A palavra aborto tem sua origem no latim, abortus, uma derivação do termo aboriri (perecer), composto por ab (indicando distanciamento, longe de) e oriri (nascer), o que resulta em uma definição aproximada de “privação do nascimento”.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o aborto é a interrupção da gestação antes do início do período perinatal, ou seja, antes de 22 semanas completas de gestação. É considerado precoce quando feito antes da 12ª semana e tardio quando é realizado entre a 12ª e a 20ª semana de gestação. Nas palavras de Antônio Jorge Salomão:
Considera-se aborto a expulsão ou extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação. (SALOMÃO, 1994, p. 32).
A bioética classifica o aborto em quatro tipos, de acordo com a situação em que ocorre. O primeiro tipo é a Interrupção Eugênica da Gestação (IEG), sendo assim classificado o aborto que acontece por razões eugênicas, ou seja, quando a gestação é interrompida em decorrência de valores racistas, sexistas e éticos. É a única situação dentre as quatro em que a mulher é obrigada a abortar e também a única na qual sua vontade não é levada em consideração. Podem-se citar como exemplo de IEG os abortos realizados a mando de Hitler, que somente foram realizados em razão de serem as mulheres grávidas judias, ciganas ou negras (DINIZ e ALMEIDA, 1998, p. 3).
O segundo tipo é a Interrupção Terapêutica da Gestação (ITG), no qual se enquadra a gravidez que é interrompida devido à presença de riscos de morte para a mãe. O terceiro tipo, Interrupção Seletiva da Gestação (ISG), diz respeito à interrupção da gravidez em decorrência da presença de má formação e anomalias fetais, como, por exemplo, em casos de anencefalia (DINIZ e ALMEIDA, 1998, p. 3).
Por fim, o quarto tipo de aborto é classificado como Interrupção Voluntária da Gestação (IVG). A IVG é a interrupção voluntária da gravidez, seja pela vontade da mulher ou do casal, podendo ocorrer tanto em caso de estupro quanto de gravidez resultante de relação consensual. Nos países em que a IVG por meio de relação consensual é permitida, a legislação impõe limites gestacionais a serem seguidos (DINIZ e ALMEIDA, 1998, 3).
Em relação à conceituação de aborto em face ao prisma jurídico, é importante constatar que há uma vasta diversidade de variações semânticas que ocorrem quando se tenta defini-lo. Os termos selecionados para tal fim revelam de forma sutil os pressupostos morais presentes nas posições dos doutrinadores, o que gera um “impacto social causado pela escolha de cada termo” (DINIZ e ALMEIDA, 1998, p. 4).
De Plácido e Silva define o aborto como “expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do parto” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2014, p. 25).
Para Guilherme Nucci “Aborto é a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião” (NUCCI, 2011, p. 361). Ambos os doutrinadores se atêm a uma definição mais dicionarizada, o que resulta em uma imparcialidade nem sempre presente quando se trata sobre o assunto.
Por exemplo, Ronald Dworkin inicia seu livro “Domínio da vida” conceituando o aborto como “matar deliberadamente um embrião humano em formação” (DWORKIN, 2003, p. 81), posteriormente complementando a definição ao constatar que “(em relação ao aborto) opta-se pela morte antes que a vida tenha realmente começado” (DWORKIN, 2003, p. 81). Percebe-se na definição de Dworkin um pré-julgamento objetivo e enfático, baseado em suas escolhas semânticas.
Heleno Fragoso utiliza-se da palavra “homicídio” em sua definição, sendo importante ressaltar que tal utilização do termo segue em conjunto com outro aspecto polêmico sobre o tema: a religião. Segundo o autor, “deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente, homicídio” (FRAGOSO, 1986, p. 69). Ao afirmar que tal entendimento tem início com o Cristianismo, deve-se realizar uma breve regressão na história do aborto para total entendimento desse conceito.
Foi com o Cristianismo que o aborto passou a ser uma prática definitivamente condenável, ainda que até mesmo na Bíblia não haja referência direta ao aspecto criminoso do aborto, só podendo ser encontradas referências ao aborto acidental ou em caso de adultério.
No século XIV, São Tomás de Aquino introduziu a ideia da falta de alma intelectual ou racional nos fetos, o que gerou uma tolerância da Igreja Católica quanto ao aborto, uma vez que “o aborto nas primeiras semanas de gravidez, antes que o feto esteja ‘formado’, não é um assassinato porque a alma ainda não se acha presente” (DWORKIN, 2003, p. 94). Entretanto, em 1869 essa tolerância deixa de existir, em consequência de declaração da Igreja Católica de que fetos, de fato, teriam alma, condenando definitivamente o aborto e os métodos contraceptivos (REBOUÇAS e DUTRA, 2011, p. 7).
O Código de Hamurabi (2235 – 2242 A.C.) já trazia alguns artigos e sanções referentes ao aborto:
Art. 209 – Se alguém bate numa mulher e a faz abortar, pagará pelo feto 10 sicles de prata.
Art. 210 – Se esta mulher morre, matar-se-á o filho do agressor.
Art. 211 – Se é uma mulher nobre que, em consequência das pancadas, aborta, ele pagará 5sicles de prata.
Art. 212 – Se esta mulher morre, pagará meia mina de prata.
Art. 213 – Se ele bate numa serva e a faz abortar, pagará 2 sicles de prata.
O mandamento “Não matarás” é a base utilizada como argumento para os indivíduos que não aceitam o aborto, classificados por Dworkin como conservadores. O autor afirma que a grande divergência entre os conservadores e os liberais (os indivíduos que defendem o aborto), seria a questão do direito à vida do feto. As indagações dizem respeito aos diferentes momentos considerados em relação ao direito do feto como pessoa, “se o feto é uma pessoa com direito à vida desde o momento de sua concepção, ou se se torna uma pessoa em algum momento da gravidez, ou se não se tornará uma criança enquanto não nascer” (DWORKIN, 2003, p. 96).
De fato, que sendo o Estado laico a lei não pode acompanhar opinião religiosa mesmo que sejam fundamentados da Palavra de Deus, pois deve estar de acordo com os fatos sociais. O mestre Luis Flávio Gomes explicava:
Não se pode confundir Direito com religião. Direito é Direito, religião é religião (como bem sublinhou o Iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar o Direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Do Renascimento até o Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico (ou secular). A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares (laicos) (GOMES, 2008, p. 5).
Ainda que uma coisa não se confunda com a outra é de grande importância diferenciar os fatos e esclarecer a imparcialidade da lei , que não deve levar em conta religião alguma, porém a sociedade é a que mais cobra as tradições religiosas.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Apesar de abominarem o aborto voluntário e consciente, os conservadores admitem exceções em que pode ser permitido, como nas situações em que a vida da mãe corre risco ou quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto (DWORKIN, 2003, p. 96). Sobre esse assunto, Dworkin se posiciona de maneira objetiva e esclarecedora:
Quanto mais se admitem tais exceções, mais claro se torna que a oposição conservadora ao aborto não pressupõe que o feto seja uma pessoa com direito à vida. Seria contraditório insistir em que o feto tem um direito à vida que seja forte o bastante para justificar a proibição ao aborto mesmo quando o nascimento possa arruinar a vida da mãe ou da família, mas que deixa de existir quando a gravidez é resultado de um crime sexual do qual o feto é, sem dúvida, totalmente inocente. (DWORKIN, 2003, p. 97).
Dessa forma, a discussão sobre a possibilidade de escolha da mulher quanto a levar a termo ou não uma gestação, diante de variados motivos, muitos deles absolutamente pessoais, também não gira em torno da questão do direto à vida.