n° 11.101/2005 traz em seu art. 2° hipóteses legais de exclusão do regime falimentar:

Art. 2º Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

            A empresa pública e a sociedade de economia mista, por serem formas de intervenção estatal na economia, merecem um cuidado especial, de forma que foram expressamente excluídas do âmbito de incidência da lei falimentar.

            Contudo, Marlon Tomazette (2019) traz uma observação extremamente relevante:

Sob a ótica do direito administrativo e da Constituição Federal, há que se diferenciar, dentre as empresas estatais, as exploradoras de atividade econômica e as prestadoras de serviços públicos. As primeiras estão sujeitas ao mesmo regime das entidades de direito privado (CF – art. 173, § 1o), já as últimas estão sujeitas ao regime próprio do direito público (CF – art. 175). Tal diferenciação é fundamental, na medida em que para as últimas é possível fazer uma discriminação em relação ao regime privado. O ilustre Prof. Gabriel de Britto Campos assevera, a nosso ver com razão, que “quando provocado, o Judiciário provavelmente declarará a inconstitucionalidade do inciso I do art. 2°, da Lei n° 11.101/05, relativamente às empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividades econômicas”. No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho afirma que “se o Estado se despiu da sua potestade para atuar no campo econômico, não deveria ser merecedor da benesse de estarem as pessoas que criou para esse fim excluídas do processo falimentar”. Ora, para as prestadoras de serviço público, a própria continuidade dos serviços públicos pode justificar a não submissão aos termos da Lei n° 11.101/2005, sem qualquer violação constitucional, dada a aplicação do artigo 175 da Constituição Federal. De outro lado, as exploradoras de atividade econômica não possuem uma justificativa viável para a discriminação e, mais que isso, há mandamento constitucional que impede tal discriminação. E não se diga que a criação por autorização legal impediria a falência, porquanto esta é apenas uma forma de liquidação e não necessariamente de extinção das sociedades. Após a falência, cessam seus efeitos e é possível a continuação das atividades, desde que haja novos investimentos. Da mesma forma, o argumento de que a falência não é uma obrigação comercial não permite a discriminação. O texto da Constituição é claro ao determinar a submissão ao “regime jurídico próprio das empresas privadas”, dentro do qual se insere a falência para todos aqueles que se enquadrem como empresários, como é o caso das empresas públicas e sociedades de economia mista. Portanto, pode-se concluir que as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público estão absolutamente excluídas da Lei n° 11.101/2005. Já as que exploram atividade econômica estão sujeitas aos seus termos, numa interpretação conforme o artigo 173, § 1°, II, da Constituição Federal.

            Tal apontamento se revela extremamente pertinente.

          No que se refere à instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e às outras entidades legalmente equiparadas às anteriores, o tratamento especial dispensado pela lei  se justifica pela importância econômica maior dessas entidades, de forma que existem procedimentos específicos para tratar da insolvência desses entes.

         Assim, em regra não se aplica a falência a essas instituições, pois existem regimes próprios que melhor se adequam à realidade desses entes (ex.: Regime de Administração Especial Temporária - RAET -, instituído pelo Banco Central às instituições financeiras; a intervenção da Superintendência de Seguros Privados e a determinação de medidas especiais de fiscalização às seguradoras)  mas a recuperação (judicial ou extrajudicial) é perfeitamente cabível.

4 CONCLUSÃO

          O direito falimentar é o ramo do direito que se preocupa com a empresa que figura em uma situação específica: a situação de crise.

         Como foi visto, não é qualquer modalidade de crise que ensejará a intervenção estatal por meio dos instrumentos da falência e da recuperação de empresas, mas tão somente as crises econômica, financeira e patrimonial.

            Diante de todo o exposto, pode-se concluir ainda que o regime adotado pelo novo ordenamento jurídico falimentar (Lei n° 11.101/2005) ampliou o alcance do que antes era disposto no Decreto-Lei n° 7.661/1945.

            Nessa perspectiva, atualmente, os institutos da falência e da recuperação de empresas, seja ela judicial ou extrajudicial, podem ser aplicados ao empresário, aqui entendido como empresário individual e EIRELI, e à sociedade empresária.

            Vale relembrar o quadro-sumário:

Tipo empresarial

Sujeita-se ao regime falimentar?

Empresário individual

Sim

EIRELI

Sim

Sociedade simples

Não

Sociedades anônimas

Sim

Comandita por ações

Sim

Sociedade cooperativa

Não

Sociedade em conta de participação

Não

Sociedade limitada

Sim

Empresários rurais

Depende

            Ademais, como já visto, o espólio também pode ser sujeito passivo da falência.

          No que diz respeito às hipóteses legais de exclusão da aplicação dos regimes, dispostas no art. 2° da Lei n° 11.101/2005, vimos que esse apartamento se dá em razão da maior importância econômica que as instituições financeiras públicas ou privadas, cooperativas de crédito, consórcios, entidades de previdência complementar, sociedades operadoras de planos de assistência à saúde, sociedades seguradoras, sociedades de capitalização e outras entidades legalmente a elas equiparadas possuem no cenário mercadológico do país.

           Assim, em regra, essas entidades não são legitimadas passivamente para se submeter ao regime da falência e da recuperação de empresas, visto que elas possuem mecanismos próprios de resolução de crises.

           Contudo, em caso de inércia por parte das instituições fiscalizadoras, como o Banco Central, pode-se aplicar o regime de recuperação empresarial a essas entidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TOMAZETTE, M. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas, 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017.

ALMEIDA, A. P. D. CURSO DE FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2013

NEGRÃO, R. ASPECTOS OBJETIVOS DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIAS. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014

CAMPINHO, S. Curso de Direito Comercial-Falência e Recuperação de Empresa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017

COELHO, F. U. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas: (Lei n. 11.101, de 9-2-2005) 6. ed - São Paulo : Saraiva, 2009

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