A discussão sobre o novo § 5º do art. 171 do Código Penal

13/04/2021 às 10:11
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O artigo discute, à luz da doutrina e da jurisprudência, sobre a aplicação do artigo 171, parágrafo quinto, no direito intertemporal.

Ao interpretar uma mudança introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não conheceu de habeas corpus que buscava a aplicação retroativa da regra do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal para anular o processo que resultou na condenação de um vendedor pelo crime de estelionato.

Para o colegiado, a regra – que exige a representação da vítima como pré-requisito para a ação penal por estelionato – não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar o réu nos processos em curso, pois isso não foi previsto pelo legislador ao alterar a redação do artigo 171 no Pacote Anticrime.

Segundo o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, a Lei 13.964/2019 transformou a natureza da ação penal no crime de estelionato, de pública incondicionada para pública condicionada à representação do ofendido (salvo algumas exceções) – mudança que só pode afetar os processos ainda na fase policial.

De outro modo – ressaltou o relator, citando o jurista Rogério Sanches Cunha –, a representação passaria de condição de procedibilidade da ação penal (condição necessária ao início do processo) para condição de prosseguibilidade (condição que deve ser implementada para o processo já em andamento poder seguir seu curso).

Para o ministro, o entendimento mais acertado é o de que a representação da vítima possa ser exigida retroativamente nos casos que estão em fase de inquérito policial, mas não na hipótese de processo penal já instaurado.

A decisão se deu no bojo do HC 573.093.

No entendimento de Filipe Magliarelli e Victor Campos Fanti (O direito de representação do estelionato na lei anticrime e as consequências práticas para os ofendido - Migalhas), tal regra sobre a necessidade de representação se aplica também quanto às formas equiparadas de estelionato, como disposição de coisa alheia móvel, alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria, defraudação de penhor, fraude na entrega da coisa, fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro e fraude no pagamento por meio de cheque.

Entretanto, não será aplicável a outras fraudes, como duplicata simulada, abuso de incapazes, induzimento à especulação, fraude no comércio, fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações e emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant. Para tais hipóteses, talvez pela existência de maior interesse público na tutela dessas condutas, os fatos serão processados mediante ação penal pública incondicionada.

Observe-se o que se dá em matéria de direito processual intertemporal.

O artigo 2º do Código de Processo Penal prescreve que a lei processual se aplicará imediatamente, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Tal dispositivo está em vigor, aplicando-se a todas as modificações introduzidas pelo Código de Processo Penal de 1941, no que se relaciona a tais matérias. Estamos diante do princípio da aplicação imediata da lei processual, pois passa a valer imediatamente, colhendo processos em pleno desenvolvimento embora não afete atos processuais efetuados sob o pálio da lei anterior. Não se trata de retroatividade.

Lembro, outrossim, o artigo 6º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal), que pode ser aplicada pelo aplicador do direito, assim dita:

Art. 6º As ações penais, em que já se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior.

Ainda trago à colação o artigo 13 do mesmo diploma legal:

Art. 13. A aplicação da lei nova a fato julgado por sentença condenatória irrecorrivel, nos casos previstos no art. 2º e seu parágrafo, do Código Penal, far-se-á mediante despacho do juiz, de ofício, ou a requerimento do condenado ou do Ministério Público.

§ 1º Do despacho caberá recurso, em sentido estrito.

§ 2º O recurso interposto pelo Ministério Público terá efeito suspensivo, no caso de condenação por crime a que a lei anterior comine, no máximo, pena privativa de liberdade, por tempo igual ou superior a oito anos.

A regra é que seja ela aplicada tão logo entre em vigor e, usualmente, quando é editada, nem mesmo vacatio legis possui. É pacífica a doutrina do direito intertemporal no sentido de que as normas sobre organização judiciária e jurisdição se aplicam de forma imediata aos processos em curso.

No caso em tela, trata-se de norma mista.

Dito isto, trago a colação as reflexões de Taipa de Carvalho (Sucessão de leis penais, Coimbra, pág. 219 e 220) quando afirmou que ̈está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material –que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais ̈, advertindo que dentro de uma visão de ̈hermenêutica teológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável. ̈

Corrente mais extensiva, da qual faz parte Gustavo Henrique Badaró (Processo penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 102-103) defende que são normas mistas todas as leis processuais que tenham por conteúdo matéria de direito ou relativa a garantia constitucional, o que engloba aquelas que dispõem sobre condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meios de prova e eficácia probatória, graus de recurso, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena etc.

De acordo com Gustavo Badaró (obra citada), “para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lex gravior. .

Quanto a ação penal, segue-se o princípio da lei mais favorável ao réu. Assim, se determinado delito, à época em que foi praticado, só poderia ser punido mediante ação privada, não poderá, após mudança da legislação, ser punido com ação pública; inversamente, se determinado delito, à época em que foi praticado, poderia ser punido com ação pública, não o poderá mais ser se nova lei exige a ação privada. Tal ilação tem origem em Paul Roubier(Les conflicts de lois dans le temps, tomo II, pág. 641).

Mas, se a ação penal foi recebida há um ato jurídico perfeito, razão pela qual não pode ser objeto de modificação o ato processual.

No passado, lembro o que ocorreu com a entrada em vigor do art. 88 da Lei nº. 9.099/95, estabelecendo-se que, “além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, passaria a depender de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.” A própria lei, no art. 91, cuidou de dizer que, “nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.” Àquela época, entendeu-se – doutrina e jurisprudência – que, relativamente aos processos em curso, seria necessária a juntada aos autos da representação, sendo necessária a notificação da vítima (ou do seu representante legal ou dos seus sucessores) para, no prazo de 30 dias, oferecer a representação, sob pena de decadência; muitas nem sequer foram encontradas, acarretando, em muitos casos, a prescrição, já que de decadência não se poderia falar, posto inexistente dies a quo para a contagem do prazo decadencial).

Por mais que consideremos que, em tese, a nova norma processual pudesse ser alcançada pela retroatividade da lei mais benéfica, é inegável que incontáveis processos seriam descartados pela ausência de representação que antes não era exigida. Abrir-se-ia um caos processual, sem que a nova lei penal levasse a isso. Seria afronto o princípio da razoabilidade.

Mas, a nova Lei do Pacote Anticrime não prescreveu nesse sentido.

Há o entendimento de que a transformação da ação penal nos crimes de estelionato contemplados no art. 171 do Cód. Penal, operada através da Lei n. 13.964/19, malgrado ostente natureza penal, porquanto tem potencial efeito extintivo da punibilidade, não atinge o ato jurídico perfeito e acabado. Distinta interpretação implica na indevida amplificação dos efeitos do novo comando legal, com a subversão da natureza jurídica da representação, convolada que restaria em condição de prosseguibilidade.

O objetivo do réu, que teria cometido o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do CP, seria, pelo princípio da causalidade, anular o processo desde o início por falta de condição objetiva de procedibilidade.

Ora, os atos constitutivos do processo subordinam-se à incidência imediata das novas leis, resguardados os efeitos dos atos anteriormente praticados, de maneira válida.

Sabe-se que a Lei 13.964/19 determina com relação ao artigo 171, do Código Penal:

......

§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - a Administração Pública, direta ou indireta; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - pessoa com deficiência mental; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Percebe-se que, com a introdução do § 5º nesse dispositivo, a natureza da ação penal passou de pública incondicionada para pública condicionada à representação, salvo exceções descritas nos incisos acima destacados.

Sabe-se que, na matéria, Rogério Sanches Cunha escreveu sobre o tema:

"se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 88 da Lei 9.099/1995)"

(Pacote anticrime: Lei 13.964/2019 – Comentários às alterações do CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 65).

Afasta-se, pois, o argumento com relação a retroatividade da lei em comento.

Tal entendimento levaria todas as ações penais em andamento e sem representação no prazo de 6 meses do conhecimento da autoria ao automático arquivamento, em razão da extinção da punibilidade pela decadência do direito de representação. Portanto, o tema posto em debate e sua solução jurídica merecem ser tratados com razoabilidade, para que não levem o tratamento ao crime de estelionato para a contramão do real intento do legislador da lei 13.964/19 – que não foi, por certo, o de impedir o prosseguimento de inquéritos e ações penais.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, naquele julgamento, afirmou que os tribunais superiores ainda não se manifestaram de forma definitiva sobre o assunto, em razão do pouco tempo de vigência da nova lei.

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Ele destacou que, em tese, pelo fato de o instituto da representação criminal ser norma processual mista ou híbrida, a aplicação retroativa seria possível para beneficiar o réu, mas o Pacote Anticrime não trouxe nenhuma disposição expressa sobre essa possibilidade.

Reproduzo parte do voto do Ministro Joaquim Barbosa:“

“De fato, a Lei 9.099 entrou em vigor em 1995 - portanto, há mais de dez anos - contendo normas de natureza penal e normas de natureza processual penal.O art. 90, ora impugnado, determina que as disposições da Lei 9.099/1995 não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Na verdade, segundo a doutrina brasileira, o dispositivo traz uma exceção ao conteúdo da regra geral sobre aplicação imediata da lei processual penal, contida no art.2º do Código de Processo Penal. Nas palavras de Ada Pellegrini Grinover e outros (...)Vale frisar que, em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral não padece de nenhum vício de inconstitucionalidade. É importante observar, contudo, que a Lei 9.099/1995 tem natureza mista: é composta por normas de natureza processual e por normas de conteúdo material de direito penal. Portanto, para a concreta aplicação do princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica (art. 5°, XL da CF/88), não poderia o legislador conferir o mesmo tratamento para todas as normas inseridas na lei dos juizados especiais. Como se sabe, as normas de cunho eminentemente de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL, da Constituição federal. Creio não serem necessárias maiores considerações acerca do conhecido princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica. Observo, ainda, que o Tribunal, ao julgar a questão de ordem no Inq 1.055 (rei. min. Celso de Mello), deixou consignado o entendimento de que as normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiveram a instrução iniciada. Confira-se trecho da ementa do referido julgado:[...]Assim, o art. 90 da Lei 9.099/1995 deve ser interpretado de forma que não abranja as normas de direito penal mais benignas, tal como ficou consignado no julgamento da medida cautelar da presente ação direta. Portanto, para as normas de natureza penal inseridas na lei 9.099/1995, devem ser aplicados os princípios constitucionais que disciplinam a aplicação da lei penal, em especial o contido no art. 5º, XL, da Constituição (retroatividade da norma penal mais benéfica).Nessa linha de entendimento, já por demais consolidada nesta Corte, e também em razão do decurso de longo tempo desde a entrada em vigor da Lei 9.099/1995 e do caráter intertemporal do dispositivo ora atacado, voto pela confirmação da cautelar, para dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995, de modo a impedir que dele se extraiam conclusões conducentes a negar aplicabilidade imediata e retroativa às normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei.”

A 2ª Turma do Supremo foi a primeira a se manifestar, no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Extraordinário n. 1.230.095, Relator o Ministro Gilmar, julgado em agosto de 2020:

“Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. 2. Constitucional, Penal e Processo Penal. 3. Estelionato. Art. 171, caput, do Código Penal. 4. Não aplicação, no caso, do contido no § 5º do art. 171 do Código Penal, acrescentado pela Lei 13.964/2019. 5. Pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário. Ausência de preliminar formal e fundamentada de repercussão geral. Art. 102, § 3º, da Constituição Federal, c/c o art. 1.035, § 2º, do Código de Processo Civil. 6. Autoria e materialidade. Alegações que dizem respeito à legislação infraconstitucional e ao necessário reexame do conjunto fático-probatório dos autos. Óbice da Súmula 279/STF. 7. Tema 660, da sistemática da repercussão geral da questão constitucional. 8. Precedentes. 9. Agravo regimental não provido.”

(ARE 1230095 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/08/2020).

Posteriormente, a 1ª Turma, no HC n. 187.341, Relator Ministro Alexandre de Moraes, em outubro de 2020, examinando de maneira mais explícita o tema, explorou a questão da retroatividade e entendeu que, nesse caso, não deveria ser reconhecida em nome do princípio da segurança jurídica. Confira-se:

“HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA A PARTIR DA LEI N. 13.964/19 ("PACOTE ANTICRIME"). IRRETROATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL. ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1.Excepcionalmente, em face da singularidade da matéria, e de sua relevância, bem como da multiplicidade de habeas corpus sobre o mesmo tema e a necessidade de sua definição pela PRIMEIRA TURMA, fica superada a Súmula 691 e conhecida a presente impetração. 2.Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo 171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público, independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da ação penal”. 3.Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo. 4.A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público. 5.Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem.”

(HC 187341, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 13/10/2020; grifou-se).

Dir-se-ia que a ação penal pública condicionada a representação é mais branda do que a ação penal pública incondicionada.

Por sua vez, no julgamento do HC 583837, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que é possível a aplicação retroativa do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, inserido pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

A decisão da turma foi aplicada no julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que manteve o réu condenado à pena de reclusão por estelionato.

No habeas corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou que a norma deveria retroagir por ser benéfica para o réu e, como não houve representação da vítima, pediu que fosse declarada extinta a punibilidade pela decadência.

Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.

Além disso, no julgamento daquele HC 583837, entendeu o órgão fracionário o que segue:

“Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza do próprio direito fundamental, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão, contrassenso quando delimitamos os destinatários dos direitos fundamentais (SARLET, Ingo Wolfgan. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. pág. 209/226). Além disso, ainda que fosse possível, falar em ato jurídico perfeito nessa hipótese, valendo-se do princípio da proporcionalidade, salvaguardar a retroatividade do § 5º do art. 171 do Código Penal melhor protege a dignidade da pessoa humana.”

Assim, naquele caso, entendeu-se inoponível a proteção do ato jurídico perfeito à retroatividade do mencionado dispositivo.

A matéria continua aberta a discussão, mas lanço a ideia de que é imprudente considerar essa exigência surgida na nova lei, considerar a extinção da punibilidade automática naqueles casos em que a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.

O portal do STJ, em 13 de abril de 20221, informou que a Terceira Seção consolidou o entendimento das turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao definir que a exigência de representação da vítima como pré-requisito para a ação penal por estelionato – introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) – não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar o réu nos processos que já estavam em curso.

Com essa conclusão, o colegiado indeferiu pedido da Defensoria Pública de São Paulo para aplicar retroativamente a regra do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal e reconhecer a extinção da punibilidade pela decadência em processo no qual um professor foi condenado por estelionato.

A matéria foi objeto de discussão no HC 610201.

Para o ministro Ribeiro Dantas, relator do caso julgado na Terceira Seção, a nova norma não deve retroagir aos processos que estavam em curso quando do início da vigência do Pacote Anticrime. Ele lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou no sentido de considerar inaplicável a retroatividade do dispositivo às hipóteses em que o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019.

Segundo o magistrado, o STF entendeu que, anteriormente à nova lei, a norma processual em vigor definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo.

O ministro Ribeiro Dantas mencionou também o primeiro precedente sobre o tema, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que, em junho do ano passado, concluiu pela irretroatividade da norma – posicionamento que se repetiu em outros julgados do tribunal.

O ministro Ribeiro Dantas ressaltou a necessidade de respeito aos princípios constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito quando já oferecida a denúncia.

Tenho que com relação às leis processuais no tempo segue-se a regra de toda legislação processual: aplicam-se de imediato, desde a sua vigência, respeitado, porém, a validade dos atos realizados sob o império da legislação anterior.

Por atos já praticados deve-se entender ainda os respectivos efeitos e ou consequências jurídicas.

Aplicar-se-ia a teoria do isolamento dos atos processuais, na qual a lei nova não atinge os atos processuais já praticados, nem seus efeitos, e sim apenas aqueles que estão por vir, sem ingerência naqueles relacionados às fases processuais anteriores. É essa a teoria aplicada no art. 2º do CPP: A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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