O CASO EVALDO E A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA INSTRUIR E JULGAR O FEITO

12/04/2021 às 12:47
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA INSTRUIR E JULGAR O CASO EVALDO.

O CASO EVALDO E A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA INSTRUIR E JULGAR O FEITO

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

Há muito a se esclarecer sobre o fuzilamento que resultou na morte do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, e em ferimentos em outras duas pessoas — o seu sogro e um pedestre —, na tarde de domingo, em Guadalupe, Zona Norte do Rio. Por enquanto, sabe-se que soldados do Exército que faziam o patrulhamento nas imediações de instalações militares dispararam mais de 80 tiros de fuzil contra o carro em que estavam Evaldo, o sogro, a mulher, o filho de 7 anos e a afilhada de 13.

Ainda, naquele domingo, o Exército emitiu nota informando que os militares revidaram a uma “injusta agressão” depois que bandidos abriram fogo contra a patrulha. Testemunhas, porém, deram outra versão, segundo a qual os soldados teriam confundido o carro de Evaldo com o de criminosos. De qualquer forma, a família não estava armada.

Depois, no entanto, o Comando Militar do Leste mandou prender em flagrante dez dos 12 militares envolvidos no episódio, devido a “inconsistências identificadas entre os fatos inicialmente reportados ”, informações que chegaram posteriormente ao CML e os depoimentos dos próprios agentes. Eles ficarão à disposição da Justiça Militar.

Evaldo morreu no local; o sogro foi internado, mas sobreviveu; o catador de lixo reciclável Luciano Macedo, que tentou ajudar a família, também foi atingido pelos disparos e morreu 11 dias depois.

A defesa alega que os acusados agiram “no estrito cumprimento das leis, em atos de legítima defesa e regras de engajamento”.

No entanto, a imprensa divulgou o que segue(Caso Evaldo, 2 anos, Folha, in 12 de abril de 2021): 

"Os autores dos 257 tiros nem sequer participavam de operação de GLO —modalidade da qual se abusou no país nos últimos anos para o enfrentamento de crises de violência, quando seria preferível o emprego de policiais cedidos à Força Nacional de Segurança Pública.

Os homens que mataram Evaldo realizavam patrulhamento regular no perímetro de segurança da Vila Militar, onde ocorreu a tragédia. Quando militares se aventuram a fazer policiamento sem o mandato legal, o treinamento e o controle necessários, é grande o risco de brutalidades como essa."

É fundamental saber exatamente o que aconteceu em Guadalupe e por que aconteceu.

Pois bem.

Em importante editorial, em 12 de abril de 2021, a Folha de São Paulo acentuou que: “Exatamente dois anos depois do assassinato brutal, ainda sem punição, a Justiça Militar adiou na última quarta-feira (7) o julgamento dos 12 militares envolvidos.

A morosidade do caso contrasta com a sua gravidade: depois de dois adiamentos, os atiradores somente foram ouvidos em dezembro de 2019, oito meses após o fuzilamento. Apresentam-se visões desconexas dos fatos, convergindo para a estratégia de culpar o catador morto na ocasião.”

Em depoimento, fardados afirmaram que ele disparou em sua direção e havia assaltado um veículo momentos antes. Nenhuma arma, no entanto, havia sido encontrada com Luciano Macedo.

O delito envolve competência da Justiça Especial Militar em face de norma editada sob o governo Temer.

À época o Comando do Exército afirmou à Folha que a medida “torna mais rígida e célere a punição de crimes e abusos cometidos por esses representantes do Estado nas operações de GLO [Garantia da Lei e da Ordem]”

II – A COMPETÊNCIA PARA INSTRUIR E JULGAR AS CONDUTAS NARRADAS

Resta saber a quem caberá investigar e julgar a conduta dos agentes envolvidos nesse crime que envolve um fuzilamento de um civil e lesões corporais em outras pessoas.

Dir-se-á que pode ter sido um crime de homicídio qualificado.

Há crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Os propriamente militares dizem respeito à vida militar, vista globalmente na qualidade funcional do sujeito do delito, na materialidade especial da infração e na natureza peculiar do objeto da ofensa penal, como disciplina, a administração, o serviço ou a economia militar. Os crimes impropriamente militares, que podem ser cometidos por militares e, ainda, excepcionalmente, por civis, abrangem os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum.

Sendo assim, crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar, em certas condições, a lei considera militares, como se tem dos crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio, os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros. São ainda impropriamente militares, os crimes praticados por civis, que a lei define como militares, como a violência contra sentinela, previsto no artigo 158 do CPM.

 Em situação específica, em que os militares das Forças Armadas exercem função policial, como a de policial ostensivo, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 112.936, julgamento de 29 de junho de 2012, DJe de 1º de agosto de 2012, concedeu writ para invalidar, deste o início, procedimento anteriormente produzido na Justiça Militar, sem prejuízo do suposto crime pela Justiça Federal. O entendimento foi de que o desacato de um civil a um militar que exercia essa atividade no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, dentro do programa de ocupação e pacificação dos morros cariocas, constitui crime civil, e não militar, enquadrado no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal (crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União).

Fica cristalino, da lição do Ministro Celso de Mello, Relator do último acórdão apontado, que não se pode deixar de acentuar o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempos de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se tiver em consideração que tal situação, porque revestida de excepcionalidade, só se legitima se e quando configuradas, quanto aos réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento seja recebido pelo Supremo Tribunal Federal em uma estrita interpretação.

O entendimento do Ministro Celso de Mello é de que se mostra grave a instauração, em tempo de paz, de ação penal militar contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União. Isso porque deve-se respeitar o princípio do juiz natural, uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório.

Naquele julgamento o Ministro Celso de Mello trouxe a advertência de José Frederico Marques (O Processo Penal na atualidade, in Processo Penal e Constituição Federal, pág. 19, item n.7, 1993), no sentido de que, ao rol dos postulados básicos, deve acrescer-se aquele do Juiz natural, contido no item nº LIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, que declara que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente. A autoridade competente será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do Juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações. Sendo assim, impõe-se ao Estado o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais. Como tal, o princípio da naturalidade do juízo, que encerra uma garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado, na medida em que impossibilita a instituição de juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção, assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior, vedados os chamados juízes ex post facto. Assim, somente serão órgãos jurisdicionais aqueles que são reconhecidos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja, como alude Ada Pellegrini Grinover com apoio no magistério de Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, volume 1/322-323 – 1974, Coimbra).

Na contramão de apelos de entidades de classe, o presidente Michel Temer (PMDB) sancionou a lei que confere competência para a Justiça Militar julgar militares acusados de crimes dolosos contra civis. A lei 13.491/2017 foi publicada no Diário Oficial da União, daí porque já tem existência(sanção), validade(promulgação) e tem plena eficácia com a publicação.

De acordo com a nova lei, os crimes cometidos por militares contra civis deixarão de ser julgados pelo Tribunal do Júri em casos que envolvam operações de paz e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como quando governadores de estado solicitam o envio de tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais. Além disso, a Justiça Militar deverá julgar os crimes praticados durante o cumprimento de tarefas estabelecidas pelo governo ou pelo ministro da Defesa.

Serão julgados pela Justiça especializada as mortes de civis causadas por militares nas chamadas missões de "garantia da lei e da ordem", como quando governadores de estado solicitam o envio de efetivos do Exército, Marinha e Aeronáutica para o controle de situações emergenciais.

Reflexamente, foi ampliada a competência da Justiça Militar da União (JMU) para julgar civis por crimes militares, com base no art. 9º, inciso III, do CPM. Considerando que, força do art. 125, §4º, da CF, a Justiça Militar dos Estados só julga militares estaduais, este tópico não interfere em sua competência.

As razões para tal mudança legislativa deitam raiz na polêmica ampliação do papel das Forças Armadas na segurança pública urbana e das fronteiras, em tempos de recrudescimento da violência e do aumento do poderio de organizações criminosas. Por falta de alternativas de segurança pública civil militares têm sido utilizados pelo governo federal em operações de garantia da lei e da ordem, o que vem acentuando situações potencialmente conflitivas com civis, criminosos ou não.

A Lei tem dois artigos e seu dispositivo principal só teve em mira o art. 9º do CPM.

O art. 2º da Lei, que previa vigência temporária, foi vetado pela presidência da República.

O art. 3º determina a vigência imediata da Lei, isto é, sem vacância.

No que diz respeito às normas de competência, a Lei aplica-se aos inquéritos e às ações penais em curso. No que tange à nova definição de crimes militares, vale a regra da irretroatividade, especificamente no tocante à inovação do inciso II do art. 9º do CPM.

O §1º do art. 9º do CPM (antigo parágrafo único) manteve na competência do tribunal do júri os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por policiais militares ou por bombeiros militares e, eventualmente, também os cometidos por integrantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em atividades não especificadas no parágrafo seguinte. Assim, em regra, militares estaduais que cometam homicídio continuam a ser julgados pelo tribunal do júri. Por sua vez, militares federais só serão julgados pelo júri federal, se suas condutas não forem praticadas nas condições delimitadas no §2º do art. 9º.

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O §2º do art. 9º do CPM, introduzido por essa lei, mexe em hipóteses que até agora eram (ou deveriam ser) de competência do tribunal do júri federal (art. 5º, XXXVIII, alínea ‘d’, CF). Essas condutas passam a ser julgadas pela JMU, se se enquadrarem nas situações previstas nos três incisos do novo §2º. Se aí não se amoldarem, vale a regra geral do §1º, e também os militares das FFAA serão julgados pelo júri presidido por um juiz federal nos crimes dolosos contra a vida de civis. Assim, se um crime de homicídio for praticado por um militar contra civil durante uma operação de paz, ou no curso de uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), a competência para o julgamento será, por esta lei, da Justiça Militar da União, e não da Justiça Federal (júri).

Além disso, a nova redação do inciso II do art. 9º do CPM atribuiu à JMU e à Justiça Militar dos Estados a competência para julgar crimes, agora considerados “militares”, que estão previstos na legislação comum, como tortura, abuso de autoridade, cibercrimes, associação em organização criminosa, formação de milícia privada etc. É ampliado o conceito de “crime militar” impróprio ou impropriamente militar, ou acidentalmente militar, para abranger também infrações penais previstas apenas na legislação penal comum, o que antes não ocorria.

Tem-se então o artigo 9º do CPM:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

- os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.

§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

– do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar; e (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017)

d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. (Incluída pela Lei nº 13.491, de 2017). 

O caso serve de advertência para os estudiosos e operadores do direito no sentido da efetividade daquela Lei mencionada que transferiu a competência para a Justiça Especial Militar com relação aos delitos ali mencionados. Em tempos de paz, a competência para instruir e julgar essas condutas deve ser da Justiça Comum.  

III –  ADIn 5.032

Sobre ela divulgou o site Migalhas:

“Na ADIn, ajuizada em 2013, a PGR pede a declaração da inconstitucionalidade do parágrafo 7º do artigo 15 da LC 97/99, na redação dada pelas LCs 117/04 e 136/10, que detalham a atuação subsidiária das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem (GLO) e de combate ao crime. Conforme a argumentação, o dispositivo ampliou demasiadamente a competência da Justiça Militar para crimes não diretamente relacionados com funções tipicamente militares.

O julgamento do caso foi iniciado em 2018, em plenário físico. Na ocasião, o relator, ministro Marco Aurélio, votou pela improcedência da ação.

"A matéria é sensível, e o pronunciamento do STF inadiável, afetando diretamente as estruturas do Estado Democrático de Direito, especialmente no atual contexto de escalada da violência, não mais restrita aos grandes centros urbanos, mas pulverizada por todo o território nacional, inclusive em regiões de fronteira", observou no início do voto.

Para o relator, a lei complementar limitou-se a preencher o espaço de conformação franqueado pela CF para o estabelecimento de normas legais na organização, preparo e emprego das Forças Armadas. Na sua avaliação, a atuação na garantia da lei e da ordem, no patrulhamento de fronteiras e nas ações de defesa civil representam a concretização da essência do estatuto militar em todo Estado moderno - "a proteção, mesmo em tempos de paz, da soberania".

O ministro considerou imprópria a tentativa de igualar as Forças Armadas às instituições policiais ordinárias, sustentando que a ação militar na garantia da paz e da ordem social responde a parâmetros diversos, tanto em virtude da formação e do treinamento específicos de seus membros quanto pelo reconhecimento da finalidade diversa a que se propõe. Os policiais, explicou, atuam na esfera de combate à prática de ilícitos, enquanto as Forças Armadas são acionadas quando verificada a insuficiência daquelas para intervir.

"Seja no combate ao crime organizado nas favelas, nas fronteiras, nas eleições livres ou em ações de defesa civil, as Forças Armadas desempenham papel constitucionalmente atribuído na garantia da soberania e da ordem democrática, em dimensão qualitativamente diversa daquela realizada pelas forças ordinárias de segurança."

Naquele julgamento, o entendimento do relator foi seguido pelo ministro Alexandre de Moraes, que destacou que nenhuma das atividades listadas na lei foi considerada, em qualquer decisão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, da Corte Interamericana de Direitos Humanos ou do Tribunal Europeu de Direitos Humanos como não sendo militares ou exageradas.

"As próprias forças de paz da ONU, quando requisitadas, exercem essas mesmas atividades", afirmou. "Não há nos dispositivos incluídos no parágrafo 7º do artigo 15 da lei nenhuma função que não seja considerada pela própria ONU nas forças de paz como não militares".

À época, o ministro Edson Fachin abriu divergência para reconhecer, como pedido pela PGR, a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado, com a redação dada pelas leis posteriores. S. Exa. apresentou um histórico da definição dos crimes militares em tempos de paz nas diversas Constituições brasileiras para concluir que a Constituição de 1988 trouxe um novo quadro normativo, "extremamente sucinto e cuidadoso" ao definir a competência de como processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

"A Constituição atual retirou o status de foro privilegiado, que diz respeito à condição do militar, aplicável apenas em razão do cargo e das atividades desempenhadas", afirmou. "Apenas os crimes próprios, cuja realização só é possível pelo militar, é que são alcançados pela jurisdição militar, e não cabe ao legislador ampliar o escopo da Justiça Militar".

IV - ADI 5901

Existem duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) que questionam a constitucionalidade da lei 13.491/17, ambas distribuídas para o ministro Gilmar Mendes, ainda sem data para julgamento.

Em uma delas (ADI 5901), o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) alega que a ampliação do alcance da Justiça Militar viola a competência do Tribunal do Júri e fere tratados internacionais de direitos humanos. A Procuradoria Geral da República (PGR) concorda e acrescenta que a lei criou uma espécie de “foro privilegiado” dos militares das Forças Armadas em relação aos policiais militares estaduais, que continuam sujeitos ao júri popular.

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5901, no Supremo Tribunal Federal (STF), para questionar dispositivos do Código Penal Militar, inseridos pela Lei 13.491/2017, que preveem hipóteses de competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis.

Para o PSOL, o artigo parágrafo 2º, do Código Penal Militar, inserido pela Lei 13.491/2017, deixa de preservar a autoridade do Tribunal do Júri, fere o princípio da igualdade perante a lei (privilégio de uma categoria ou segmento social em detrimento da coletividade) e relativiza o devido processo legal. O partido afirma que a ação se baseia também em normas internacionais de direitos humanos.

“A Constituição Federal de 1988, em seu artigo , inciso XXXVIII, reconhece a instituição do Júri como garantia fundamental, assegurando-lhe ‘a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida’ alínea ‘d’).

Tratando-se, portanto, de competência constitucionalmente estabelecida, apenas o próprio texto constitucional pode excepcioná-la. Jamais uma norma infraconstitucional”, afirma o PSOL.

Na ADI, a legenda afirma que o texto constitucional não dá margem para outra interpretação ao determinar, sem qualquer exceção, que “a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida” é do Tribunal do Júri. “Dessa forma, a Lei 13.491/2017 é inconstitucional quando modifica o parágrafo 2º e incisos do artigo  do Decreto-Lei 1.001/1969 [Código Penal Militar] determinando que os crimes dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil serão da competência da Justiça Militar da União”, ressalta o partido.

Como disse Cícero Robson C. Neves(Cada Rei no seu baralho, Ius Navigandi):

“As divergências não se encerraram, ao contrário, ficaram mais evidentes e foram acentuadas diante do recente caso de homicídio, em tese praticado (processo ainda está em curso), por militares do Exército Brasileiro contra dois cidadãos, em Guadalupe, Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro.

Por conta desse episódio, entendendo que a alteração promovida pela Lei nº 13.491/2017 é inconstitucional, a 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, na 46ª Reunião ordinária de coordenação, realizada em 9 de abril do corrente ano, expediu a Orientação nº 7, nos seguintes termos:

Considerando a inconstitucionalidade da Lei nº 13.491/2017, que transferiu para Justiça Militar a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militar das Forças Armadas contra civil, inconstitucionalidade essa constatada em parecer da Procuradora-Geral da República na ADI 5901, a 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal orienta os membros titulares de ofícios a ela vinculados que cumpram a Constituição, impulsionando a correspondente persecução penal.

Igualmente, na 47ª Sessão Ordinária, de 14 de maio de 2019, aprovou o Enunciado 8, com o seguinte teor:

O Ministério Público Federal possui atribuição para a persecução penal dos crimes de tortura e maus-tratos cometidos contra civis por militares da União, no exercício da função”. (Procedimento Administrativo nº 1.00.000.009623/2019-19, aprovação deliberada na 47ª Sessão Ordinária de Coordenação, em 14/05/2019.

Novamente, em adequada resposta, o Ministério Público Militar, agora por sua Câmara de Coordenação e Revisão, emitiu dois enunciados, por ocasião da 473ª Sessão Ordinária, de 23 de maio de 2019:

ENUNCIADO 20:

Não tendo havido a prolação de decisão, em caráter liminar, nem o proferimento de decisão definitiva de mérito, pelo Supremo Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade que versa sobre a (in)constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.491/2017, os crimes dolosos contra a vida de civis, praticados por militares das Forças Armadas nos contextos listados nos incisos do § 2º do art. 9º do Código Penal Militar, são considerados crimes militares, de competência absoluta da Justiça Militar da União, cuja persecução penal é de atribuição privativa do Ministério Público Militar.

ENUNCIADO 21:

Não tendo havido a prolação de decisão, em caráter liminar, nem o proferimento de decisão definitiva de mérito, pelo Supremo Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade que versa sobre a (in)constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.491/2017, os delitos previstos na Legislação Penal comum, inclusive os de tortura e maus tratos contra civis, quando praticados por militares das Forças Armadas nas hipóteses constantes das alíneas ‘b’, ‘c’ e ‘d’ do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, são considerados crimes militares, de competência absoluta da Justiça Militar da União, cuja persecução penal é de atribuição privativa do Ministério Público Militar.

Não se pode deixar de mencionar, ainda, no Conselho Nacional do Ministério Público, o Processo n. 1.00348/2019-8-79, em que o Procurador-Geral de Justiça Militar (PGJM) manejou Reclamação para a Preservação da Autonomia do Ministério Público, no mesmo caso de Guadalupe, Rio de Janeiro/RJ.”.

Por sua vez, André Nicolitt(Lei 13.491/2017 e a ampliação da competência da Justiça Federal – O veto presidencial a serviço da necropolítica, in Migalhas, 1º de fevereiro de 2021), bem acentuou:

“O que se nota na sociedade brasileira contemporânea é uma crescente militarização da vida, da política, destacadamente da segurança pública. O uso sistemático de ações militares no âmbito da segurança pública vem sendo visto com naturalidade, submetido à normatização em pleno Estado de Direito em tempos de paz. O movimento de ampliação da competência da justiça militar quiçá tenha sido um dos primeiros movimentos de consolidação (pavimentação) jurídica da necropolítica. A questão se insere no debate eleitoral de 2018 quando afloraram bandeiras por métodos de "abate" ovid-19.

Isto pode ser demonstrado através dos seguintes documentos:

Cumpre ressaltar que as Forças Armadas encontram-se, cada vez mais, presentes no cenário nacional atuando junto à sociedade, sobretudo em operações de garantia da lei e da ordem. Acerca de tal papel, vale citar algumas atuações mais recentes, tais como, a ocorrida na ocasião da greve da Polícia Militar da Bahia, na qual os militares das Forças Armadas fizeram o papel da polícia militar daquele Estado; a ocupação do Morro do Alemão, no Estado do Rio de Janeiro, em que as Forças Armadas se fizeram presentes por longos meses; e, por fim, a atuação no Complexo da Maré, que teve início em abril de 2014. Dessa forma, estando cada vez mais recorrente a atuação do militar em tais operações, nas quais, inclusive, ele se encontra mais exposto à prática da conduta delituosa em questão, nada mais correto do que buscar-se deixar de forma clarividente o seu amparo no projeto de lei. Por fim, sugere-se substituir a expressão ação militar por atividade de natureza militar, por ser mais usual20.

No mesmo tom, ouvimos as razões do veto ao art. 2º do Projeto de lei 5768/2016, convertido na lei 13.491/2017:

"As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição".

O território desta guerra que se quer oficializar pelo direito está bem descrito nas justificativas do "Pacote Anticrime" do Ministério da Justiça conduzido pelo então Ministro Sérgio Moro(BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI 882/2019. JUSTIFICATIVA)

“A realidade brasileira atual, principalmente em zonas conflagradas, mostra-se totalmente diversa da existente quando da promulgação do Código Penal, em 1940. O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes.”

No entanto correta a conclusão de André Nicolitt(obra citada) que trago à colação:

“São inúmeros os Tratados Internacionais de Direitos Humanos,29 aos quais o Brasil está vinculado e que, expressamente, excluem a possibilidade da justiça militar julgar crimes de militares cometidos contra civis, como é o caso da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, concluída em Belém, em 10 de junho de 1994 e promulgada pelo decreto 8.766/2016, ao excluir em seu artigo IX, expressamente, a jurisdição militar em casos desta natureza.

Na doutrina(ABREU. Marcos Araguari de. A ampliação da competência das justiças militares pela lei ordinária federal 13.491, de 13 de outubro de 2017, e a incômoda questão do "nós" contra os "outros". Boletim do IBCCrim, Ano 26, nº 307, Junho/2018.) afirma-se que a lei 13.491/17, ao ampliar a competência da Justiça Militar, modificando a disciplina dos crimes militares em tempo de paz, introduziu uma normatização que contém claríssimos privilégios na contramão com o processo de transparência e democratização no qual vinha o Brasil.

A ideia de "questão militar", hierarquia e disciplina, dirigida a julgamento de civis em tempos de paz é uma subversão da função da justiça militar com o escopo se servir aos anseios de militarização da vida. Ademais, tais valores nada se relacionam com a necessária proteção contra violações de direitos humanos. “

Em resumo, tem-se que o caso concreto trazido à colação serve de advertência para os estudiosos e operadores do direito no sentido da efetividade daquela Lei mencionada que transferiu a competência para a Justiça Especial Militar com relação aos delitos ali mencionados. Em tempos de paz, a competência para instruir e julgar essas condutas deve ser da Justiça Comum.  

Além disso o Estado brasileiro está sujeito a diversos tratados de direitos humanos que determinam que excluem a possibilidade da justiça militar julgar crimes de militares cometidos contra civis. Esse espera-se ser o norte na apreciação sobre o tema.

 

 

 

  

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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