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A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais.

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3. UMA ANÁLISE COMPARATIVA DOS TEXTOS DA CONSTITUIÇÃO MEXICANA E DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR

Inicialmente, procederemos a um cotejo das disposições constantes de cada uma dessas Cartas Políticas, relativamente aos direitos fundamentais de primeira dimensão:

Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão.

Constituição Mexicana de 1917

Constituição de Weimar de 1919

Direito à igualdade

Art. 4º

Art. 109

Liberdade de circulação no território nacional e para fora ele

Art. 11

Arts. 111 e 112

Direitos das minorias

_

Art. 113

Inviolabilidade de domicílio

Art. 16

Art. 115

Irretroatividade da lei penal

Art.14

Art. 116

Sigilo de correspondências

Art. 16 § 2º

Art. 117 (incluídos os sigilos aos dados telegráficos e telefônicos)

Liberdade de manifestação do pensamento

Art. 6º

Art. 118

Vedação à censura

Art. 7º

Art. 118, § 2º (exceto na proteção à juventude e no combate à pornografia)

Proteção ao matrimônio e à família (garantias institucionais)

_

Art. 119

Igualdade jurídica entre cônjuges

_

Art. 119

Igualdade jurídica entre filhos havidos na constância ou fora do matrimônio

_

Art. 121

Liberdade de reunião e associação

Art. 9º

Arts. 123 e 124

Direito de petição ao Poder Público

Art. 8º

Art. 126

Igualdade de acesso aos cargos públicos

-

Art. 128

Direitos adquiridos

_

Art. 129, "caput" e § 3º (relativamente a pretensões pecuniárias relativas a servidores públicos e soldados de carreia

Liberdade de consciência e crença religiosa

Art. 24

Art. 135

Separação Estado/Igreja

Art.130

Art. 137

Proibição à escravidão

Art 2º

_

Princípio do juiz natural e proibição de juízo de exceção

Art. 13

_

Devido processo

Art. 14 § 1º

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Vedação ao exercício arbitrário das próprias razões

Art. 17

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Acesso gratuito ao Poder Judiciário

Art. 17 § 1º

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Vedação de prisão por dívida

Art. 17, § 3º

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Princípio do "non bis in idem" em matéria criminal

Art. 23

_

Do exame do quadro acima, pode-se perceber que as duas Constituições tiveram percepção semelhante no que se refere à necessidade de não apenas abranger-se a proteção constitucional aos direitos de índole social, mas, também, de se preservar-se o conteúdo das liberdades públicas já alcançadas.

Não há nada de discrepante entre os dois textos constitucionais em exame (Constituição Mexicana de 1917 e Constituição de Weimar de 1919) que indique que qualquer um desses diplomas (frutos, respectivamente, de uma revolução camponesa e de uma assembléia constituinte convocada em meio à profunda crise econômica e a perturbações sociais também imputáveis à ameaça socialista) tendesse, desde seu início, à instituição de regimes autoritários.

Pelo contrário, o quadro acima reflete que o rol das liberdades públicas foi ampliado nos textos Mexicanos e de Weimar, cabendo destacar, por sua vanguarda, dispositivo da Constituição de Weimar que assegurava a igualdade entre filhos, havidos na constância do matrimônio ou não.

Chama a atenção, no entanto, a ausência, no texto de Weimar, de dispositivos integrantes do chamado "direito processual constitucional", consistentes nos princípios básicos do devido processo legal e do juiz natural. Nada há, no entanto, como já acentuado, que indique o caráter proposital dessa "lacuna".

Já no que se refere aos direitos de segunda dimensão, pode-se perceber uma nítida diferenciação entre os dois textos, no que se refere aos temas sociais prioritários, eleitos pelos diplomas Constitucionais para os fins de outorgar-se especial proteção.

Com efeito, pode-se observar que a Constituição Mexicana – apesar de ter reconhecido outros direitos, como o direito à educação (art. 3º), à saúde (art. 4º, § 2º) e o direito à moradia (art. 4º, § 3º) – concentrou-se, de maneira sensível – e até mesmo em razão de sua origem –, na solução das questões agrárias (art. 27) e dos direitos trabalhistas (art. 123).

Os direitos sociais fulcrais no ordenamento jurídico mexicano são o reconhecimento da função social da propriedade e da possibilidade de esta ser distribuída através de desapropriação, de um lado, e a outorga de especial proteção ao trabalhador, inclusive mediante a instalação de um regime de previdência social, de outro.

Na realidade, uma análise dos textos constantes dos arts. 27 e 123 revelam que todos os demais direitos ali elencados decorrem, materialmente, do direito de proteção ao trabalho, de um lado, e da função social da propriedade, de outro.

Esse aspecto, por óbvio, não pode, de maneira alguma (e nem aqui se pretende isso), desqualificar o texto constitucional mexicano, indubitavelmente a Constituição que, cronologicamente, instaurou a fase do constitucionalismo social, ao prever, em seu corpo, ao lado das liberdades clássicas, direitos fundados na essencial igualdade material dos indivíduos, garantindo, aos camponeses, a possibilidade de obtenção de terra mediante sua redistribuição pelo Governo e o respeito à pequena propriedade rural e assegurando, aos trabalhadores, direitos mínimos, como aqueles relativos à jornada de trabalho, à fixação de um salário mínimo, à especial proteção conferida aos ambientes de trabalho periculosos ou insalubres, à participação nos lucros das empresas, à proteção à trabalhadora gestante e à possibilidade de se submeter as controvérsias decorrentes do contrato de trabalho a um órgão de julgamento neutro, composto por igual número de representantes de trabalhadores e patrões e por um membro do governo. Os avanços alcançados pela Constituição Mexicana de 1917 em tema de direito agrário e de direito do trabalhador são, portanto, irrecusavelmente notáveis.

Deve-se destacar, no entanto, que apesar da primazia cronológica mexicana em tema de positivação constitucional de direitos de natureza social, a abrangência e a extensão nas quais esses direitos foram consagrados (com enfoque nas questões agrárias e trabalhistas) fizeram com o exemplo Mexicano, não obstante inspirador, culminasse por configurar um modelo de referência quase que regional, muito adequado à realidade daquele país, mas pouco universalizante.

Com efeito, as reivindicações concernentes à necessidade de se conferir especial proteção aos trabalhadores em geral, consoante se observou do breve relato do contexto histórico do pós-guerra, eram praticamente global, ao menos em tema de mundo ocidental (até mesmo em face do exemplo e da ameaça soviéticas).

O advento de uma nova classe operária, mais organizada em função de seus interesses, foi conseqüência de um processo de industrialização da produção que, em uma ou outra medida e em graus diversos de intensidade, atingiu a quase totalidade dos países europeus e americanos, o que fez com que reivindicações de direitos trabalhistas fossem uma constante na época.

Sob tal aspecto, a Constituição Mexicana desempenhou papel de vital importância, pois, não apenas reconheceu direitos, mas, também, conferiu-lhes estatura constitucional, tudo a significar a especial proteção de que seriam titulares.

Irretocáveis, no ponto, as palavras de Karl Loewenstein 75:

"Como postulados expressamente formulados, os Direitos Fundamentais socioeconômicos não são absolutamente novos: alguns deles, como o direito ao trabalho, foram inscritos nas Constituições Francesas de 1793 e 1848. Mas foi apenas em nosso século, depois da primeira e, em maior grau ainda, depois da segunda guerra mundial, que se converteram no equipamento-padrão do constitucionalismo. Foram proclamados pela primeira vez na Constituição Mexicana de 1917, que, com um salto, se poupou todo o caminho para realizá-los: todas as riquezas naturais foram nacionalizadas e o Estado assumiu completamente, pelo menos no papel, a responsabilidade social para garantir uma existência digna a cada um de seus cidadãos".

Deve-se registrar, no entanto, a advertência de Mario de la Cueva, que, ao colocar em destaque a falta de originalidade do art. 123 da Constituição Mexicana, afirma que a maioria das disposições ali contidas já eram conhecidas de outros povos.O legislador mexicano, segundo ele, inspirava-se visivelmente nas experiências de países como França, Bélgica, Itália, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia 76.

A circunstância de que o conteúdo material das prescrições trabalhistas veiculadas pela Constituição Mexicana já havia sido contemplado em outros textos legais europeus, associado, ainda, ao fato de que, na Europa, a questão agrária, de longe, não assumia as feições com que ela se registrava no México, culminaram por fazer com que a Constituição Mexicana tivesse, ela própria, pouca influência na confecção das outras constituições que aderiram ao modelo do constitucionalismo social.

Utilizando-se de expressão constante do texto de Loewenstein, pode-se afirmar que a Constituição Mexicana, apesar de cronologicamente pioneira, culminou por não assumir a condição de "equipamento-padrão", inspirador e conformador dos textos constitucionais posteriores.

A questão dos direitos trabalhistas, de grande relevância na época, não era nova nos países Europeus (não obstante tais prescrições não contivessem, tão detalhadamente, de textos constitucionais). Também o tratamento dado à questão agrária mexicana, por peculiar, não poderia ser estendido, de maneira irrestrita, às futuras Constituições.

Adicione-se a isso, ainda, a existência, à época, de poucos doutrinadores mexicanos que, ao analisarem a Constituição de 1917, difundissem, por suas obras, as conquistas sociais alcançadas em continente americano. Como resultado, tem-se a pouca repercussão, fora daquele país, do texto constitucional mexicano.

Ao contrário disso tudo, a Constituição de Weimar, que nascia dois anos após, previa, ao lado dos direitos dos trabalhadores e do estabelecimento da função social da propriedade, um rol sistematizado de outros direitos, do qual se destacam, por exemplo, o avançado sistema de educação pública, obrigatória e gratuita, que previa, inclusive, a gratuidade do material escolar e a subvenção de famílias carentes para que seus filhos possam ir à escola (arts. 145 e 146). O sistema de previdência social, por sua vez, foi estabelecido de maneira mais organizada e explícita, com previsão de participação do segurado (art. 161), sendo, ainda, dividido em regime de previdência do setor público – para funcionários públicos (art. 129) – e regime geral de previdência (art. 161). Estabeleceu-se, também, como meio de incentivo à pesquisa, o direito à proteção autoral do inventor e do artista (art. 158).

O Capítulo V da Constituição de Weimar, por sua vez, ao tratar sobre "A vida econômica",estabeleceu, ao lado de prescrições como a pertinente à função social da propriedade (art. 153) e à criação de um regime previdenciário (art. 161), um sistema de participação de empregados ("de todos os grupos profissionais importantes") na condução das políticas de "desenvolvimento econômico das forças produtivas". (art. 165).

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Essa participação era concretizada através dos celebrizados Conselhos Operários (que se organizavam, em termos de abrangência, da seguinte maneira: conselho operário de empresa, conselho operário de circunscrição e Conselho Supremo do Trabalho, além dos Conselhos Econômicos de circunscrição e do Conselho Supremo de Economia).

Nos termos da Constituição Alemã, "todos os projetos de leis político-sociais ou político-econômicos, de importância fundamental, devem passar pelo conhecimento do Conselho Supremo de Economia, antes de serem apresentados" (art. 165, § 2º). O Conselho Superior de Economia, ele próprio, também tinha poderes para apresentar projetos de lei de sua iniciativa.

Através da instituição dos Conselhos, a Constituição de Weimar reconheceu não apenas a necessidade de intervenção estatal em determinadas esferas, para os fins de viabilizar a fruição, por um maior número de pessoas, dos direitos fundamentais por ela previstos, mas estabeleceu, também, que os termos, as medidas e os modos com os quais essa intervenção se efetivaria deveriam contar com o apoio, o respaldo e a opinião das categorias econômicas envolvidas.

As prescrições de direitos fundamentais sociais constantes da Constituição de Weimar, desse modo, parecem concretizar preocupações de caráter menos regional e mais abstratas e universalizantes 77, mais adaptáveis, portanto, à realidade de outros países e, por isso mesmo, mais inspiradora.

Adicione-se a isso tudo, o fato de que a Constituição de Weimar veio acompanhada e enriquecida por um intenso debate, travado entre nomes de peso (como, por exemplo, Schmitt, Kelsen, Heller, Anschütz, Smend, entre outros tantos), que, seja criticando, seja preservando, culminou por dar expressão e divulgar a experiência alemã para o restante do mundo.

Parecem irretocáveis, desse modo, as palavras de Ary Brandão de Oliveira, que, o tratar referir-se à Constituição Mexicana de 1917, assim se pronunciou 78:

Efetivamente, seria faltar à verdade afirmar uma repercussão que inexistiu. Em termos genéricos, a Europa desconheceu a legislação mexicana. As atenções do mundo jurídico se voltaram para a Constituição alemã de Weimar, a cuja promulgação seguiu-se vigorosa literatura. Nesse particular, a avançada posição mexicana viu-se prejudicada pela escassez de estudos doutrinários a seu respeito".

Também nessa linha é o entendimento de Dario José Kist 79, para quem embora seja a Constituição Mexicana "um dos primeiros marcos da legislação social", a "principal das legislações constitucionais de cunho social que apareceram foi a Constituição Alemã de 1919", eis que o advento do diploma constitucional mexicano se deu "sem maiores expressões e influências fora do México".

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Sobre a autora
Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro

advogada. professora de pós-graduação do IDP/LFG. mestra em direito e estado pela Universidade de São Paulo. membro da ABLIRC - ass. bras. de liberdade religiosa e cidadania

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais.: A preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição mexicana de 1917. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1192, 6 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9014. Acesso em: 28 mar. 2024.

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