Do Perigo de vida e da saúde, art. 130, CP.

19/04/2021 às 10:55
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Neste conteúdo jurídico será separado por artigo, ou seja, o tema será da periclitação da vida e da saúde previsto nos arts. 130 ao 136. Portanto, como se trata do conteúdo ser longo, será separado por artigo para melhor compreensão.

Art. 130 – Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que se sabe ou deve saber que está contaminado:

Pena – Detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1º – se é intenção do agente transmitir a moléstia:

Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2º – Somente se procede mediante representação.

  1. Considerações preliminares

Conforme vimos, por intermédio dessa criminalização, o legislador busca evitar e sancionar o contágio e a consequente propagação de doenças venéreas sexualmente transmissíveis, pois colocam em risco a saúde do indivíduo e de todo o meio social. Desse modo, a ação do Estado não se restringe à tão só adoção de política preventiva de combate às doenças venéreas, como, por exemplo, a orientação educacional, mas também age no sentido de punir aquele indivíduo que, sabendo de sua enfermidade ou tendo pelas circunstâncias concretas condições de saber, ainda assim pratica ato sexual tendente a transmitir ou criar o perigo de transmissão do mal.

Segundo ao que disponha a Exposição de Motivos do Código Penal, “a doença venérea é uma lesão corporal e de consequências gravíssimas, notadamente quando se trata de sífilis. O mal da contaminação (evento lesivo) não fica circunscrito a uma pessoa determinada. O indivíduo que, sabendo-se portador de moléstia venérea, não se priva do ato sexual, cria conscientemente a possibilidade de um contágio extensivo. Justifica-se, portanto, plenamente, não só a incriminação do fato, como o critério de declarar-se suficiente para a consumação do crime a produção do perigo de contaminação. Não há dizer-se que, em grande número de casos, será difícil, senão impossível, a prova da autoria. Quando esta não possa ser averiguada, não haverá ação penal (como acontece, aliás, em relação a qualquer crime); mas a dificuldade de prova não é a razão para deixar-se de incriminar um fato gravemente atentatório de um relevante bem jurídico”.

 Critica-se a criminalização do perigo de transmissão de doença venérea, pois, ao contrário do que ocorria antigamente, com o avanço da medicina, diversas doenças contagiosas passaram a ter cura.

  1. Objeto jurídico

Este trata-se da incolumidade física e a saúde do indivíduo. Refere-se de um interesse de ordem pública, na medida em que interessa ao Estado zelar pela saúde de cada integrante do corpo social. Contudo, ressalta-se que consentimento da vítima é irrelevante, pois esta não tem disponibilidade sobre o objeto protegido pela norma penal. Previsto no §2º, deste artigo, a representação conferida à vítima lhe proporciona um juízo de conveniência quanto ao exercício da tutela penal pelo Estado. Ademais, o legislador, ao prever a representação como condição para o exercício da ação penal, tem em vista o interesse do ofendido em impedir que o exercício daquela acarrete a si e a seus familiares consequências mais funestas, pois não raras vezes a publicidade do processo é muito mais prejudicial que o próprio malefício acarretado pelo crime.

A ação penal continua a ser pública; contudo, levando em conta o especial interesse do ofendido em impedir consequências mais gravosas, o Estado outorgou-lhe o direito de autorizar ou não o exercício da tutela penal.

  1. Elementos do tipo

 

 

  1. Ação nuclear e meios executórios

A ação nuclear da figura típica é o verbo “expor”, que significa colocar em perigo, arriscar, expor a vida do indivíduo. A exposição a contágio de moléstia venérea ocorre, consoante a lei, através de relações sexuais, que abrange não só a conjunção carnal como qualquer outro ato de libidinagem (p. ex., sexo oral, coito anal). É crime de conduta vinculada, de modo que se o contágio venéreo se der por outro meio que não o ato sexual (p. ex., uso de objetos pessoais), haverá deslocamento para outra figura típica (arts. 131 ou 132). É necessário que haja contato corpóreo entre autor e vítima, de modo que aquele possa transmitir diretamente a doença para esta. Portanto, exemplifica Manzini, “se o amante transmite o mal à sua amante, que, por sua vez, contagia o marido, só é responsável pelo crime relativamente à adúltera. Somente esta é que, conforme a hipótese, praticará o delito em relação ao esposo. Diga-se o mesmo se o marido infectar a mulher e esta o amante.”

Atualmente, a questão é tutelada administrativamente pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, do Governo Federal. Não há uma enumeração taxativa das moléstias venéreas, cabendo, assim, à ciência médica analisar caso a caso a presença delas. Portanto, ressalte-se que a lei exige a exposição a contágio de moléstia venérea.

Por fim, mencione-se que a exposição a perigo deve ser igualmente analisada caso a caso. Não há uma presunção absoluta da existência do perigo pelo simples fato de o sujeito ativo, portador de moléstia venérea, praticar ato sexual com a vítima, mas sim, uma presunção relativa (juris tantum), que admite prova em contrário, na medida em que pode ocorrer, por exemplo, que o sujeito passivo tenha especial imunidade ao contágio, de modo que inexistirá o crime em estudo, podendo haver, na hipótese, crime impossível (art. 17, CP). Da mesma forma, se o agente, contaminado, praticar relações sexuais ou atos libidinosos com vítima que também é portadora de igual moléstia venérea; ou então se o agente praticar relações sexuais ou atos libidinosos com a vítima supondo erroneamente ser portador de moléstia venérea.

  1. Sujeita ativo

Trata-se de crime comum, ou seja, qualquer pessoa, homem ou mulher, portadora de moléstia venérea, pode ser sujeito ativo do crime em questão, que, inclusive, pode ocorrer entre marido e mulher, de modo que a prática desse crime poderá constituir justo motivo para a dissolução da sociedade conjugal, com base na conduta desonrosa ou violação dos deveres do casamento (Lei n. 6.515/77, art. 5º, caput).

  1. Sujeito passivo

Qualquer pessoa, sendo irrelevante que saiba ou possa saber da contaminação do autor e, a despeito, empreste seu consentimento à prática sexual, ainda que seja alertada pelo próprio autor. Isso porque a objetividade jurídica tutelada é de interesse público, supraindividual. A prostituta também pode ser vítima desse crime.

  1. Elemento subjetivo

 

O artigo em estudo prevê três distintas modalidades do delito de perigo de contágio venéreo, de acordo com o elemento subjetivo. Vejamos: (i) o agente “sabe que está contaminado” (caput); (ii) o agente “deve saber que está contaminado” (caput); (iii) o agente sabe que está contaminado e tem a intenção de transmitir a moléstia (§ 1º).

  1. Dolo direto de perigo - Consta da 1ª figura descrita no caput (“sabe que está contaminado”). Aqui, o agente tem pleno conhecimento de que é portador de doença venérea e mesmo assim pratica ato sexual com a vítima, consciente de que com tal ação estará criando uma situação concreta de perigo de contágio de moléstia venérea. Veja-se: não há a intenção de transmitir efetivamente a moléstia. Apesar de prever esse evento, na realidade ele não se insere na vontade do agente, que nem sequer assume o risco de transmitir a doença. Ele quer, isto sim, consciente e voluntariamente, expor a vítima a situação de perigo. Não há o dolo de dano constante do § 1º do mesmo artigo, ou seja, a vontade de transmitir a moléstia.

 

  1. Dolo eventual de perigo ou culpa? A segunda figura descrita no caput (“deve saber que está contaminado”) tem divergências na doutrina. No sentido de que “deve saber” indica culpa por parte do agente, dessa forma, posiciona-se Magalhães Noronha: “Haverá culpa quando o sujeito ativo não tem ciência de estar contaminado, mas devia sabê-lo pelas circunstâncias, se não se dá conta de certos sintomas que se manifestam depois de haver mantido relações sexuais com prostituta. Em assim sendo não tem ele consciência de expor a perigo o ofendido, mas devia ter, pois era possível essa consciência”. Antagônico, argumentando que se trata de dolo eventual, posiciona-se Celso Delmanto, o qual reformulando a sua antiga posição, sustenta que, “na figura da segunda parte (‘deve saber’), a locução verbal empregada parece indicar tratar-se de culpa. É essa a opinião da doutrina majoritária e era a que indicávamos. Todavia, como os casos de culpa devem ser expressos (CP, art. 18, II, parágrafo único) e o princípio da reserva legal (CR/88, art. 5º, XXXIX; art. 15, § 1º, CP, art. 1º) não pode ser desrespeitado, parece-nos mais seguro o dolo eventual e não a culpa. Também o núcleo empregado no tipo (‘expor’) e a previsão do § 1º reforçam essa nossa orientação”.

 

  1. Dolo direto de dano - Consta da figura descrita no § 1º (“se é intenção do agente transmitir”). Trata-se, aqui, de um crime de perigo com dolo de dano. Conforme já vimos no item “a”, no dolo de perigo direto o agente quer tão somente criar a situação de perigo, mas não a efetiva transmissão da moléstia. Ao contrário, neste § 1º, o agente, consciente de que é portador da moléstia grave, pratica ato sexual com a vítima com a intenção de efetivamente transmiti-la. Mais do que a exposição a perigo, pretende o efetivo contágio, o que qualifica o crime, com a consequente majoração da pena.

Contudo, é importante notar que por estar presente o dolo de dano, essa hipótese deveria estar incluída no capítulo das lesões corporais, contudo, conforme justificativa constante na Exposição de Motivos do Código Penal, “é possível que o rigor técnico exigisse a inclusão de tal hipótese no capítulo das lesões corporais desde que seu elemento subjetivo é o dolo de dano, mas como se trata, ainda nessa modalidade, de um crime para cuja consumação basta o dano potencial, pareceu à Comissão revisora que não havia despropósito em classificar o fato entre os crimes de perigo contra a pessoa. No caso de dolo de dano, a incriminação é extensiva à criação do perigo de contágio de qualquer moléstia grave”.

E se o agente age com dolo eventual de dano quanto ao efetivo contágio da moléstia venérea, já que o § 1º se refere ao dolo direto de dano? Para Nélson Hungria, deverá a sua conduta ser enquadrada no art. 130, caput, do Código Penal, uma vez que “o § 1º exige a intenção de dano (vontade dirigida incondicionalmente ao evento ‘contágio’). Dessa forma, não prevalece aqui, a equiparação entre o dolo direto e o dolo eventual (art. 15, n. I)”.

  1. Momento consumativo

A consumação inicia-se com a prática de relações sexuais ou atos libidinosos capazes de transmitir a moléstia venérea, porém não é necessário o contágio bastando a exposição, a criação de perigo de contágio. Mesmo na hipótese do § 1º, basta a só exposição a perigo de contágio.

Se da conduta perigosa sobrevier resultado danoso (a contaminação), teremos as seguintes hipóteses:

  1. se o dolo era de dano (§ 1º) e o sujeito efetiva o contágio: subsiste o crime do art. 130, § 1º;

 

  1. se o dolo era de dano (§ 1º) e o sujeito efetiva o contágio, sobrevindo um dos resultados do art. 129, §§ 1º e 2º, responderá o agente pelo delito de lesão corporal grave ou gravíssima, pois a pena prevista para estes é superior à pena prevista para o delito de perigo;

 

  1. se o dolo era de perigo (caput), havendo mera previsibilidade acerca do evento danoso: subsiste o crime em estudo (CP, art. 130, caput). É que, segundo Victor Eduardo Rios Gonçalves, “por se tratar de dolo de perigo, conclui-se que o agente não queria transmitir a doença e, assim, poderia, no máximo, responder por lesão corporal culposa que, entretanto, fica afastada por ter a pena menor que o crime de perigo”.

 

Entretanto, se, além do contágio, sobrevier a morte da vítima, hipótese está não prevista pelo Código Penal, teremos as seguintes situações, de acordo com a intenção do agente:

  1. se a intenção era de, contaminando, matar: haverá crime de homicídio doloso, pois nessa hipótese há o animus necandi; a transmissão de moléstia venérea, no caso, é um meio de execução do delito de homicídio, e o agente não quer tão só a contaminação, mas, sim, que através desta seja causado o óbito da vítima;
  2. Se a intenção era de apenas contaminar (§ 1º – dolo de dano), mas a morte era um resultado previsível: haverá o crime de lesão corporal seguida de morte (CP, art. 129, § 3º);

 

  1. Se houve a contaminação por um ato culposo do qual decorreu a morte da vítima: responderá pelo delito de homicídio culposo condicionado à previsibilidade do evento letal.

 

  1. Tentativa

A doutrina reconhece a possibilidade da tentativa nos crimes dolosos de perigo, desde que o crime apresente um iter que possa ser cindido. Haverá a tentativa na hipótese em que o agente, querendo manter relação sexual com a vítima, não consegue realizá-la. A tentativa é possível principalmente na hipótese do § 1º, em que há o dolo direto de dano.

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  1. Formas

 

  1. Simples (art. 130, Caput)

 

Está prevista no caput do art. 130 do CP, no qual vimos acima. A pena prevista para o delito em questão é a de detenção, de três meses a um ano, ou multa.

  1. Qualificadora, §1º

Está prevista no § 1º do art. 130 CP e também já a analisado no item “iii” do tópico “elemento subjetivo”. Contudo, é importante destacar que o especial fim de agir exigido pela norma, qual seja, a intenção do agente de transmitir a moléstia, além de configurar elemento subjetivo do tipo, qualifica o crime em questão, acarretando o aumento da pena do tipo básico (reclusão, de 1 a 4 anos, e multa). Importante frisar que o efetivo contágio não é necessário para a consumação do delito, mas, se aquele ocorrer, a hipótese continuará sendo a do § 1º, pois será considerado mero exaurimento do crime.

  1. Concurso de crimes

É possível haver concurso formal com os crimes contra a dignidade sexual (arts. 213 e s.), podendo, inclusive, existir duplicidade de desígnios (um de dano e outro de perigo) autônomos, desde que eles se dirijam ao atingimento (real, de dano, ou potencial, de perigo) de objetos jurídicos distintos, ficando, então, afastada a subsidiariedade dos crimes de perigo.

  1. Ação penal.

Trata-se de crime de ação penal pública condicionada à representação do ofendido ou de seu representante legal. É a manifestação de vontade do ofendido ou do seu representante legal no sentido de autorizar o desencadeamento da persecução penal em juízo. Constitui condição objetiva de procedibilidade. Sem a representação do ofendido não se pode dar início à persecução penal. Ressalta-se que nem sequer o inquérito policial poderá ser instaurado sem a permissão da vítima (CPP, art. 5º, § 4º).

  1. Lei de juizados especiais criminais

Conforme vimos na letra da lei, o delito de contágio de moléstia venérea, na sua forma simples (caput), pelo fato de a pena máxima prevista ser inferior a dois anos (pena – detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa), é considerado infração de menor potencial ofensivo e, portanto, está sujeito às disposições da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

No que respeita à forma qualificada (§ 1º) do delito de contágio de moléstia venérea, em virtude da pena máxima prevista (pena – reclusão, de 1 a 4 anos, e multa), não constitui infração de menor potencial ofensivo, contudo incide a regra do art. 89 da referida lei, que possibilita a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo aos crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a 1 ano.

REFERÊNCIAS:

Capez, Fernando, curso de Direito Penal, parte especial. Ed. 13º, Saraiva - https://amzn.to/38PJwEO

 

Bittencourt, Cezar Roberto - Tratado de Direito Penal, Vol. 2, Pt. Esp., 21ª Ed. 2021 - https://amzn.to/3agd27p

 

Masson, Cleber, Direito Penal, parte especial. Ed. 14º, Metodo - https://amzn.to/30QbITT

Sobre o autor
Jonathan Ferreira

Acadêmico de Direito pela universidade Estácio de Sá com foco em Dir. Penal, Dir. Proc. Penal, Dir. Constitucional Brasileiro. Administrador e fundador da página Âmbito Criminalista, no qual ajudo pessoas a entenderem o Direito Penal de forma simples e descomplicada. Amante da Sabedoria e estudante da psicanálise lacaniana em conjunto com a seara penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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