Quais relações podem ser estabelecidas entre Heródoto (historiador e geógrafo grego do século V a.C.), Aristóteles (filósofo grego do século IV a.C.) e o atual chefe do poder Executivo da República Federativa do Brasil? Aparentemente, apenas um espírito zombeteiro ou um raciocínio desacertado possuiriam as credenciais necessárias para aproximar indivíduos de tempos, culturas, temperamentos e gênios tão díspares.
Sem embargo, uma sutil e aceitável aproximação é possível (evidentemente, menos no que diz respeito a habilitação reflexiva de cada um dos personagens mencionados- o que apenas um ato de fé pessoal poderia justificar-, mas no que concerne ao limite menos extremo da analogia existente entre a predisposição ao engajamento com certos pontos de vista e eventos políticos por parte do último, e as referências que são feitas a certos personagens e fatos políticos historicamente confirmados pelos dois primeiros.
Segundo Heródoto em sua História 1 , a Atenas do século VI a.C. vivia um momento de conflituosidade animada por amplas transformações nas estruturas sociais. Uma das mudanças mais importantes estava relacionada ao controle do acesso às falanges (o Exército) implementado pela aristocracia ateniense- o que privou muitos cidadãos gregos do processo de distribuição de bens públicos como o prestígio social e os espólios de guerra.
Tal ambiência conduziu a disputas pelo poder entre os grupos políticos dominantes (e nos seus interiores)- as elites latifundiárias, representadas pela “Planície”, e os mercadores e artesãos, representados pela “Costa”. Aproveitando-se da divisão, Pisístrato de Brauron não apenas funda uma nova facção (a “Montanha”) que se colocava como uma espécie de “terceira via” entre as duas primeiras, como se autoproclama líder dos montanheses e defensor dos interesses classistas deste grupo (o mais pobre e numeroso de Atenas). Com isto, consegue considerável apoio para articular uma fantasiosa cadeia de eventos.
Primeiro, se automutila- sugestionando tentativa de assassinato. Segundo, fere animais e danifica equipamentos públicos ao lançar carruagens sobre a praça- sugestionando perseguição dos opositores. Terceiro, solicita uma guarda pessoal para a sua proteção (algo não permitido pelas leis da época e firmemente desaconselhado por Sólon). Os atenienses, ludibriados pelo palavrório militar autopromocional de Pisístrato, acabam por ceder trezentos homens para a defesa deste. O resultado? Pisístrato, seus apoiadores e sua guarda pessoal rebelam-se, tomam a acrópole e, por fim, instauram a tirania2.
Este evento não foi isolado e repetiu-se com habitualidade em toda a Grécia entre os séculos VI a.C e IV a.C., ao menos é o que nos indicou Aristóteles na Retórica 3 . Nesta obra, o interesse a respeito dos eventos não é documental, mas reflexivo. É a filosofia e não a história o centro do debate.
Ao término do fragmento 1357b, Aristóteles argumenta que Dionísio tenta instaurar uma tirania, pois, à semelhança do praticado por Pisístrato e por Teágenes na cidade de Mégara (e em casos “outros que se conhecem”), também demandava uma guarda especial para si. Aristóteles raciocina por analogia ao indicar a existência de relações não apenas entre eventos políticos distantes e diversos, como entre as condutas que desencadearam aqueles eventos- isto é, Aristóteles sugere que a tirania (o evento político) era latente ao ato de requisição de guarda pessoal (conduta desencadeadora do evento).
O raciocínio analógico, grosso modo, é relacional. É garantidor de unidade e coerência entre pessoas, eventos, condutas, discursos etc, que entre si guardam semelhanças e diferenças, vale dizer, ele organiza as nossas sensações e experiências imediatas permitindo a superação do “aqui e agora” do momento presente e a elaboração de conclusões plausíveis em casos futuros.
Falando em “português”: é via raciocínio analógico que somos capazes de identificar semelhanças e diferenças entre aquilo que é por nós mais conhecido e aquilo que nos é “menos conhecido”. Com a analogia, não precisamos conhecer cada evento singularmente como algo inédito, basta conhecermos a relação posta entre uma porção deles e a partir daí criar conclusões “plausíveis”.
Uma observação. Colocamos as expressões “Menos conhecido” e “plausíveis” em aspas por uma razão. Ainda que teoricamente a relação entre a requisição de guarda especial e a instauração de tirania já pudesse ser afirmada, empiricamente a conclusão não seria rigorosamente possível até o momento da efetiva implementação da tirania por Dionísio, daí a sua “plausibilidade” (seria necessário “pagar para ver” para concluir de modo certo e seguro).
Este é um motivo para redobrar a cautela ao adentramos o terreno da analogia. Os raciocínios analógicos não são premissas evidentes e demonstráveis em si, sua força não é lógico-formal, necessária, é argumentativa e construída comparativamente (através da recorrência de exemplos).
Certas analogias podem ser identificadas ao examinamos a trajetória do atual chefe do poder Executivo desde sua campanha eleitoral no ano de 2018. A primeira e mais curiosa pôde ser notada pelos mais atentos, diz respeito a semelhança com a trajetória “messiânica” de Pisístrato. A segunda e mais importante, porque preocupante, corresponde à tentativa de ruptura institucional da democracia para a instauração de um regime de governo excepcional.
Embora o atual presidente não tenha explicitamente requisitado uma guarda pessoal com o intuito de salvaguardar sua integridade física contra a agressão de inimigos (ficcionados) para assim instituir uma “tirania” (ou seja, uma situação que permita a centralização de poderes em suas mãos), diversas ações institucionais escamoteiam a tentativa. O aparelhamento de Ministérios importantes (a exemplo do Ministério da Justiça- para tentar exercer influência política sob investigações em curso na Polícia Federal) e o estímulo a promoção de projetos de lei nitidamente autoritários (como o PL nº 1074/2021- “Mobilização Nacional” - que visa o controle sobre as polícias militares estaduais, entre outras providências) são casos notórios.
Ressalte-se a diuturna tentativa presidencial de cooptação das Forças Armadas para a sua ideologia antidemocrática (defendida vigorosamente ao longo da vida- e imitada por líderes tirânicos do mundo). Ao repetir e enfatizar a expressão “meu Exército”, o presidente quer implementar (via exaustão retórica) interpretação degenerada do art. 142. CF/88 (fazendo crer, assim, que as Forças Armadas não são órgãos de Estados, mas instituições voltadas a defesa dos interesses de sua personalidade- o que demonstra também o desvio constitucional dos arts. 136. a 139, que regram os casos de intervenção militar.
A retórica da tirania, ou o ímpeto pela ruptura democrática, não obtiveram êxito- até então. Todavia, podem ser renovados continuamente por este e outros tiranos futuros. O Estado brasileiro não deve “pagar para ver”, na prática, aquilo que teoricamente e por analogia já pode concluir como altamente plausível.
Notas
1 HERÔDOTOS. História . Tradução e comentários de Mario da Gama Kury. Brasília: UNB, 1988
2 É importante destacar que o sentido grego de “tirania” é diferente do sentido atualmente atribuído ao conceito (carregado de juízos subjetivos e depreciativos a respeito das condutas morais dos indivíduos). Na concepção grega, nem mesmo ilegítimo seria possível se dizer da tirania (o próprio governo de Pisístrato demonstra como suas políticas econômicas promoveram Atenas a um lugar de destaque entre as polis gregas e contaram com grande adesão-seja em razão das reformas agrárias implementadas; seja em virtude do fomento ao artesanato; seja pela realização de obras públicas que deram trabalho à população carente e melhoraram a infraestrutura urbana). No entanto, em razão dos poderes ilimitados concedidos aos tiranos, os gregos tinham noção de que a tirania deveria ser uma forma de governo excepcionalíssima dentro da normalidade democrática. É este sentido que pretendemos fixar.
3 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017