UMA TENTATIVA DE “VIRADA DE MESA”

02/04/2021 às 17:03
Leia nesta página:

O ARTIGO EXAMINA CASO CONCRETO NO ÂMBITO DO REGIMENTO INTERNO DO STF.

UMA TENTATIVA DE “VIRADA DE MESA”

Rogério Tadeu Romano

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal, e deve ser julgado na primeira quinzena de abril, recurso contra a decisão do ministro Edson Fachin que anulou as condenações por competência de foro. A decisão de Fachin é tecnicamente correta e deve ser confirmada pelo plenário. Mas o que se pretende é que os 11 integrantes da Corte revisitem também pontos levantados pelo ministro quando deu sua decisão, como o arquivamento de uma série de recursos da defesa, dentre os quais o habeas corpus que pedia a suspeição de Moro, julgado procedente pela Segunda Turma.

Ora, a Segunda Turma do STF é preventa para tais julgamentos.

Trata-se de uma manobra objetivando “uma virada de mesa” processual, o que é condenável.

A incompetência territorial, ainda que restabeleça os direitos políticos de Lula, não traz nulidade tão intensa quanto a decisão sobre a suspeição. Na decisão de Fachin, os atos decisórios foram anulados, mas a instrução processual ainda poderá ser aproveitada.

Já a decisão da parcialidade se sobrepõe à da competência, pois há mais intensidade na garantia do direito de liberdade no julgamento deste HC, uma vez que implica nulidade total do processo: tanto das decisões quanto da instrução.

Repito que o julgamento quanto a suspeição do juiz antecede, é prejudicial, a outra que envolve incompetência do juízo. O art. 96 do CPP é claro ao estabelecer que a suspeição deve ser suscitada de forma prioritária, precedendo a qualquer outra.

O ministro Gilmar Mendes afirmou, no dia 16 de março do corrente ano, que "o relator não é o dono do processo" e não pode enviar processo ao Plenário se o julgamento já foi iniciado por turma do Supremo Tribunal Federal.

O relator pode remeter processos ao Plenário, conforme o Regimento Interno do STF, mas apenas antes do início do julgamento de um processo, destacou. 

"Uma vez iniciado o julgamento de um processo no âmbito de órgão colegiado, o relator não pode mais enviá-lo para o Plenário, pois a jurisdição da turma já foi iniciada", ensinou o ministro Gilmar Mendes.

A compreensão sistemática do regimento interno do Supremo não deixa qualquer margem a manuseio intencional das competências jurisdicionais de cada um dos seus órgãos”, disse. “A ordem jurídica pátria rechaça qualquer gênero de manipulação da competência dos órgãos judicantes, sobretudo quando provocada pelas partes ou exercida pelo juízo com intuito de ampliar as chances de tal ou qual resultado no julgamento dos processos”, acrescentou.

Um caminho para definir essa competência entre os julgadores é a prevenção.

Na lição de Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal. São Paulo, Saraiva, 1978, pág. 52), a palavra prevenção vem do verbo prevenire, chegar antes, conhecer antes ou antecipar-se.

A prevenção, que está intimamente ligada à distribuição, se dá tendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, venha um deles, antecipando-se aos outros, praticar algum ato ou determinar alguma medida, mesmo antes de oferecida a denúncia, como é o caso da prisão preventiva, liberdade provisória com fiança.

Como diferenciar juízes igualmente competentes e juízes com jurisdição cumulativa?

Ensina Tourinho Neto (Código de Processo Penal comentado, volume I, pág. 212 e 213) que os magistrados igualmente competentes são os que possuem idêntica competência, tanto em razão da matéria quanto em razão do lugar. Por sua vez, são juízes com jurisdição cumulativa aqueles aptos a julgar a mesma matéria, mas que se localizam em foros diferentes. Temos juízes com idêntica competência quando há vários juízes na mesma Comarca, onde haveria a necessidade de se distribuir o processo para se encontrar o juiz competente. São assim conceitos diversos.

A distribuição de processos significa a distribuição de processos entre juízes igualmente competentes (artigo 75 do Código de Processo Penal).

Prescreve o artigo 75 do Código de Processo Penal: ¨A distribuição realizada para efeito de concessão da fiança ou da decretação da prisão preventiva ou de qualquer outra diligência anterior à denúncia ou queixa prevenirá a da ação penal¨.

Para Hélio Tornaghi (Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1980, volume I, pág. 116) o que se distribui é o inquérito e não a ação penal.

A apreciação de habeas corpus, impetrado ainda na fase do inquérito policial, providência facultativa que se presta a fornecer prova a acusação para o ajuizamento da ação penal, tendo o delegado como autoridade coatora, não fixa prevenção para o futuro processo. Isso porque o habeas corpus é ação autônoma de impugnação, não se prestando a estabelecer tal vínculo. Por sua vez, já se decidiu que o pedido de explicações ao ser distribuído previne a distribuição da queixa-crime se não for indeferido pelo juiz (RT 483:344).

Existem duas formas de distribuição dos feitos entre os ministros. Uma é o sorteio e a outra a prevenção.

Nos termos do RISTF, é o ato da distribuição da causa ou do recurso, e não decisão eventual do Relator sorteado, que o torna prevento para todos os demais processos relacionados por conexão ou continência, como está nítido no art. 69, caput:

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“A distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos a eles vinculados por conexão ou continência.”

Por fim, conforme orientação desta Presidência, a distribuição de ação ou recurso gera prevenção para todos os processos posteriores vinculados por conexão ou continência, e somente não se caracterizará a prevenção, se o relator, sem apreciar pedido de liminar, nem o mérito da causa, negar-lhe seguimento, não conhecer ou julgar prejudicado o pedido, declinar da competência, ou homologar pedido de desistência por decisão transitada em julgado, nos termos do artigo 69, § 2º, do RISTF.

O que é conexão e o que é continência?

Mirabete (Processo Penal, São Paulo, Atlas, 1992, pág. 173) advertiu que os conceitos de conexão e continência diferem dos do processo civil em que  há distinção em razão das personae, res e causa petendi com regras específicas para a determinação do juízo competente.

Trago a conclusão de Pazzaglini Filho (Conexão e continência em processo penal, Justitia 72/23 – 52), para quem, motivando a reunião em um processo e, consequentemente, a unidade de julgamento, a conexão e a continência ¨tem por finalidade a adequação unitária e a reconstrução crítica única das provas a fim de que haja, através de um único quadro de provas mais amplo e completo, melhor conhecimento dos fatos e maior firmeza e justiça nas decisões, evitando-se a discrepância e contradição entre os julgados¨.

Há prevenção do juízo da Segunda Turma para instruir e julgar os pleitos que envolvem a Lava-Jato em Curitiba.

Assim compete à Turma(artigo 10 do RISTF):

I — processar e julgar, originariamente: a) os conflitos de atribuições, que não sejam da competência do Plenário (art. 7º, I, e); b) os habeas corpus, quando o coator ou paciente for tribunal, funcionário ou autoridade, cujos atos estejam diretamente subordinados à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ou se tratar de crime sujeito à mesma jurisdição em única instância, ressalvada a competência do Plenário (art. 7º, I, a); c) os incidentes de execução que, de acordo com o art. 322, III, lhes forem submetidos; II — julgar, em recurso ordinário: a) os habeas corpus, denegados em única ou última instância pelos tribunais locais ou federais, ressalvada a competência do Plenário (art. 7º, III, a e b) e vedada à substituição do recurso por pedido originário; b) a ação penal, nos casos do art. 129, § 1°, da Constituição; III — julgar, em recurso extraordinário, as causas a que se refere o art. 119, III, da Constituição

Observo o artigo 11 do Regimento Interno do STF:

Art. 11 — A Turma que tiver conhecido da causa ou de algum de seus incidentes, inclusive de agravo para subida de recurso denegado ou procrastinado na instância de origem, tem jurisdição preventa para os recursos e incidentes posteriores, mesmo em execução, ressalvada a competência do Plenário e do Presidente do Tribunal. § 1º — Prevalece o disposto neste artigo, ainda que a Turma haja submetido a causa, ou algum de seus incidentes, ao julgamento do Plenário (arts. 12 e 322, II). § 2° — A prevenção, se não reconhecida de ofício, poderá ser argüida por qualquer das partes ou pelo Procurador-Geral até o início do julgamento pela outra Turma. § 3º — Desaparecerá a prevenção, se tiver havido total redistribuição dos Ministros do Tribunal na composição das Turma

Ora, tem-se o artigo 12 do Regimento Interno do STF:

 — A Turma remeterá o feito ao julgamento do Plenário (arts. 80, § 1°, II e 89, parágrafo único): I — quando houver relevante arguição de inconstitucionalidade não decidida pelo Tribunal Pleno (art. 97); II — quando algum dos Ministros propuser revisão da jurisprudência predominante (art. 99). Parágrafo único — Poderá a Turma proceder na forma deste artigo: 5 a) quando houver matéria em que divirjam as Turmas entre si ou alguma delas em relação ao Plenário; b) quando convier pronunciamento do Plenário em razão da relevância da questão jurídica, de mudança operada na composição do Tribunal, ou da necessidade de prevenir divergência entre as Turmas.

Data vênia, não se cogita de nenhuma das hipóteses para o caso retro.

Se todos os processos que envolvam a Lava-Jato no âmbito de Curitiba estão sendo por ela julgadas, então por que estar-se-á a enviar esses processos para o Plenário? Parece-me errado. O relator não é dono do processo.

Sendo assim não deve sequer ser conhecida essa suscitação de competência do Plenário para tal julgamento.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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