Sumário: 1. Introdução. 2. História do Habeas Corpus. 3. A recepção do Habeas Corpus no Brasil. 4. A teoria brasileira do habeas corpus e os desenvolvimentos posteriores. 5. Considerações finais.
- Introdução
A expressão latina Habeas Corpus significa, literalmente, “tome o teu corpo”, ou “tenhas o teu corpo (em liberdade)”. Trata-se, portanto, de um instrumento intimamente relacionado à liberdade do corpo (de ir, vir e ficar) e, por conseguinte, à liberdade em geral (BRAYNER, 2012). O Habeas Corpus, em que pese o fato de suas origens remontarem a institutos jurídicos bastante antigos, é tido, modernamente, como uma garantia civilizacional. A sua previsão constitui um pré-requisito para que um ordenamento jurídico cumpra padrões mínimos de proteção e garantia dos direitos individuais e imponha limites à arbitrariedade dos poder público (MASSAÚ, 2008).
Alguns autores afirmam que a origem do Habeas Corpus pode ser atribuída a um antigo instituto romano, o Interdicto de Libero Exhibendo, que, de acordo com esses autores, possuía características muito próximas às do Habeas Corpus (MASSAÚ, 2008). É, contudo, na Inglaterra do século XIII que o instituto adquiriu uma configuração mais próxima da atual. Essa influência é simbolizada pelo uso, ainda corrente, do termo writ (espécie de ordem escrita) como sinônimo de Habeas Corpus. Mais tarde, nas colônias inglesas da América, que deram origem aos Estados Unidos, o writ foi recepcionado e teve o seu uso alargado (MASSAÚ, 2008). Sob a influência dessa última experiência, o Brasil constitucionalizou o Habeas Corpus, pela primeira vez, de forma expressa, em 1891, em que pese o fato de o instituto ter sido instituído pelo Código de Processo Criminal de 1832 (MASSAÚ, 2008).
O presente estudo tem por objetivo analisar a adoção do instituto no Brasil, bem como as características que ele adquiriu no país. Para tal, o trabalho foi subdividido em três partes. Na primeira, a história geral do Habeas Corpus é discutida, de maneira breve, de modo que a introdução do instituto no Brasil não fique descontextualizada do cenário global. Em um segundo momento, a recepção do writ no país é analisada e discutida. Por fim, na última parte, o foco é colocado no desenvolvimento da teoria brasileira do habeas corpus e nos seus desenvolvimentos posteriores.
2. História do Habeas Corpus
Conforme ja foi mencionado, as bases do instituto sob análise foram lançadas em 1215, na Inglaterra (FONSECA, 1985). Desde então, o Habeas Corpus sofreu alterações significativas, consolidando-se, na modernidade, como um instrumento de garantia e de resguardo da liberdade de locomoção contra eventuais arbitrariedades e abusos cometidos pelo poder público. Essas características, sustentam alguns autores, podem ser encontradas antes mesmo de 1215, na Inglaterra mesmo, assim como no já mencionado instituto romano do Interdicto de Libero in Exhibendo.
É preciso lembrar que, na Antiga Roma, a distinção entre servo e homem livre possuía grande relevância jurídica. O ius libertatis era contraposto ao servus (MASSAÚ, 2008). Essas duas condições significavam, na prática, dois regimes distintos de direitos e deveres, o que implicava, no caso dos homens livres, a possibilidade de valer-se de prerrogativas para defender a sua condição de liberdade. Daí compreende-se a razão de ser do instituto supramencionado: restituir a condição de homem livre, em razão do ius libertatis, a quem tenha sido dela privado por ação arbitrária (nem toda restrição era considerada ilegítima para os romanos) de terceiro (MASSAÚ, 2008).
Além desse aspecto relativo à proteção ao direito de locomoção, as semelhanças entre os dois institutos são ainda maiores. Massaú (2008) aponta também para a forma como o processamento do interdicto ocorria, para a sua dinâmica temporal e para o seu caráter público como elementos que o aproximam do Habeas Corpus inglês da Magna Carta.
A Magna Carta Libertarum de 1215 é amplamente reconhecida como o marco inicial da história do Habeas Corpus, em que pese o precedente do direito romano mencionado. O texto da Magna Carta é considerado um marco na história jurídica do ocidente, não obstante o fato de se tratar de um documento de caráter privado (assinado por nobres, com intuito de regular as suas relações jurídicas com a Coroa), uma vez que afirma direitos e funda-se em uma noção de liberdade.
Os nobres que a assinaram (e forçaram o rei de então, João Sem-Terra, a assiná-la) estavam interessados em conter o aumento do poder do rei inglês, bem como em impor limites à atuação arbitrária do monarca, especialmente da área fiscal, tendo em vista a necessidade de recursos para as suas aventuras bélicas (MASSAÚ, 2008). Nesse sentido, o Habeas Corpus, não previsto expressamente no documento, surge como um dos mais importantes instrumentos de garantia da liberdade, dando concretude à legalidade e ao devido processo mencionados na Magna Carta (MASSAÚ, 2008). Pode-se dizer, portanto, que as configurações básicas do writ foram estabelecidas na Inglaterra do século XIII.
O writ, no entanto, só se consolidou e adquiriu uma configuração mais próxima da moderna em 1679, quando é aprovado, pelo Parlamento inglês, o Habeas Corpus Act (CESARIS, 1989). Essa legislação, focada exclusivamente no uso do Habeas Corpus no âmbito do direito penal, trouxe inovações importantes acerca do processamento, das limitações e de algumas outras especificidades do pedido a ser feito pelo indivíduo cujo direito foi violado.
Outras inovações e mudanças não estruturais vieram com o tempo. Pode-se citar, a título de exemplo as reformas de 1816 e de 1960, que deixaram o instituto mais ágil e adequado às novas exigências políticas e jurídicas (MASSAÚ, 2008). Também é importante destacar que a história do writ, na Inglaterra, não é feita apenas de avanços e triunfos da liberdade, simbolizados pela ampliação constante do uso do instrumento. Em algumas ocasiões, como durante as duas guerras mundiais, o direito ao Habeas Corpus foi suspenso, como também aconteceu, por diversas vezes e razões, em outros países, inclusive no Brasil.
3. A recepção do Habeas Corpus no Brasil
A Constituição imperial de 1824, em que pese não tratar expressamente do tema, é tida como o marco da introdução do Habeas Corpus no país. Essa Constituição foi uma Carta Política de forte influência liberal, que trazia a previsão de direitos de liberdade (CAMPANHOLE; CAMPANHOLE, 1986). Oito anos depois, com o advento do Código de Processo Criminal do Império, de 29 de Novembro de 1832, o Habeas Corpus foi finalmente introduzido, nominalmente inclusive, no ordenamento jurídico brasileiro (MASSAÚ, 2008). O artigo 340 de tal Código estabelecia, de maneira expressa, que qualquer cidadão que tenha sofrido com prisão ou constrangimento ilegal de sua liberdade possuía o direito de pedir Habeas Corpus (GUIMARÃES, 1999).
A prática, no período imperial, ampliou bastante o escopo do writ previsto pelo texto da lei. Pode-se citar, de maneira a exemplificar isso, a ampliação dos casos passíveis de serem considerados qualificados de constrangimento ilegal, em 1863, e a estruturação de dois tipos de Habeas Corpus (o preventivo e o liberativo), por meio de decreto, em 1871, e a aplicação do princípio da igualdade aos estrangeiros, que lhes permitiu valer-se de tal instrumento (MASSAÚ, 2008).
Com o fim do Império e a proclamação da República, em 1889, o Brasil passou por uma mudança constitucional, concretizada em 1891, com a promulgação da nova constituição republicana, fortemente inspirada pela experiência norte-americana. Nesse período, o instituto do Habeas Corpus sofreu profundas transformações, tendo o seu escopo ampliado, de modo a adequar-se à nova declaração de direitos individuais trazida pela Constituição. É também nesse período que surge a chamada teoria brasileira do Habeas Corpus, que será analisada de maneira mais detalhada no próximo tópico.
4. A teoria brasileira do Habeas Corpus e os desenvolvimentos posteriores
A teoria brasileira do Habeas Corpus, ou doutrina brasileira do Habeas Corpus, decorreu de uma reinterpretação do instituto, feita pelo STF, na República Velha, que, de acordo com alguns estudiosos do tema, tornou a versão brasileira do writ a mais ampla do mundo (SOUZA, 2008). O Habeas Corpus tornou-se, nesse sentido, um instrumento destinado à defesa de direitos individuais mais amplos do que o originalmente previsto.
O próprio texto da Constituição de 1891 deu ensejo a essa reinterpretação, pois a Carta dispunha que o Habeas Corpus seria concedido sempre que um indivíduo sofresse ou achasse-se em perigo iminente de sofrer violão a direito, por ilegalidade ou abuso de poder. A doutrina brasileira pode ser sintetizada da seguinte maneira: o Habeas Corpus é o remédio constitucionalmente adequado sempre que houver coação, ilegalidade e abuso de poder, independentemente da ocorrência de um constrangimento físico direito ou da prisão (SOUZA, 2008).
É evidente que essa doutrina conviveu com visões alternativas. Alguns juristas e juízes defendiam uma interpretação mais ortodoxa do instituto, voltada à defesa exclusiva do direito de locomoção (ir, vir, ficar), outras, como Pedro Lessa, defendiam uma corrente intermediária, segundo a qual o writ só protegeria os demais direitos de maneira indireta, na medida em que fossem afetados por uma violação ao direito de locomoção (SOUZA, 2008).
Posteriormente, em 1926, uma reforma constitucional restringiu o Habeas Corpus, mencionando expressamente a violação ao direito de locomoção como requisito para a concessão do writ, o que acabou por gerar uma uma lacuna na proteção dos direitos fundamentais previstos pela Constituição (SOUZA, 2008). Souza (2008) aponta essa lacuna como um dos ingredientes da gênese no mandado de segurança, introduzido pela Constituição de 1934. Depois de alguns avanços e retrocessos (Constituição de 1937, por exemplo), o Mandado de Segurança se consolidou no ordenamento brasileiro e, assim como outros remédios constitucionais criados posteriormente, juntou-se ao Habeas Corpus na lista de instrumentos de defesa dos direitos fundamentais.
5. Considerações finais
O Habeas Corpus segue sendo, não obstante a sua antiguidade e as várias transformações pelas quais passou, no mundo e no Brasil, um instrumento fundamental na defesa do direito fundamental de locomoção. Consagrado pela Constituição de 1988, o Habeas Corpus é, hoje em dia, um dos remédios constitucionais aptos a servir de escudo para os direitos fundamentais.