Diante da pandemia, muitos contratos restaram impossíveis de cumprimento levando o consumidor a optar pelo seu cancelamento, justamente em decorrência da incerteza sobre a própria utilidade da prestação, haja vista que o compromisso ou evento que o fez adquirir ingressos, passagens, buffet, pode não ter data definida ou ter sido cancelado em virtude das restrições de viagens, fechamentos de aeroportos, impossibilidade de reuniões particulares, toque de recolher, lockdown, etc.
No cenário atual é dever do Estado fornecer aos cidadãos instrumentos para o exercício pleno dos seus direitos, perseguindo medidas que evidenciem a hipossuficiência do consumidor e salvaguarde os seus direitos, bem como promova normas legais de preservação e manutenção da economia, a fim de que o país volte a ser capaz de gerar renda e o crescimento seja retomado mesmo após toda a quebra da cadeia produtiva ocasionada pela COVID-19.
Em que pese a pandemia configurar situação catastrófica que atingiu fornecedores e consumidores, o consumidor não pode ser obrigado a continuar com a vigência contratual, sob pena de sofrer prejuízos econômicos por circunstâncias que não deu causa, uma vez que os consumidores são presumidamente vulneráveis pelo ordenamento jurídico brasileiro, conforme estabelece o Código de Defesa do Consumidor.
O doutrinador Bruno Miragem esclarece haver possibilidade de revisão contratual, permitindo exonerar as partes quanto a cobrança de taxas e multas, de acordo com a teoria da quebra da base do negócio jurídico, de Karl Larenz, devendo-se aplicar a teoria da imprevisão ou permitir a sua resolução por onerosidade excessiva, sobretudo e especialmente nas relações de consumo onde há a figura do hipossuficiente consumidor [1].
O art. 6º da Legislação Consumerista, em seu inc. V prevê que é direito básico do consumidor revisar cláusulas contratuais “em razão de fatos supervenientes”, ou seja, a cláusula que prevê multa e penalidades pode ser modificada em meio a situação excepcional, não se admitindo que em um cenário que atinge a ambos os contratantes de forma igualitária quanto à impossibilidade de execução do contrato, impor à parte mais vulnerável os prejuízos advindos de um legítimo pedido de rescisão.
Ademais, importante chamarmos atenção para a figura da função social dos contratos, prevista no art. 421 do Código Civil que diz que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A importante função social que detêm os contratos é clara e óbvia, razão pela qual as empresas que prestam serviços diretamente ao consumidor devem se empenhar a fornecê-los da melhor forma possível, em conformidade com o que determinam as leis que lhes regulam.
Em face da relevância das atividades executadas por esses prestadores/fornecedores de serviços, tais contratos devem ser interpretados de modo a garantir uma harmonia entre as pretensões das partes contratantes: consumidor e empresa. Mais ainda porque a interpretação atual de contratos mostra-se a aplicar dos princípios da boa-fé objetiva, equidade e dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, com a noção da obrigação como relação jurídica complexa, defluem da cláusula geral de boa-fé objetiva, os denominados deveres acessórios que, se não cumpridos, caracterizam hipótese de inadimplemento contratual, uma vez que a boa-fé que deve existir antes, durante e após a relação contratual, sendo tão importante quanto a obrigação central, os deveres anexos ao objeto principal do contrato, de modo a garantir a confiança depositada pelo consumidor na qualidade do serviço prestado pelo fornecedor.
Nesse sentido, o ilustre doutrinador Clóvis do Couto e Silva diz que
“...os deveres secundários comportam tratamento que abranja toda a relação jurídica. Assim, podem ser examinados durante o curso ou o desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal. Consistem em indicações, atos de proteção, como o dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda, de cooperação, de assistência” [2]
Mais do que nunca há a necessidade de sopesamento quanto à utilização desta linha argumentativa, não sendo permitido somente classificar acontecimentos, ainda os de cunho gravíssimos, como a pandemia que estamos vivendo, de forma teórica e genérica para declarar que, a partir de então, todos os contratos poderão ter seus ditames maculados.
Com isso, não se quer negar a gravidade da pandemia, mas antes de tudo se deseja preservar a boa-fé das relações contratuais, evitando-se que uma das partes saia, ainda mais, destruída, diante de uma situação tão excepcional.
Analisar caso a caso será de fundamental importância para a utilização da COVID-19 como justificativa para o caso fortuito ou da força maior. Isso porque existirão contratos que, mesmo com elevada repercussão na seara econômico-financeira, não poderão ser revisados, pois os efeitos concretos do evento pandemia integrarão o âmbito dos riscos normais do negócio, não se encaixando em situação de cunho extraordinário e, por isso, passível de exclusão de responsabilidade.
A responsabilidade civil constante no CDC se baliza a partir da sua modalidade objetiva, pois fundada no risco da atividade do negócio. Diante disso, o sistema jurídico brasileiro tem entendido que a “força maior” capaz de afastar dever do fornecedor em responder pelos prejuízos decorrentes do contrato, será aquela vinculada à impossibilidade genérica de atuação, ou seja, desvinculada ao exercício da atividade profissional.
Já estando o acontecimento atrelado ao risco da atividade, não há que se falar em exclusão da responsabilidade, por se tratar de espécie qualificada como “fortuito interno”. Enquanto o “fortuito externo” é elemento justificador da quebra do dever de responsabilizar, por se tratar de dano decorrente de causa completamente estranha à atividade do agente.
Por sua vez, a Teoria do Risco do Negócio sustenta que o empresário pode explorar o mercado, auferindo os lucros das suas atividades mas, para isso, deve também suportar os riscos do seu empreendimento, conforme esclarece o Magistrado Aurélio Miguel Pena [3].
Em tese, a COVID-19 poderá ser utilizada como argumento para a hipótese abstrata de caso fortuito imposto pela norma. Repita-se: em tese. Contudo, algumas situações devem ser observadas.
Antes de tudo, é necessário estabelecer um parâmetro importante e que deve ser sempre lembrado quando das alegações de excludente de responsabilidade no cumprimento das obrigações contratuais em razão do surto da COVID-19: a impossibilidade da identificação do cenário pandêmico em abstrato. Portanto, a linha entre a caracterização do evento como fortuito externo ou risco do negócio é tênue e, partindo desse pressuposto, é imprescindível observar o comportamento do fornecedor, como políticas preventivas, a impossibilidade e imprevisibilidade do evento e a desvinculação do fato com a atividade exercida.
Não se pode negar que todo contrato quando celebrado há distribuição de riscos. Na complexidade das relações contratuais existentes na sociedade, a figura do devedor e credor se misturam no mesmo polo, o que implica dizer que os riscos estão alcançados por ambos, havendo tolerância para eventos externos que podem atingir o objetivo, limitando ao patamar da razoabilidade.
A real necessidade é buscar o verdadeiro equilíbrio entre os interesses econômicos dos fornecedores, a fim de cumprir a sua própria função social, aqui traduzida na preservação e manutenção da atividade empresarial, e os direitos e garantias do consumidor, driblando o cenário pandêmico e não apenas caindo no ostracismo da alegação superficial de caso fortuito e força maior.
Deveras, a pandemia é um efeito e não uma causa, de modo que a responsabilização civil dela derivada deve ficar a cargo do contratante economicamente mais forte, em razão da atividade por ele desenvolvida, à luz da Teoria do Risco. Isso porque, a possibilidade epidêmica, na gravidade enfrentada não era estranha à ciência, vários são os indicativos apontados por extensa produção de pesquisa ao longo dos anos.
O cenário pandêmico está na ordem dos acontecimentos prováveis, a exemplo da gripe suína (H1N1) que, surgiu no México e em 2009 levou a Organização Mundial de Saúde a declarar estado de pandemia [4].
A última epidemia em escala global, inclusive, ocorreu há pouco mais de cem anos (gripe espanhola – 1918), e estudos científicos de virologia e infectologia ao longo do tempo apontavam que novas pandemias poderiam se repetir, em maior ou menor grau de letalidade sendo dúvida, tão somente, o momento em que o mundo seria contemplado com o evento [5].
Ora, no caso da pandemia da COVID-19, ainda que se tratando de uma situação extraordinária, não há justificativa para exclusão das obrigações contratuais em perspectiva genérica, sob pena de efetiva destruição da engrenagem econômica e da instauração da plena insegurança jurídica, uma vez que o risco do negócio não poderá ser suscitado como caso fortuito, já que o cenário pandêmico é, em verdade, um acontecimento provável, caracterizando-se como fortuito interno não causando, portanto, a exclusão da responsabilidade dos fornecedores de serviço, conforme dispõe a Teoria do Risco do Negócio.
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REFERÊNCIAS:
[1] MIRAGEM, Bruno. Nota Relativa à Pandemia de Coronavírus e suas repercussões sobre os Contratos e a Responsabilidade Civil. Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, ano 20, v. 1015, mai. 2020.
[2] SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 93.
[3] TJ-SP - RI: 10162586720208260196 SP 1016258-67.2020.8.26.0196, Relator: Aurelio Miguel Pena, Data de Julgamento: 30/04/2021, 1ª Turma Recursal Cível, Data de Publicação: 30/04/2021.
[4] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52078906. Acesso em 03/05/2021.
[5] Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2020/06/20/Pandemia-origens-e-impactos-da-peste-bub%C3%B4nica-%C3%A0-covid-19. Acesso em 03/05/2021.