Atos normativos abusivos de tribunais são modelos de transição da democracia para o arbítrio.

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A Portaria Conjunta de n° 1.148/PR/2021 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e a autorização de suspensão de processos eletrônicos pelo CNJ, Resolução Nº 322 de 01/06/2020, banalizam a justiça e violam direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Qualquer ato normativo que venha a suspender um processo virtual ou eletrônico – ainda que baseado em situações envolvendo a Covid-19 ou outra crise sanitária qualquer – deve observar rigorosamente os critérios da adequação e da necessidade, munido de lógica, prudência e razão, sob pena de se violar os direitos fundamentais daqueles que necessitam da prestação jurisdicional. Para prevenir o arbítrio estatal, no campo da Administração Pública, exige-se que a autoridade apresente os fundamentos de sua decisão. Trata-se do dever de motivação dos atos administrativos.

No modelo de Estado de Direito estabelecido no sistema do Direito Positivo – o Estado Democrático de Direito – exige-se do Poder Público um alto grau de intervenção na esfera jurídica dos administrados, seja no domínio econômico, seja no domínio social. Intervenção esta que se justifica em razão de metas constitucionais de Justiça Social[1].

Com o avanço da tecnologia e dos meios virtuais de comunicação, praticamente todos os fatos humanos tornaram-se públicos, sobretudo os atos praticados por aqueles que possuem atribuições de poder, e esse acesso generalizado das interações humanas com a crise sanitária causada pela propagação do vírus Sars-CorV-2 exigiu medidas excepcionais dos poderes da República.

Todavia, o Poder Judiciário está na mira dessa ampla publicidade, devendo cuidar para que seus atos não se tornem palco para vexames e perplexidades e seus membros (agentes públicos) devem obedecer ao programa constitucional, evitando medidas restritivas aos direitos e garantias fundamentais que violem a ordem democrática, o estado de direito legítimo e própria cidadania.

Pois bem, um dos lamentáveis atos de restrições de direitos fundamentais, proveio de normas ilegítimas, desarrazoadas e desproporcionais como é o caso da suspensão, em macrorregiões classificadas como “Onda Roxa”, de processos eletrônicos ou virtuais, e vi da Portaria Conjunta de nº 1.148/PR/2021, art. 1º, § 1º do Tribunal de Justiça de Minas Gerais[2].

Como se já não bastasse o intenso protagonismo no cenário político (invasão de atribuições do Legislativo e do Executivo) e no cenário processual (ativismo judicial e caráter não-garantista do processo), eivado de falácias como: “sentença vem de sentir”, “livre convencimento”, “ponderação de princípios ou valores”, “verdade real”, “quando a lei é ruim não deve ser aplicada”, “fazer controle de constitucionalidade é chato e dá trabalho”, “subserviência a atos ilegais como resoluções e portarias (como algumas editadas pelo CNJ)”, “já que tudo tem recurso, então minha sentença não vale muita coisa” etc., o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com apoio do CNJ (Resolução Nº 322 de 01/06/2020), enfiou goela abaixo da sociedade Portaria Conjunta restringindo indevidamente o acesso à justiça, obrigando o jurisdicionado a se submeter ao mais nefasto arbítrio, com um sem número de pré-conceitos que não resistem à boa filosofia e à lógica-racional-normativa.

Para quem leu o referido ato normativo sem a devida atenção e sem realizar aquele importante diálogo interno, fica sujeito a não perceber a sutileza da expressão “suspensão dos processos eletrônicos”, que, ao fim e ao cabo, é um dos grandes equívocos já praticados por parcela da justiça brasileira.

“Mutatis mutandis”, o processo eletrônico é um dos maiores avanços da sociedade moderna. O PJE possibilita a realização de atos processuais, não importando a localização física (salvo raros procedimentos) daqueles que compõe o quadro de servidores que auxiliam o desenvolver da atividade jurisdicional, bastando apenas o acesso à internet. Deste modo, o trabalho remoto (home office) vai se solidificando e, atualmente, é a realidade vivida e empreendida por alguns países, a exemplo da Alemanha[3] e do fomento de algumas empresas dos Estados Unidos, a exemplo da Google[4].

Quando o assunto é o exercício da jurisdição, face à pandemia da Covid-19, o PJE revelou o poder de driblar a interrupção do acesso à justiça, principalmente quando o assunto descamba para o fastidioso “lockdown”, uma vez que possibilita a atuação “home office”. Neste sentido, a Portaria do TJMG é o mais vexatório regime autoritário de exceção, por romper o curso de toda uma marcha processual, sem respaldo da comunidade científica de saúde e da comunidade jurídica.

Ora, a suspensão de processos eletrônicos somente pode (ria) ocorrer em situações extremamente restritas, que estão previstas no Código de Processo Civil e em leis especiais emanadas do Congresso Nacional (por meio de representantes do povo, com longa discussão sobre a matéria).

Não é dado ao CNJ e aos Tribunais o poder de realizar suspensões de processos, sem que antes exista fundamento plausível, devendo readequar cada situação a fatos também excepcionais. Por exemplo, é obrigatória a suspensão de prazos (não de processo) na ocorrência de falhas na própria plataforma virtual que alberga o PJE (medida que exige correção imediata, que geralmente é realizada em um dia ou dois).

Nos casos envolvendo restrições de direitos fundamentais, motivadas por situações extremas e comprovadas de proteção à saúde pública, os Tribunais, quando o assunto é processo eletrônico, somente estariam autorizados a suspender PROCEDIMENTOS, consubstanciados em atos específicos, assim como: atos de comunicação praticados por oficiais de justiça; oitiva de testemunhas; depoimento pessoal; inspeção judicial e qualquer outro ato que exija o contato físico de duas ou mais pessoas. Fora isso, é institucionalizar a aberração por meio de atos institucionais normativos, sem qualquer participação da sociedade civil, incompatível com os fins sociais do processo, ferindo também os princípios intrínsecos da razoabilidade e a proporcionalidade, face a uma combalida democracia governamental.

Destarte, apenas para falar o óbvio, o trabalho prestado “home office” resguarda o agente público ou político da contaminação pelo vírus Sars-CorV-2, uma vez que a maioria absoluta de atos processuais são realizados por meio de sistema operacional “cloud computem”, como é o caso dos processos eletrônicos que tramitam contra a Fazenda Pública e que dispensam a aproximação de pessoas. Neste caso, o processo se desenvolve da seguinte forma: petição eletrônica; provas documentais eletrônicas; pagamento de custas eletrônicas; despacho eletrônico; citação eletrônica; audiência por meio de vídeo conferência, que também é eletrônica; contestação eletrônica; impugnação eletrônica; produção de provas eletrônicas; sentença eletrônica; recurso eletrônico; sustentação oral eletrônica, por meio de vídeo conferência, além de outros atos até a satisfação da pretensão.

Não é só isso. O ato processual eletrônico dignifica o cidadão concursado que continua remunerado independentemente de crise financeira causada por eventual pandemia, exigindo-lhe apenas que se adeque aos fatos da vida, evitando desperdício irracional de tempo, tutelando efetivamente os direitos do cidadão e velando pelo bem comum.

A suspensão de processos eletrônicos revela imperícia e negligência da justiça em realizar atividades próprias do Poder Legislativo e deixará marcas profundas no judiciário, que tem se valido de atitudes estranhas e até certo ponto violadora do prestígio da própria magistratura.

A Emenda Constitucional nº 45 acrescentou ao art. 93 da Constituição Federal um dispositivo de suma importância e que sequer precisaria ser dito, ante o princípio da continuidade do serviço público advindo do direito administrativo. A previsão é a seguinte:

“XII a atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente;”

Os vocábulos “ininterruptos” e “permanentes” parecem dar um tom de obrigatoriedade, ou seja, de indisponibilidade discricionária. Nesse aspecto, interessa a leitura de importantíssima obra de uma das melhores obras de processo civil da atualidade:

“A prestação contínua e sem interrupções integra a essência desse serviço. (...) É tão inaceitável fechar a Justiça Pública durante um mês, ou no período de festas de fim de ano, quanto os hospitais públicos no mesmo interregno, passando os interesses do pessoal forense à frente do interesse coletivo ou dos fins sociais da atividade (art. 8.º do NCPC). O recesso de 20 de dezembro a 20 de janeiro (art. 220, caput, do NCPC) até pode ser uma conquista dos advogados, mas não o é da cidadania. Por igual, a Justiça Pública há de se revelar acessível a todos – nacionais e estrangeiros – em igualdade de condições.” [5]
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Acredito que as palavras do jurista não merecem reparos. No entanto, situações caóticas podem ocorrer, exigindo medidas urgentes, fazendo com que certas restrições viessem a ocorrer [mas apenas de forma extraordinária e com a inserção de mecanismos adequados para evitar o colapso]. Para combater eventual regime de exceção, medidas alternativas imediatas devem ser tonadas com vistas a restaurar a normalidade da atividade prestada pelo Poder Judiciário que é obrigatória, essencial e indisponível a serviço da cidadania. Neste momento, o PJE é a única tábua de salvação! Assim, no lugar de restringi-lo (como fez a Portaria do TJMG), seu campo de atuação deveria ser ampliado sobremaneira, por ser sanitariamente seguro e viável.

A referida Reforma do Poder Judiciário consagra o princípio da ininterruptabilidade da jurisdição, não podendo haver supressão dessa regra sequer por Resolução do CNJ. Além disso, a doutrina vincula a continuidade ininterrupta da prestação jurisdicional ao princípio da razoável duração do processo, prevista no extenso rol de direitos e garantias fundamentais individuais e coletivas do cidadão:

Art. 5º:
(...)
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
“LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (Constituição Federal)

É inclusive fortemente questionável o fato de se suspender até mesmo os processos físicos, uma vez que estes já não deveriam mais perdurar, eis que já se passaram mais de um ano dos transtornos causados pela pandemia e o processo de papel é ainda praga que grassa. Ora, pois. Certo é que todos esses processos já deveriam ter sido convertidos em autos eletrônicos, por meio de colaboração de vários setores internos, incluindo a OAB.

Muito mais poderia ser dito sobre a aberração instituída pela Portaria Conjunta do TJMG. Por exemplo: a revogação da referida Portaria pouco depois de editada e a sua perpetuação mesmo após revogada; a seletividade ativista e protecionista de seu cumprimento em proteção exclusiva à Fazenda Pública (principalmente contra os advogados dativos); a suspensão automatizada da contagem de prazos pelo PJE (adicionada sem exclusão posterior); a subserviência do judiciário em não realizar o controle de constitucionalidade, até mesmo de ofício, ante sua patente e inexplicável teratologia.

Sendo assim, cabe concluir que a Portaria Conjunta do Tribunal de Justiça de Minas Gerais nada mais é do que um descompasso à democracia de acesso à justiça, na medida em que interrompeu a marcha de inúmeros processos sem fundamento jurídico plausível, violando o pacto democrático, legislando indevidamente em matéria de direitos e garantias fundamentais que na verdade deveriam proteger.

Enfim, certas idiossincrasias tornam agentes públicos os principais inimigos da pátria.

ENDEREÇO DE E-MAIL: [email protected]

ALEXANDRE AUGUSTO CARVALHO SIMÕES - Advogado e especialista lato sensu em direito tributário pelo Centro de Estudos Jurídicos na Área Jurídica Federal (CEAJUFE), Belo Horizonte/MG.

  1. Vide o art. , o art. 170, caput, e o art. 193, todos da Constituição Federal. Nesse sentido, consultar: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo; FRANÇA, Vladimir da Rocha. Princípio da legalidade administrativa e competência regulatória no regime jurídico-administrativo brasileiro. Revista de informação legislativa, vol. 202, pp. 7-29; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica); ZOCKUN, Carolina Zancaner. Da intervenção do Estado no domínio social. (in: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/124/edicao-1/principio-da-motivacao-no-direito-adminis...)

  2. Art. 1º Fica suspenso o expediente forense nas comarcas constantes do Anexo Único desta Portaria Conjunta, integradas por municípios localizados em macrorregiões classificadas como "Onda Roxa", de acordo com os parâmetros do Plano "Minas Consciente - Retomando a economia do jeito certo" do Governo do Estado de Minas Gerais, a partir da data indicada, enquanto vigorar esta Portaria Conjunta.

    § 1º Ficam suspensos os prazos dos processos físicos e eletrônicos em tramitação nas comarcas a que se refere o "caput" deste artigo, resguardadas as medidas de natureza urgente, a partir da data indicada no Anexo Único desta Portaria Conjunta.”

  3. https://www.dw.com/pt-br/alemanha-planeja-lei-para-regulamentar-trabalho-remoto/a-54912927

  4. https://www.poder360.com.br/coronavirus/google-mantera-funcionarios-em-home-office-ate-julho-de-2021/

  5. (ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 70)

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