Direito de Representação - a desconsideração das relações afetivas familiares e suas consequências

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O artigo trata do aumento da importância do afeto na caracterização da família e de como o direito à representação sucessória não acompanhou a tendência, trazendo sugestões para solucionar o problema.

INTRODUÇÃO

 

Popularmente se afirma que um indivíduo capaz pode usufruir de seu patrimônio como bem entender, o que é verdade no caso de consumo, compra e venda, cessões temporárias onerosas ou não e afins, respeitando sempre aos direitos fundamentais da nação e aos direitos civis, dentre os quais está o Direito das Sucessões. Portanto, na prática, a margem de ação dos cidadãos em relação a seus bens é muito menor.

Conforme o artigo 1784 do Código Civil, o falecimento de um indivíduo gera a necessidade de transmissão do patrimônio deste aos seus herdeiros, sejam os que necessariamente possuem o direito de herdá-lo ou os que foram contemplados em disposição de última vontade do falecido. Infelizmente é comum que essa transmissão seja turbulenta, uma vez que os herdeiros dificilmente entram em acordo quanto ao que cada um deve receber. Não é à toa que inventários levam anos para ser concluídos, e ainda nem foram mencionadas a atual morosidade da Justiça e a procrastinação por parte dos herdeiros para iniciar os procedimentos de sucessão.

À luz dos artigos 1851 e seguintes do Código Civil, um herdeiro falecido previamente ou excluído da sucessão por incorrer nas hipóteses previstas no artigo 1814 da mencionada Lei, ou ainda deserdado pelo próprio autor da herança nos termos dos artigos 1961 e seguintes, pode ser representado por seus descendentes nas sucessões da quais participaria. Entretanto a legislação atual não impede a representação quando a convivência entre o representante do herdeiro pré-morto e o autor da herança é conturbada ou nem acontece, algo peculiar num Estado que tanto valoriza o afeto nas relações familiares.

Deste modo, o presente trabalho salienta e questiona a pouca atenção dada ao convívio familiar quando se trata de representação sucessória, ou seja, evidencia a falta de sensibilidade do sistema jurídico brasileiro – com poucas e muito específicas exceções – às relações afetivas entre o autor da herança e o representante de ascendente seu na sucessão. Obviamente, busca-se contribuir para o aprimoramento da ordem jurídica nacional e da aplicação de seus institutos e dispositivos na sociedade.

 

1. DA IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

 

A Constituição Federal, em seu artigo 226, atribui à família o caráter de "base da sociedade" e compromete o Estado com sua proteção de forma especial. Inclusive, é conferida ao casal pelo § 7º do artigo mencionado a autonomia para o planejamento familiar, com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Essa autonomia tem permitido uma verdadeira primavera na estrutura familiar brasileira, não mais restrita por religião ou tradição, muito menos tendo como principal motivo pessoal para seu estabelecimento a conveniência financeira ou o prestígio. Como bem aponta Rolf Madaleno (2018, p. 46):

"A nova família foi desencarnada do seu precedente elemento biológico para ceder lugar aos vínculos psicológicos do afeto, consciente a sociedade que, na formação da pessoa humana, os valores como a educação, o afeto e a comunicação contígua guardam muito mais importância do que o elo da hereditariedade. [...]

Por isso não é admissível preordenar espécies estanques de unidade familiar e destiná-las como emissárias únicas da proteção estatal, quando a sociedade claramente acolhe outros dignificantes modelos de núcleos familiares e demonstra que aquelas previamente taxadas não espelham todo o alicerce social da família brasileira."

Assim, em que pese os modelos familiares matrimonial, informal (o da união estável) e "mosaico" – quando há filhos advindos de relacionamentos anteriores – ainda serem notoriamente os mais comuns no Brasil, ganham cada vez mais exemplos e reconhecimento as famílias monoparental, anaparental (sem parentesco em linha reta), homoafetiva e poliafetiva.

Quanto à proteção ativa da família por parte do Estado, com a qual este foi comprometido, o próprio § 7º assim dispõe (e o Código Civil, em seu artigo 1565, § 2º, reitera quase perfeitamente):

"[...], competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito [de planejar livremente a vida familiar], vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas."

Complementando, o § 8º incumbe ao Estado o dever de assegurar a assistência a cada membro da família e criar mecanismos para coibir a violência no seio familiar. Pouco antes, o artigo 203, I, traz como um dos objetivos da assistência social a proteção à família, assim como à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.

Outro registro da importância conferida à família e da sua proteção está no artigo 694, "caput", do Código de Processo Civil, que assim estabelece:

"Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação."

De igual modo, mesmo ao lidar indiretamente com casos de abuso e alienação parental, vindo a tomar o depoimento de vítima incapaz, o Juiz de Direito deve estar acompanhado por especialista (v. artigo 699 da mencionada Lei), visando melhor compreender e suprir as necessidades da vítima.

Ainda no Processo Civil, igualmente digna de nota é a atuação do Ministério Público, enquanto fiscal do cumprimento da lei, nas ações de família, para proteger os direitos dos incapazes – crianças, adolescentes e interditos – e de vítimas de violência doméstica e familiar, com fundamento no artigo 698 do CPC. A propósito, o artigo 1048, III, do Código prioriza o trâmite das ações em que figurarem como partes as vítimas de violência doméstica e familiar.

A proteção à família estende-se à iniciativa privada, de modo que, e.g., as produções e programações das emissoras de rádio e televisão devem respeitar aos valores éticos e sociais da família, conforme o artigo 221, IV, da Constituição Federal.

Como mais uma forma extensiva à iniciativa privada de proteção à família, o Código de Processo Civil confere impenhorabilidade, em seu artigo 833, IV, entre outras, às quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família e, no inciso VIII, à pequena propriedade rural trabalhada pela família.

Obviamente, também são conferidos deveres à família, não apenas prerrogativas – o artigo 227, "caput", da Carta Magna estabelece o dever de cuidar da juventude, nos seguintes termos:

"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

Nesse sentido, foi consolidado pelo artigo 229 o dever dos familiares de cuidar uns dos outros. Mais especificamente, por força do artigo em tela ficam os pais encarregados de auxiliar, criar e educar os filhos que ainda não atingiram a maioridade, enquanto os que o fizeram devem amparar seus pais nos momentos de necessidade e enfermidade, bem como na velhice. O não-cumprimento desse dever é crime contra a assistência familiar, cujas condutas específicas – abandono material ou intelectual, ou ainda a entrega do filho menor de 18 anos de idade a pessoa inidônea – são delineadas entre os artigos 244 e 247 do Código Penal.

Por oportuno, dispõe o artigo 1568 do Código Civil:

"Art. 1.568. Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial."

Roberto Senise Lisboa (2012, p. 25), em suma, Promotor de Justiça no Estado de São Paulo e livre-docente em Direito Civil pela USP, adverte ainda acerca dos alimentos devidos ao jovem:

"A maioridade civil do credor de alimentos não autoriza, por si só, a extinção da obrigação. Embora seja correta a afirmação de que se extinguiu o poder familiar sobre a pessoa que atinge os 18 anos de idade, caso o binômio necessidade e possibilidade se mantenha, a obrigação alimentar não deverá deixar de ser exigida.

O STJ estabelece a presunção relativa de permanência da necessidade dos filhos receberem a pensão alimentícia mesmo após a maioridade, admitindo-se prova em sentido contrário (3ª Turma, REsp 1218510-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.9.2011, DJ 3.10.2011).

Seguindo referida linha de raciocínio, é comum a manutenção da obrigação alimentar enquanto o filho estiver frequentando curso de nível superior ou técnico, que representa o encerramento do ciclo de formação profissional."

Por sua vez, o artigo 230, "caput", da Constituição Federal atribui à família, ao Estado e à sociedade o dever de amparar os idosos, assegurar sua participação social, defender sua dignidade e seu bem-estar e lhes garantir o direito à vida. Sobre os alimentos devidos aos idosos, Lisboa (2012, p. 25) indica que "o devedor será o descendente imediato ou de 1º grau e, na impossibilidade dele, o de 2º grau; e assim por diante", podendo excepcionalmente ser parente de segundo grau em linha colateral – irmão, ainda que unilateral (REsp nº 1170224-SE, 2010).

É possível encontrar na ordem jurídica brasileira muitas outras normas de proteção direta ou indireta à família, v.g., leis penais especiais, os Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso e normas de seguridade social, estando firme e amplamente comprovado o quão valorosa é a família para o Direito Brasileiro.

 

2. DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO

 

O falecimento de um indivíduo acarreta a transmissão de seu patrimônio aos seus herdeiros, sejam-no por direito próprio ou por haverem sido contemplados em disposição de última vontade (artigo 1784 do Código Civil). Contudo, há a possibilidade de um desses herdeiros vir a falecer antes, de modo que o ordenamento jurídico brasileiro teve de regulamentar o procedimento a ser seguido nesse caso.

Nos termos do artigo 1851 do Código Civil, o direito de representação incide sobre as situações nas quais o representado sucederia se estivesse vivo, necessariamente a título de sucessão legítima. Preconiza o artigo seguinte que esse direito não pode ser reivindicado por ascendentes do herdeiro falecido, apenas por descendentes. Já o artigo 1853 estabelece que sobrinhos poderão representar somente quando concorrerem com irmãos do herdeiro finado.

Fábio Abrahão Bucci (2019) tece os seguintes comentários acerca da representação por parentes em linha colateral:

"Sobre os colaterais, os arts. 1840, 1841, 1843 caput e 1851 ss, destacam que os mais próximos tem preferência sobre os demais, com exceção no caso de direito de representação para filho de irmão quase morto. No caso dos irmãos germanos ou bilaterais e irmãos unilaterais, os últimos tem direito à metade do quinhão dos primeiros. Tio e sobrinho são colaterais de 3º grau, caso não haja nenhum outro herdeiro, a herança deve ser dividida entre eles. No entanto, o direito sucessório da preferência ao sobrinho em relação ao tio na sucessão, tendo em vista que o sobrinho pode entrar no lugar do irmão pré-morto, que é um colateral de 2º grau, enquanto o tio, por ser ascendente, não possui direito de representação, se mantendo no 3º grau."

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Todavia, o Código Civil apresenta mais uma hipótese de representação sucessória; para compreendê-la, é necessário conhecer previamente as formas de afastamento de um herdeiro legítimo da sucessão: a exclusão por indignidade e a deserdação.

Delineada entre os artigos 1814 e 1818 do Código, a exclusão da sucessão é uma sanção civil imposta sobre os herdeiros que desrespeitam deliberadamente ao autor da herança ou a ente querido deste e até mesmo atentam contra sua vida, o que obviamente os torna indignos de herdar. Mais precisamente, conforme o artigo 1814:

"Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;

III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade."

É importante ressaltar que a exclusão deve ser declarada por sentença (v. artigo 1815 da mencionada Lei), portanto, obviamente, deve ser pleiteada em juízo, e os legitimados para tal são os outros herdeiros, no prazo de quatro (4) anos a partir do falecimento do autor da herança, à letra do § 1º do artigo. Nota-se que a exclusão do herdeiro não conta diretamente com o interesse do próprio autor da herança, que, embora vítima das condutas elencadas, poderia nem mesmo ter a intenção de excluir. Aliás, ele poderia garantir ao ofensor o direito de herdar normalmente, mediante expressa reabilitação em testamento ou outro ato autêntico (artigo 1818) ou, pelo menos, como prevê o parágrafo único deste artigo, contemplá-lo em testamento após a ocorrência da causa de exclusão.

O § 2º do artigo 1815 confere legitimidade também ao Ministério Público para propor a ação declaratória de indignidade perante o Poder Judiciário quando a suposta causa desta envolver crime contra a vida do autor da herança ou de consorte, companheiro, ascendente ou descendente deste (inciso I do artigo 1814). Denise Bartel Bortolini (2018) fez a seguinte recapitulação pouco depois da introdução de ambos os parágrafos no texto do artigo 1815, por força da Lei nº 13532/17:

"Até então, tinha-se a doutrina majoritária, que defendia o entendimento de que o Promotor de Justiça tem legitimidade para propor esta ação de indignidade, desde que presente o interesse público. Nesse sentido:

Enunciado 116 – Jornada de Direito Civil: O Ministério Público, por força do art. 1.815, desde que presente o interesse público, tem legitimidade para promover ação visando à declaração de indignidade de herdeiro ou legatário."

Esclarece Bucci (2019) que "os efeitos da sentença declaratória de indignidade retroagem (ex tunc) à data da abertura da sucessão, considerando o indigno como pré-morto ao de cujus". Como consequência, além de excluído da sucessão, o indivíduo "é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança tiver percebido", cabendo reparação civil pelas eventuais despesas de conservação daqueles (artigo 1817, parágrafo único, do Código). Valerá a administração da herança eventualmente praticada pelo herdeiro antes da exclusão, se nos termos legais, assim como as alienações de bens que integram o Espólio a terceiros de boa-fé, a título oneroso, reservado aos herdeiros prejudicados o direito de exigir do excluído compensação por perdas e danos, conforme o "caput" do artigo.

Inclusive, o excluído por indignidade não poderá usufruir, nem administrar ou herdar os bens que couberem aos seus próprios herdeiros na sucessão da qual for privado, com base no parágrafo único do artigo 1816.

Por sua vez, a deserdação consiste na privação de herdeiros necessários – neste caso, apenas descendentes e ascendentes – da legítima, a metade a eles reservada dos bens da herança (v. artigo 1961, primeira parte, c/c artigos 1845 e 1846 do Código Civil), por meio de disposição de última vontade do falecido, com indicação da causa, como prevê o artigo 1964. Mais precisamente, a deserdação deve ser realizada através de testamento, por devida interpretação restritiva do artigo; aliás, essa interpretação impede que seja deserdado o cônjuge ou companheiro do autor da herança, uma vez que o texto legal simplesmente não contém a possibilidade.

A causa informada deverá ser comprovada em ação judicial, proposta no foro no qual hão de tramitar o inventário e a partilha da herança, seguindo o Procedimento Comum (artigos 318 e seguintes do Código de Processo Civil). Se o inventário já tiver sido ajuizado, deverá ser suspenso até o julgamento da ação declaratória de veracidade da causa de deserdação, ficando os bens que integram o Espólio sob a posse do inventariante, do testamenteiro ou de quem for nomeado depositário pelo Juiz de Direito a quem for dirigida a ação.

Sobre a legitimidade das partes na ação mencionada, Fernando Antonio da Silva Cartaxo (2009) faz as seguintes considerações:

"Legitimidade ativa - É legitimado o herdeiro instituído em substituição ao deserdado ou a quem a deserdação aproveitar.

Se o herdeiro instituído ou outrem a quem a deserdação aproveite não aforarem a ação que lhes compete para a comprovação da causa da deserdação contida na cédula testamentária, o deserdado, por ação própria (obrigação de fato), poderá demandá-los para que provem o fundamento da deserdação.

Legitimidade passiva - É legitimado, para o polo passivo da demanda, o deserdado.

O cônjuge ou companheiro do autor da herança não podem ser demandados, por falta de previsão legal. O Código Civil dispõe, tão só, sobre as causas da deserdação entre ascendentes e descendentes. Constituindo a deserdação sanção civil, a interpretação é restritiva."

A causa da deserdação pode ser, ao teor dos artigos 1962 e 1963 do diploma legal citado, ofensa física, injúria grave, relação ilícita com o cônjuge ou o companheiro do ascendente/descendente, ora autor da herança, desamparo em caso de alienação mental ou grave enfermidade e ainda uma das já mencionadas hipóteses de exclusão da sucessão, trazidas pelo artigo 1814. Obviamente, a causa deve anteceder a sua própria menção, o que significa que o autor da herança não pode fundamentar uma deserdação em fatos futuros e incertos.

Especificamente sobre a injúria grave, discorre a Advogada, pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil, Bruna Pessoa Guerra (2011):

"Já a injúria grave ocorre quando o herdeiro a pratica nos termos tipificados pelo Código Penal, contra o autor da herança, entretanto, o legislador sugere que sejam declarações graves. Estas manifestações serão analisadas pelo Juiz, que levará em conta o calor da emoção dos envolvidos e a personalidade do de cujus. Outrossim, é razoável observar que não há a necessidade de a injúria ser praticada em meio a uma discussão, pois muitas vezes o herdeiro pode manifestar o seu pensamento injurioso sem a presença do autor da herança, acusando-o em meio à sociedade."

Explanadas ambas as formas de afastamento de herdeiros legítimos da sucessão, revela-se a outra hipótese de direito de representação na pessoalidade dos efeitos da exclusão por indignidade e da deserdação. Nas palavras de Lisboa (2012, p. 161):

"Se a pessoa é indigna ou deserdada, deixa de ser herdeira. Caberia a sua representação? A resposta é afirmativa em ambas as situações. Na indignidade, porque a pena civil é judicialmente declarada como efeito pessoal que não deve se estender em desfavor de quem pode vir a representar o excluído, evitando-se desse modo uma situação injusta para quem não cometeu o ato ilícito.

Mesmo na deserdação cabe o direito de representação. O que se veda é o direito de representação na sucessão testamentária, impedindo-se assim que o herdeiro testamentário excluído tenha o seu direito sucessório representado pela sua descendência, em evidente prejuízo à legítima e, por que não dizer, à própria vontade do testador."

Estes são, portanto, os meios pelos quais um indivíduo pode ser chamado a herdar no lugar de ascendente seu. Digno de nota que, ao teor do artigo 1856 do Código Civil, "o renunciante à herança de uma pessoa poderá representá-la na sucessão de outra", ou seja, v.g., ainda que um indivíduo renuncie ao seu quinhão no Espólio de seu pai, poderá representá-lo na sucessão de seu avô paterno, se este falecer depois de seu filho, deserdá-lo ou for vítima de ato de indignidade dele e não o reabilitar ou contemplar em testamento.

 

3. DA REPRESENTAÇÃO EM DETRIMENTO DO HISTÓRICO AFETIVO FAMILIAR

 

O direito de representação na sucessão existe, por um lado, para favorecer herdeiros mais jovens, e por outro, como consequência de somente fazer jus a receber sanção punitiva quem comete ato ilícito. Neste caso, a representação é vista como verdadeira medida de justiça, em razão de não permitir que o severo abalo nas relações afetivas entre autor da herança e excluído/deserdado obste a transmissão patrimonial aos descendentes deste, punindo-os pelo que não fizeram.

Contudo, percebe-se que o Código Civil, zeloso pela pessoalidade das medidas de afastamento da herança, não leva em consideração a situação afetiva entre o autor dela e o herdeiro em favor do qual verte o direito de representação. Nos termos atuais do diploma legal, nada impede, por exemplo, que o representante de herdeiro pré-morto herde sem sequer haver convivido com o autor da herança ou mesmo tido contato com ele. Tendo em vista a nova concepção de família, com variedade muito maior de estruturas e, principalmente, pautada no afeto, soa, no mínimo, estranho que a representação sucessória não possua entre os seus parâmetros e requisitos a existência de relacionamento afetivo salutar.

Isso se deve ao fato de o Código Civil vigente, que data de 2002, pouco haver inovado no que tange a exclusão de herdeiros em relação ao Código Civil anterior, de 1916, carregado da visão de mundo do século XIX e criado para ser aplicado a uma sociedade brasileira muito diferente da atual, como afirma Carlos Eduardo Minozzo Poletto (2013, p. 28).

Aliás, quanto à deserdação, percebe-se que as justificativas trazidas pelo Código Civil de 1916 para tal remetem, salvo em relação às expressões de época, ao texto das Ordenações Filipinas, embora estas trouxessem ainda outras justificativas, incluindo razões religiosas. Cumpre recordar que essas Ordenações foram editadas no fim do século XVI, no período em que vigorou a União Ibérica, ou seja, o instituto da deserdação no Direito Brasileiro não sofreu muitas alterações nos últimos 400 anos.

O Poder Judiciário vem mostrando muito respeito à legislação sucessória tal qual está, sem apresentar interpretações especiais ou entendimentos adicionais dos dispositivos mencionados, ao menos não no sentido de impedir a representação ante a conturbada ou inexistente relação afetiva entre o representante e o autor da herança. Ora, inventários já são procedimentos complexos, extensos, sujeitos a complicações como a demora para sua proposição, a eventual dificuldade para reunir toda a documentação necessária e o falecimento de herdeiros ao longo do trâmite processual; a cautela para evitar nulidades e prejuízos aos envolvidos tem feito os artigos 610 e seguintes do Código de Processo Civil serem seguidos à risca, não abrindo espaço para discutir a problemática nos casos concretos.

No entanto, o respeito do Judiciário brasileiro à legislação também pode ser observado nas transformações do Direito de Família, de modo que as novas concepções e possibilidades trazidas pela Constituição Federal têm sido devidamente protegidas no âmbito forense, como mostra o seguinte acórdão, da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

"EMENTA: DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INTERESSE PROCESSUAL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO AFASTADA. Se a pretensão inicial é a do reconhecimento da paternidade sociafetiva, é evidente o interesse processual. 'O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem' (art. 1.593, CC). Em que pese não haver dispositivo a reconhecer a filiação socioafetiva, é inegável o seu acolhimento baseado na posse do estado de filho, já admitida na doutrina e na jurisprudência, e que é, sem dúvida, um dos pilares da constitucionalização do direito de família, na medida em que alcança novas relações familiares com fundamento no afeto e no rompimento do vínculo biológico. Pedido juridicamente impossível é aquele que a lei, mesmo em tese, não prevê, como o divórcio de pessoa solteira; ou o inventário de pessoa viva."  (TJMG, 2014).

Mostra-se necessária uma atualização do direito de representação e dos meios de excluir herdeiros que eventualmente não fazem por merecer seu quinhão, não meramente por inovar, e sim para que o Direito das Sucessões esteja adequado à sociedade à qual é aplicado e assim se mantenha.

 

4. CONSEQUÊNCIAS E POSSÍVEIS SOLUÇÕES

 

Como já mencionado, a inobservância do afeto familiar na representação sucessória permite que, v.g., um indivíduo que mal conviveu com o autor da herança herde o que ascendente seu poderia herdar se vivo estivesse. Nos casos de exclusão da sucessão, esse fato pode fazer com que os herdeiros não-excluídos se considerem mais dignos da herança do que o representante do herdeiro excluído, mesmo que sua conduta não enseje exclusão por indignidade ou deserdação.

Embora o herdeiro excluído não possa desfrutar do que herdaria, como estabelece o artigo 1816, parágrafo único, do Código Civil, o direito de representação permite que sua descendência seja tão beneficiada com a sucessão quanto seria originalmente, à luz do "caput" do artigo. A proporção dos quinhões de cada herdeiro quando há representação também é semelhante à original, de modo que a exclusão da sucessão pode não gerar benefício algum para os herdeiros não-excluídos.

Além do mais, como se já não bastasse o desgaste emocional causado à família pelas atitudes de um de seus integrantes, ao ponto de este ser privado de seu direito a herdar, sua representação por parte de um descendente seu traz novamente à tona as lembranças desse desgaste quando não há vínculo afetivo saudável entre o representante do excluído e os herdeiros da categoria deste e/ou o autor da herança. Quando há afeto entre os familiares e um zela pelo bem do outro, eles se mostram merecedores de eventualmente herdar entre si. Nas palavras de Rolf Madaleno (2018, p. 647):

"O direito hereditário também está vinculado aos fortes sentimentos de família, aos vínculos do afeto e da convivência, uma vez que, em contrário, não faria sentido afastar da herança, por exemplo, o cônjuge faticamente separado, já que não há mais casamento quando ausente comunhão plena de vida (CC, art. 1.511)."

Entretanto, a solução para garantir que o representante faça jus ao quinhão obtido como os outros herdeiros não seria simplesmente mudar a forma de interpretar o Código Civil, já que ele restringe claramente as hipóteses de representação, exclusão por indignidade e deserdação, assim como seus efeitos. O texto legal referente ao Direito das Sucessões carece de aprimoramento, com a nítida inclusão do bom relacionamento afetivo como requisito para herdar.

Outra solução cabível seria permitir que o autor da herança, em caso de convivência turbulenta ou não-convivência com um representante de herdeiro pré-morto, deserdado ou supostamente indigno, obstasse a representação mediante clara e fundamentada objeção em testamento ou, no mínimo, reduzisse por meio de disposição testamentária o quinhão disponível para o representante. Seria uma solução mais moderada no tocante a alterar a redação da Lei, exigindo apenas alguns acréscimos e leves ajustes, e lançaria mão do testamento como um remédio jurídico. Ainda assim, esses ajustes formais seriam necessários, não sendo possível utilizar essa saída desde já.

Uma terceira saída, mais severa, porém que ainda conserva grandemente o Livro V do Código Civil, seria extinguir a possibilidade de representação nos casos de exclusão por indignidade e deserdação, por questão de lógica: excluído ou deserdado o indivíduo, ele perde seu espaço na sucessão, perde seu direito de herdar. Ora, é impossível representar um direito que não existe ou deixou de existir, portanto não seria logicamente cabível a representação de quem foi afastado da sucessão. Infelizmente, também seriam afetados os descendentes de excluídos/deserdados que convivessem bem com os autores de heranças. Relembrando, hoje a representação é possível, no caso da exclusão por indignidade, por expressa disposição do artigo 1816 do Código, e no caso da deserdação, com base em interpretação restritiva dos artigos 1961 a 1965.

Dentre as três sugestões apontadas, mostra-se mais recomendável, portanto, a atualização legislativa, que seria eficaz na resolução do problema em tela e menos desgastante e injusto para os envolvidos, além de adaptar o afastamento de herdeiros à nova realidade social brasileira.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É notório que a sociedade brasileira sofreu muitas transformações no século XX em razão do progresso tecnocientífico, das relações políticas internacionais e da influência de movimentos sociais de nível global, como o feminismo, a luta contra o racismo e a afirmação de orientações sexuais alternativas. A imigração de famílias de diversos países também contribuiu grandemente para a substituição do padrão social e religioso antes existente no Brasil por um verdadeiro mosaico, não apenas de faces, cores, temperos e melodias, mas também de opiniões e ideais.

Nessa nova sociedade repleta de conceitos, procedimentos, serviços e bens inéditos, o que já existia ganhou novo significado e molde. A instituição familiar, guardada pela ordem jurídica desde suas raízes constitucionais, tornou-se mais flexível, e seu fundamento biológico e patrimonial deu lugar ao afeto. "A noção moderna de família tem sua orientação na felicidade, e essa não é marcada pelos direitos e interesses patrimoniais, mas sim pelo convívio, pelo afeto desenvolvido na vida em comum, como núcleo prevalente das relações familiares", como afirma Rolf Madaleno (2018, p. 115), reportando-se ao Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin (1996, pp. 110-111).  

Contudo, percebe-se que o Direito das Sucessões, mais precisamente o Direito de Representação e os institutos da Deserdação e da Exclusão por Indignidade, não receberam as devidas atualizações e adaptações à nova realidade social. O viés patrimonial por meio do qual eles vêm sendo analisados e utilizados destoa da nova concepção de família; em que pese a sucessão possuir caráter patrimonial, é inegável que ela, na prática, é influenciada pelas relações afetivas familiares, pelo convívio entre os integrantes da família, pelo histórico familiar. Esse é o lado humano da sucessão.

Deste modo, é nítida a necessidade de ser empreendida uma revisão dos dispositivos jurídicos mencionados para garantir que a sucessão não represente um obstáculo à harmonia familiar ou mesmo uma ofensa à dignidade humana.

 

REFERÊNCIAS

 

BORTOLINI, Denise B. Herdeiro indigno e legitimidade para promover ação. 2018. Disponível em <https://phmp.com.br/artigos/herdeiro-indigno-e-legitimidade-para-promover-acao/>. Acesso em 04 nov. 2020.

 

BRASIL. Código Civil, Lei nº 10406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em 28 out. 2020.

 

BRASIL. Código de Processo Civil, Lei nº 13105, de 16 de março de 2015. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 30 out. 2020.

 

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Sobre o autor
Kaleb Henrique de Oliveira Bernardes

Bacharel em Direito pela Faculdade São Lourenço, vinculada à União das Instituições de Serviços, Ensino e Pesquisa (Unisepe).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Conteúdo do artigo científico apresentado pelo autor, como Trabalho de Conclusão do Curso de Direito, à Faculdade de São Lourenço, Minas Gerais.

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