No julgamento do RE 598677, em rito de repercussão geral, (tema 456), o STF fixou a seguinte tese: “A antecipação, sem substituição tributária, do pagamento do ICMS para momento anterior à ocorrência do fato gerador necessita de lei em sentido estrito. A substituição tributária progressiva do ICMS reclama previsão em lei complementar federal.”
Pretende-se, nesse breve artigo, abordar dois aspectos pontuais da decisão. 1) demonstrar a delimitação do alcance da decisão no contexto da complexa materialidade de incidência do ICMS e 2) esboçar uma análise crítica da solução dada ao problema em conformidade com a Constituição Federal.
Embora o teor da tese fixada não faça indicação nesse sentido, o leading case foi sobre a exigência do recolhimento do ICMS nas operações interestaduais, mais especificamente, na entrada do Estado destinatário.
Ocorre, no entanto, que a legislação do imposto estadual prevê pelo menos três hipóteses de incidência em que pode haver a exigência do recolhimento do imposto por ocasião do ingresso das mercadorias no Estado de destino: a) quando o fato gerador decorre da diferencial de alíquota (DIFAL), nos termos do art. 155,§ 2º, VIII, “a” e “b”; b) em determinadas situações no regime de substituição tributária (art. 6º da LC 87/96 e c) no ingresso de mercadorias no Estado de destino, destinadas à revenda, em regime normal de tributação.
A decisão enfocada se refere à última das hipóteses relacionadas, ou seja, quando o contribuinte do imposto do Estado de destino receber mercadorias para comercialização em regime normal de tributação, que consiste na apuração do imposto a partir do encontro dos créditos pela entrada e débitos pela saída, com o recolhimento do saldo devedor por determinado período. Não alcança, portanto, as operações regidas pelo regime de substituição tributária e nem as incidências do diferencial de alíquota com relação às mercadorias recebidas por consumidor final.
Melhor explicando. Pelo regime normal de tributação, o fato gerador do ICMS ocorre pela operação de circulação da mercadoria, de forma específica, pelo ato negocial da sua venda, sendo necessária a mudança de titularidade para a efetiva caracterização da materialidade de incidência. Logo, o Fisco gaúcho somente poderia exigir o imposto no momento da venda da mercadoria pelo contribuinte de sua jurisdição. No entanto, baseado apenas em decreto estadual, a exigência ocorria de forma antecipada, sem que a venda houvesse sido concretizada. A decisão fixou o entendimento, segundo o qual, essa exigência antecipada extrapolaria a simples demarcação de prazo de recolhimento, mas resultaria na redefinição de critério temporal do fato gerador do imposto, matéria que não pode ser veiculada por decreto, mas por lei.
No entanto, a decisão em análise não se limitou a vedar essa exigência antecipada por decreto, mas sugeriu a possibilidade de sua veiculação por lei ordinária, dispensando lei complementar, que somente seria exigida para o regime de substituição tributária.
É sobre essa dispensa de lei complementar sugerida pelo STF que se pretende fazer uma reflexão, como a segunda abordagem proposta neste artigo.
Com o propósito de uniformização do sistema, o constituinte originário estabeleceu que as normas gerais em matéria tributária, tais como a definição de fato gerador, base de cálculo, contribuintes, entre outras, são de reserva à lei complementar.
Art. 146 - Cabe à lei complementar:
[...]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
[...]
- Definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de calculo e contribuintes;[Grifo nosso).
Portanto, pela regra geral, o fato gerador de todos os impostos relacionados na Constituição Federal, entre os quais o ICMS, somente pode ser definido por lei complementar nacional, exatamente para que o contribuinte não seja obrigado a suportar fatos geradores com moldes diferentes nos diversos entes tributantes, o que evidentemente tumultuaria todo o sistema tributário. Não fosse essa uniformização, cada Estado e o Distrito Federal poderia moldar o fato gerador do imposto em seu território, desde que ajustado à materialidade definida pela Constituição Federal.
A uniformização por lei complementar nacional, que no caso do ICMS é a Lei Complementar nº 87/96, tem por objetivo a nacionalização do imposto em seu arquétipo de incidência, limitando o poder normativo no exercício da competência tributária estadual, visando uma maior segurança jurídica do contribuinte.
No caso em análise, ao se promover acobrança do ICMS nas operações de recebimento, de outros Estados, de mercadorias para revenda, o Estado do Rio Grande do Sul fixou, por decreto, uma hipótese de incidência específica, com sua materialidade vinculada à entrada da mercadoria no território gaúcho, sem previsão na lei complementar. O argumento favorável a essa exigência antecipada se firmava na tese de simples antecipação de recolhimento de fato gerador a se concretizar no futuro. Todavia, conforme o próprio STF firmou em seu julgamento, não se trata de estabelecimento de prazo de recolhimento, mas de definição de critério temporal do fato gerador, matéria reservada à lei ordinária, segundo a decisão. E complementou o STF o teor do julgamento, sustentando que somente o regime de substituição tributária reclamaria lei complementar, segundo determinação do art. 155, § 2º, XII, “b”, da CF.
Eis o ponto em que a decisão se afastou do parâmetro constitucional, ao abrir a possibilidade de deliberar sobre critério de fato gerador por lei ordinária e não por lei complementar, afrontando o princípio concentrado na valorização da uniformização do sistema tributária nacional.
Para dar fundamentos à decisão que dispensa a lei complementar para essa matéria, o relator tomou por base o § 7º, do art. 150, da Constituição Federal, segundo o qual “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto de contribuições, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, [...]”.
Como esta norma não se refere à lei complementar, no entendimento da Corte, poderia se tratar do critério temporal do fato gerador por lei ordinária.
O Direito deve merecer uma interpretação sistêmica. Não se interpreta uma norma, seja de qualquer estatura hierárquica, de forma isolada. A norma interpretada deve se harmonizar com o sistema jurídico, e dela deve ser extraído o comando que faça sentido no contexto. Conforme já mencionado, há um princípio estabelecido na Constituição Federal, ou regra geral, como preferir, de que qualquer norma relacionada à definição do fato gerador é de reserva de lei complementar (art. 146, VIII, “a”). Frisa-se, qualquer fato gerador, em qualquer regime de tributação,não só da substituição tributária, como entendeu o STF.
Qual seria então o papel normativo do § 7º, do art. 150, da CF, que serviu de fundamentos para a decisão do STF? Muito simples. Esse dispositivo foi posteriormente inserido na Carta através da EC nº 03/93 e teve como propósito unicamente constitucionalizar o regime de substituição tributária que já constava na LC 87/96, em seu artigo 6º. A emenda constitucional decorreu da discussão doutrinária da época sobre a carência de legitimidade do regime de substituição tributária por não tem amparo constitucional. Foi uma acomodação constitucional da substituição tributária. Não tinha a emenda constitucional o propósito de dispor sobre normas gerais previstas no art. 146, VIII, “a”, da CF. Portanto, essa norma (§ 7º, CF), não veio abrir nenhuma exceção à regra geral da reserva de lei complementar para dispor sobre fato gerador; não veio para resolver, pelo critério da especialidade, um caso específico, e nem pode ser vista como uma contradição constitucional. Esse dispositivo teve como única motivação legislativa legitimar constitucionalmente o instituto do regime de substituição tributária do ICMS, que já estava sendo operado pelo fisco estadual, para o qual há havia lei complementar, em harmonia com as normas gerais estatuídas pela Constituição Federal. Pode-se então concluir que o § 7º, do art. 150, da CF não autoriza a dispensa de lei complementar para dispor sobre qualquer critério de hipótese de incidência do ICMS e não relativizou a regra geral do art. 146, VIII, “a” da CF. A boa hermenêutica recomenda que a interpretação dessas normas deve ser feita forma que elas não colidam entre si, mas que façam sentido no contexto.
Baseia-se ainda a decisão no que dispõeo art. 155, § 2º, XII, “b”, da CF, que reclama lei complementar para dispor sobre substituição tributária, para concluir, por exclusão,que para o regime normal esta lei qualificada seria dispensada.
O exercício hermenêutico segue a mesma linha. Esse dispositivo exige lei complementar para “dispor sobre substituição tributária” do ICMS, ou seja, para disciplinar esteregime tributário específico, não tendo nenhum alcance normativo sobre as normas gerais previstas no art. 146, VIII, “a”, da CF, entre as quais se insere a definição de fato gerador para todos os impostos relacionados na Constituição Federal, entre os quais o ICMS. São temas distintos. Inaplicável, portanto, o raciocínio excludente da decisão.
Finalizando, a decisão do STF andou bem ao vedar essa exigência antecipada pordecreto, mas violou a Constituição Federal ao sugerir a possibilidade de os Estados e o Distrito Federal legislarem sobre fato gerador via lei ordinária, o que certamente terá reflexo na quebra da uniformização do arquétipo de incidência do imposto estadual.