Natureza jurídica da execução penal

06/05/2021 às 20:41

Resumo:

A execução penal é uma fase do processo que envolve atuação do Poder Judiciário e do Poder Executivo.


Em diversos países, houve projetos legais buscando dar autonomia à execução penal, misturando aspectos do direito penal, processual penal e administrativo.


No Brasil, a execução penal é considerada de natureza mista, envolvendo atividades administrativas e jurisdicionais, com a necessidade de intervenção do Judiciário em questões relevantes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Estudo sobre a natureza jurídica da execução penal, expondo as discussões atualmente existentes sobre o assunto.

RESUMO: Neste artigo buscou-se fazer uma análise sobre um ponto relevante sobre a pena e sua  execução penal. Examinou-se a natureza jurídica da execução penal uma vez que, diferente das demais fases processuais, envolve a atuação tanto do Poder judiciário, quanto do Poder Executivo, o que levanta debates sobre sua real natureza, até os dias atuais. O estudo preocupou-se em pontuar tais discussões, justificando assim a relevância da matéria.

PALAVRAS-CHAVES: execução penal; natureza jurídica.

ABSTRACT: This article sought to make an analysis on a relevant point about the penalty and its criminal execution. The legal nature of criminal execution was examined since, different from the other procedural phases, it involves the performance of both the Judiciary and the Executive branches, which raises debates about its real nature, to the present day. The study was concerned with punctuating such discussions, thus justifying the relevance of the matter.

KEYWORD: Penal Execution; legal nature.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Natureza Jurídica da Execução Penal. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

            A perfeita compreensão de um instituto jurídico perpasse sempre pela sua análise primária, qual seja a sua natureza, a fim de delimitá-lo no ordenamento jurídico.

            A execução penal é matéria das mais complexas e que menos os doutrinadores se debruçam, razão pela qual é de rigor procurar aclarar ao máximo seus meandros, a fim de orientar a aplicação pelo intérprete.

            A natureza jurídica da execução penal é tema importante, uma vez que se trata de um dos poucos institutos em que parte da sua efetivação é incumbida à administração pública, enquanto que outros meandros são de competência do Estado-juiz.

2. Natureza jurídica da execução penal

            Questão das mais divergentes é a classificação da execução penal quanto a sua natureza jurídica.

            Para Giovanni Leone[1] a função de execução penal encontra raízes entre três setores distintos: no que respeita a vinculação da sanção e do direito subjetivo estatal de castigar, a execução refere-se ao direito penal substancial; no que respeita a vinculação como título executivo, refere-se ao direito processual penal; no que toca à atividade executiva verdadeira e própria, refere-se ao direito administrativo, deixando sempre a salvo a possibilidade de episódicas fases jurisdicionais correspondentes, como nas providências de vigilância e nos incidentes de execução.

            Em vários países, principalmente na década de 70, iniciou-se o desenvolvimento de projetos legais que procuraram dar autonomia à execução penal: é o caso da Itália através da lei nº 357, de 26.07.1975; em Portugal há a intervenção da magistratura na execução da pena (decreto-lei nº 783, de 29.10.1976), assim também aconteceu na Argentina pela Lei Penitenciaria Nacional de 1958, na Polônia pelo Código de Execução das penas de 1969, igualmente ocorreu na Alemanha e Espanha.

            No Brasil, houve a quebra entre a jurisdição de julgamento e a jurisdição executória, através do Regulamento 120, de 21.01.1842.

            Já no Código de Processo Penal a execução penal foi retratada de forma mista, ou seja, administrativa e jurisdicional, recorrendo-se a essa quando da necessidade de qualquer mudança no título executivo consignado pela sentença condenatória.

            Desta forma também foi redigida a Exposição de Motivos do Projeto de Lei de Execução Penal, na qual não se atribuiu a predominância do direito administrativo, nem submeteu a execução inteiramente ao direito penal e processual penal, conferindo-lhe certa autonomia.

            Doutrina e jurisprudência divergem quanto a este requisito, sendo unânimes em reconhecer a complexidade desta classificação. Assim ensinam que:

Ada Pellegrini Grinover:[2]

Na verdade não se nega que a execução penal é atividade complexa que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo.

Paulo Lucio Nogueira:[3]

A execução penal é de natureza mista, complexa eclética, nos sentido que certas normas de execução pertencem ao direito processual, como a solução de incidentes, enquanto outros que regulam a execução propriamente dita pertencem ao direito administrativo.

Julio Fabrini Mirabete:[4]

Afirma-se na exposição de motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: ‘Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal.

 Renato Marcão:[5]

Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante a intensa atividade administrativa que a envolve. (...). Embora não se possa negar tratar-se de atividade complexa, não é pelo fato de prescindir certo rol de atividades administrativas que sua natureza se transmuda: hoje prevalece a atividade jurisdicional, não só na solução dos incidentes da execução.

Certo é que para consubstanciar a executoriedade da pena é necessária a intervenção de dois Poderes: o Executivo e o Judiciário, uma vez que para haver uma execução é preciso primeiramente um título executivo, o qual é obtido da atividade jurisdicional através do processo de conhecimento e, desta forma, a sentença condenatória, absolutória imprópria ou da homologação da transação penal só poderá ser executada pelo Poder Judiciário.

Contudo, para a execução da sanção penal é chamado largo rol de instrumentos materiais da administração pública penitenciária, o que não obsta a estrita observância das garantias próprias do estado de Direito, devendo realizar-se por intermédio da atividade jurisdicional.

Para Sidney Agostinho Beneti[6] não seria de rigor lógico assegurar a imparcialidade apenas no julgamento da acusação no processo de conhecimento, e não garantir, na execução, idêntica imparcialidade. Não se olvide que a “pena vive na execução”.[7]

Desta conclusão, na execução penal devem ser observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, da legalidade e do devido processo legal, entre outros que serão analisados neste estudo.

Envolvido também pelo fato de que qualquer incidente ocorrido na execução pode (deve) ser submetido à apreciação do Poder Judiciário, por imperativo constitucional (art. 5º, XXXV, CF), o que implica dizer que o rol previsto no artigo 66 da Lei de Execução Penal é meramente exemplificativo.

Ademais, as decisões que determinam efetivamente o destino da execução são jurisdicionais, conforme se verifica no artigo 194 da Lei de Execução Penal, onde se lê que “os procedimentos correspondentes às situações previstas nesta Lei será judicial, desenvolvendo-se perante o Juízo de Execução”.

“Ao passar em julgado a sentença condenatória, surge entre o condenado e o Estado uma complexa relação jurídica, com direitos, expectativas de direitos e legítimos interesses, de parte a parte, inclusive no que se refere aos incidentes da execução e, como em qualquer relação jurídica, os conflitos, para serem dirimidos, demandam a intervenção judicial.”[8]

Assim é o que, finalmente, conclui Mirabete endossado pelo posicionamento de Ada Pellegrini Grinover “não se nega que a execução penal é uma atividade complexa que se desenvolve, entrosadamente nos planos jurisdicional e administrativo, e não se desconhece que dessa atividade participam dois Poderes; o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e estabelecimentos penais”.

Nesse sentido é que se desenvolveu as Súmulas das Mesas de Processo Penal, atividade ligada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tendo como presidente o Professor Dante Busana; Vice-Presidentes os Professores Ada Pelegrini Grinover e Oscar Xavier de Freitas, elucidativas sobre o tema:

Súmula n. 39. A execução penal é atividade complexa que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo.

Súmula n. 40. Guarda natureza administrativa a expiação da pena. É objeto do processo de execução, guardando natureza jurisdicional, a tutela tendente à efetivação da sanção penal, inclusive com as modificações desta, decorrentes da cláusula rebus sic stantibus, incita na sentença condenatória.

Súmula n. 41. Em toda e qualquer execução penal, há pelo menos dois momentos jurisdicionais: seu início e seu encerramento.

Súmula n. 42. No curso de toda e qualquer execução penal, podem, a qualquer momento, ocorrer fenômenos processuais, sempre que o Juiz for chamado a julgar, exercendo então a função jurisdicional em toda a sua plenitude.

Súmula n. 43. Esses fenômenos processuais não se restringem aos denominados “incidentes de execução” (sursis e livramento constitucional), mas se estendem a todos os outros, como o excesso ou o desvio de execução, as modificações da pena privativa de liberdade, a unificação das penas, a reabilitação, a cessação antecipada das medidas de segurança, a conversão da pena pecuniária em pena privativa de liberdade, a revogação do sursis ou o livramento condicional etc.

Súmula n. 44. Como em todo o processo entendido como relação jurídico-processual tríplice, o processo de execução penal é processo de partes, que assegura ao sentenciado as garantias do ‘devido processo legal’, decorrente diretamente da Constituição, mesmo no silêncio dos códigos[9].

Como demonstrado, o fenômeno da jurisdicionalização aperfeiçoou-se modernamente, fixando-se na execução penal como corolário da inafastabilidade da jurisdição penal, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido não se imagina a aplicação da lei penal fora da ação estatal por outro Poder que não o Judiciário no Estado de Direito. Assim, ensina Rogério Lauria Tucci:

Considerada a infração penal com violação de bem juridicamente tutelado por legislação específica, que não só lesa ou ameaça lesar direitos individuais, mas afeta, também, a harmônica vivência comunitária, incumbe ao Estado a restauração da ordem jurídica por ela atingida, de sorte a restabelecer, simultaneamente, a paz social, assecuratória de segurança pública.[10]

Sintetizando o pensamento da doutrina nacional ao analisar o anteprojeto que veio a se transformar na atual Lei de Execução Penal, e em cuja elaboração colaborou profundamente, Rogério Lauria Tucci assinalou que “reconhecida a autonomia do Direito de Execução Penal, exercido por jurisdição especializada, cuidando, então o Projeto, de jurisdicionalizar o Direito de Execução Penal”.[11]

No entanto, destaca Salo de Carvalho[12] que o modelo escolhido pelo legislador de 1984 defronta-se com um sem número de procedimentos que engessam as decisões judiciais. Isto porque o magistrado deixa de decidir efetivamente as questões que lhe são postas, na medida em que passa a homologar laudos técnicos, como se observa nos artigos 8º, 96, 114, inciso II e 175 da Lei de Execução Penal, reconhecendo, assim, que há grande diferença entre o discurso da lei e a prática carcerária.

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Desta forma, inserida a jurisdição nos direitos fundamentais do cidadão, como direito público subjetivo constitucionalmente assegurado ao cidadão de exigir do Estado a prestação daquela atividade, de modo que a jurisdição é, então, de uma parte, direito fundamental do cidadão, e, de outra, dever do Estado.[13]

CONCLUSÃO

A jurisdição estatal não se encerra com a coisa julgada, envolve também a aplicação da pena ao condenado.

Não obstante, haja o envolvimento mais contundente do Poder Executivo, o que leva a grande parte da doutrina a apontar que se trata de um sistema misto, verifica-se que em nenhum momento a execução da pena é deixada ao arbítrio da administração pública executiva.

A inafastabilidade da jurisdição é direito fundamental previsto na Constituição da República, art. 5, XXXV, e não pode ser ignorado especialmente na fase mais importante do procedimento penal, em que se dará eficácia a sentença condenatória, mas que deve resguardar os direitos dos condenados.

 Assim, pelo sistema de freios e contrapesos, a contribuição do Poder Executivo não afasta a atuação jurisdicional, conferindo natureza singular à execução penal.

REFERÊNCIAS

BENETI, Sidnei Agostinho. Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 1996.

BRASIL. Código de Processo Penal.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei de Execução Penal.

BRASIL. Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Altera a Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, 02 de dezembro de 2003.

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal: Comentários à lei n. 7210 de 11-07-1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários à Lei de Execução Penal: lei n.7210, de 11/07/84. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

PELEGRINI GRINOVER, Ada. A exigência de jurisdicionalização da execução. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, v. 4, n. 3, 1991.

TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993.


[1] LEONE apud Mirabete, Tratado de derecho penal. Buenos Aires: 1961, p. 19.

[2] GRINOVER, Ada Pellegrini. Execução Penal. São Paulo: Max Limonad, 1987, p. 07.

[3] NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários à Lei de Execução Penal: lei n.7210, de 11/07/84. 3.ed São Paulo: Saraiva, 1996, p. 5-6.

[4] MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal: Comentários à lei n. 7210 de 11-07-1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 18.

[5] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 02.

[6] BENETI, Sidnei Agostinho. Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 07.

[7] BERTIOL, Guiuseppe. Diritto penalle, Padova, 1982, p. 806 apud BENETI, op. cit., p. 07.

[8] MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal: Comentários à lei n. 7210 de 11-07-1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 19.

[9] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 3.

[10] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 08.

[11] Ibid., p, 106.

[12] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 148.

[13] ANTUNES ROCHA, Carmem Lucia. O direito constitucional à jurisdição. São Paulo: Saraiva. 1993, p. 33.

Sobre a autora
Cristiane Pereira Machado

Assessora Jurídica de Procurador do Ministério Público do Estado do Paraná. Especialista em Direito pela Escola Superior do Ministério Público do Estado do Paraná - EMAP. Especialista em Direito penal e processual penal pela academia Brasileira de Direito Constitucional. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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