Desvio produtivo de tempo nas relações de consumo: Em busca da dignidade e da cidadania perdidas

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Trata-se de uma discussão sobre as relações de consumo à luz da teoria do" Desvio Produtivo de Tempo do Consumidor".

Sumário: 1. A constitucionalização da defesa e proteção do consumidor. 2. O tempo como valor jurídico e o dano pelo tempo perdido pelo consumidor: a aplicação da teoria do desvio produtivo. 3. Desvio produtivo de tempo, dano moral indenizável e sua interpretação jurisprudencial. 4. Palavras finais. 5. Referências bibliográficas.

1. A constitucionalização da defesa e proteção do consumidor

A Constituição Federal coloca a dignidade, a cidadania e a livre iniciativa como fundamentos e princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito (art. 1º, I, II e IV, da CF).

Por outro lado, ao estruturar as bases constitucionais da ordem econômica, fundada na livre iniciativa, a Constituição Federal determina que seja observado o princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, da CF).

E entre os direitos e garantias constitucionais fundamentais relacionados no art. 5º, que configuram cláusulas pétreas (cf. art. 60, § 4º, da CF), ficou assegurado que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (cf. art. 5º, XXXII, da CF).

Cumprindo a determinação constitucional, o Estado elaborou o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90, instituindo o CDC, norma de ordem pública e de interesse social, nos termos dos arts. 5º, XXXII e 170, V, da Constituição Federal (cf. art. 1º do CDC). Portanto, inegociável e insuscetível de manipulação ou desprezo.

            Inegavelmente, a defesa do consumidor adquiriu status constitucional.

            Sob tal perspectiva, adverte o professor José Afonso da Silva (2005, p. 17): “Interpretar uma Constituição significa caminhar em direção ao contexto no qual ela se move. A Constituição como repositório de valores”. E acrescenta: “É na hermenêutica contextual que a pragmática se encontra com a semântica”.

            Por isso, sob as luzes a interpretação contextual, livre iniciativa e defesa do consumidor não habitam mundos jurídicos paralelos. Ao contrário, convivem e devem continuar convivendo no mesmo universo jurídico, dentro do qual haverão de se harmonizar mediante concordância prática, sob pena de instauração de crise jurídica, a legitimar a intervenção do Estado, especialmente do Poder Judiciário.

2. O tempo como valor jurídico e o dano pelo tempo perdido pelo consumidor: a aplicação da teoria do desvio produtivo

            Com a vigência do Código de Defesa do Consumidor, que adquiriu status constitucional, a vida moderna dinamizou o mercado de consumo em todas as suas expressões enquanto espaço de aquisição de produtos e serviços, expondo, de forma ostensiva e contundente, o fator vulnerabilidade em relação à posição jurídica do consumidor, acentuadamente no que diz respeito ao desperdício do seu tempo e ao prejuízo do tempo desperdiçado.

            Nas palavras de Farias, Braga Netto e Rosenvald (2019, p. 876), “o direito não é – nem nunca foi – indiferente ao passar do tempo. O tempo repercute vivamente em múltiplas dimensões jurídicas, gerando aquisição, modificação e extinção de situações jurídicas”, acrescentando que há “situações específicas e temperadas de abusividade, relacionadas à perda de tempo útil, em que o dano indenizável tem se mostrado presente”.

            É neste cenário jurídico envolvendo fornecedores de produtos e serviços, concessionárias e prestadores de serviços públicos, instituições financeiras e, especialmente, o denominado comércio eletrônico, que desenvolveram-se a construção jurídica e a aplicabilidade da chamada “teoria do desvio produtivo do consumidor”.

A experiência trazida com a vida diária tem revelado que fornecedores de produtos e serviços, concessionárias e prestadores de serviços públicos, instituições financeiras e, especialmente, fornecedores que atuam no comércio eletrônico utilizam-se de práticas abusivas, colocando produtos ou serviços no mercado de consumo, que se caracterizam como defeituosos à luz do CDC. Diante de tal prática, muitos desses fornecedores, quando se deparam com reclamação do consumidor, não adotam uma atitude concreta para solucionar o problema, agindo com descaso e procrastinação, resistindo à rápida e efetiva resolução do problema causado em razão da relação de consumo defeituosa, que eles próprios deram causa. Esse comportamento obriga o consumidor, carente de acesso e em clara posição de vulnerabilidade, a gastar seu tempo, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades existenciais e a desviar suas atividades prioritárias para tentar resolver o problema de consumo, na esperança  de evitar um prejuízo maior, na tentativa de obter a solução para evitar o prolongamento da situação de lesividade.

Esta modalidade de conduta lesiva de fornecedores caracteriza o que se denominou “desvio produtivo do consumidor”, que se qualifica juridicamente como evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna do consumidor, no exercício da cidadania, acarretando-lhe um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável em razão da verdadeira via crucis percorrida pelo consumidor, ao enfrentar e tentar resolver problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores, que refogem da esfera do mero desconforto ou do mero aborrecimento.

Trata-se de construção jurídica para sancionar comportamentos abusivos e antijurídicos, lesivos ao consumidor, que frustram as suas legítimas expectativas e a confiança que o levaram a contratar, que ensejam o dever jurídico do fornecedor de sanar o problema ou indenizar o consumidor de forma voluntária, espontânea, rápida e efetiva.

Com base nesta construção jurídica, a denominada “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor” foi concebida e desenvolvida pelo advogado Marcos Dessaune, cuja configuração ocorre “quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências de uma atividade necessária ou por ele preferida para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável” (Desvio Produtivo do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011).

A doutrina de Marcos Dessaune exemplifica situações do dia a dia que implicam em desgaste emocional decorrente de abusos de direitos praticados por fornecedores em detrimento do consumidor, o qual se vê obrigado a comprometer parte importante de seu tempo para solucionar impasses a que não deu causa (2011, p. 47-48): "Mesmo que o Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) preconize que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo devam ter padrões adequados de qualidade, de segurança, de durabilidade e de desempenho para que sejam úteis e não causem riscos ou danos ao consumidor e também proíba, por outro lado, quaisquer práticas abusivas, ainda são 'normais' em nosso País situações nocivas como: - Enfrentar uma fila demorada na agência bancária em que, dos 10 guichês existentes, só há dois ou três abertos para atendimento ao público; - Ter que retornar à loja (quando ao se é direcionado à assistência técnica autorizada ou ao fabricante) para reclamar de um produto eletroeletrônico que já apresenta problema alguns dias ou semanas depois de comprado; (...) - Telefonar insistentemente para o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) de uma empresa, contando a mesma história várias vezes, para tentar cancelar um serviço indesejado ou uma cobrança indevida, ou mesmo para pedir novas providências acerca de um produto ou serviço defeituoso renitente, mas repetidamente negligenciado; - Levar repetidas vezes à oficina, por causa de um vício reincidente, um veículo que frequentemente sai de lá não só com o problema original intacto, mas também com outro problema que não existia antes; - Ter a obrigação de chegar com a devida antecedência ao aeroporto e depois descobrir que precisará ficar uma, duas, três, quatro horas aguardando desconfortavelmente pelo voo que está atrasado, algumas vezes até dentro do avião cansado, com calor e com fome sem obter da empresa responsável informações precisas sobre o problema, tampouco a assistência material que a ela compete".

É sabido que a Constituição Federal de 1988 educa para a cidadania, que se coloca como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito (art. 1º, II, da CF). Exatamente por isso, as atividades existenciais desenvolvidas a partir do tempo livre do consumidor adquirem relevância jurídica, como projeção concreta do direito à realização do projeto de vida, que pressupõe elevação da qualidade de vida, de forma contínua, ou seja, permanente evolução do padrão qualitativo.

Exatamente por isso, os fornecedores são obrigados a oferecer produtos e serviços com durabilidade, segurança, boa-fé, funcionalidade e eficiência, como também são obrigados a resolver possíveis defeitos com rapidez, comprometimento e eficiência.

Todavia, a realidade vivenciada no mercado de consumo se encontra, muitas vezes, em descompasso com a teoria.

Em meio a tal contexto, não raro os fornecedores se utilizam e aproveitam da vulnerabilidade do consumidor e, contrariando a postura exigida no plano normativo, o submete a situações desagradáveis e desgastantes, sempre fundamentadas pelo descaso, desqualificação, despreparo, ou simples má vontade, provocando, assim, situações prejudiciais a consumidores e a usurpação desnecessária de seu tempo livre (DESSAUNE, 2012, p. 175).

Nessa linha de raciocínio, em recente julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo, houve reconhecimento de uma realidade específica e reafirmada pela experiência diária: “Como é sabido, as centrais de atendimento de grandes fornecedores são, em regra, robotizadas, lentas e ineficazes, porquanto não atendem a demandas personalizadas. Não raras vezes, os consumidores são compelidos a repetir informações já prestadas anteriormente e, ao final, ordinariamente, não têm seu pleito atendido. Em inúmeras situações, não se desconhece que a ligação telefônica é interrompida por falha no sistema e deve ser reiniciada pelo consumidor. Em suma, a formalização de reclamações e o atendimento de solicitações, na maior parte das vezes justas, exigem dos consumidores verdadeira abdicação de seu tempo. Ressalte-se que doutrina e a jurisprudência vêm acolhendo a Teoria do Desvio Produtivo ou Perda do Tempo Livre, que se caracteriza “quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências de uma atividade necessária ou por ele preferida para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável” (cf. Apelação Cível nº 1002457- 91.2020.8.26.0032, da Comarca de Araçatuba, Rel. Des. Rosangela Telles, j. 29.03.2021).

Assim, diante de um produto ou serviço juridicamente qualificado como defeituoso, o consumidor necessitará aguardar certo tempo para que a situação seja solucionada. Quando, porém, o lapso temporal ultrapassa o limite da tolerância aferida por critério de razoabilidade e de compatibilidade com a situação concretamente vivenciada, a circunstância passa a influir no aproveitamento da produtividade do consumidor e, dessa forma, reflete no desperdício de seu tempo livre, resulta caracterizado o dano temporal decorrente da postura antijurídica do fornecedor frente ao problema por ele próprio causado.

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Portanto, no contexto da vida diária, inúmeras vezes o fornecedor não atende aos comandos contidos no CDC, ocasionando ao consumidor o desperdício de seu tempo útil, fazendo com que ele deixe de exercer atividades  que lhe seriam relevantes, renunciando de forma impositiva seu tempo produtivo, despendendo energia e custos e vivenciando insatisfações em ocasiões que a norma exige comportamento transparente e eficiente do fornecedor.

Vale destacar que o referido prejuízo causado ao consumidor, pelo desvio de seu tempo produtivo, decorre exclusivamente da conduta abusiva do fornecedor, que se eximiu espontaneamente da responsabilidade de resolver o problema de consumo, o que denota, segundo Dessaune (2017, p. 275), “evidência à relação de causalidade entre a prática abusiva do fornecedor e o evento danoso dela resultante.”

Trata-se de um dano indenizável.

Nessa perspectiva, para que o fornecedor possa ser juridicamente responsabilizado pelo dano em questão, advindo do desvio produtivo do consumidor, Dessaune (2017, p. 279) relaciona os seguintes pressupostos:(1) o problema de consumo potencial efetivamente danoso ao consumidor; (2) a prática abusiva do fornecedor de esquivar da responsabilidade pelo problema de consumo; (3) o fato ou evento danoso de desvio produtivo do consumidor; (4) o nexo causal existente entre a prática abusiva do fornecedor e o evento danoso dela resultante; (5) o dano extrapatrimonial de índole existencial sofrido pelo consumidor e, eventualmente; (6) o dano emergente e/ou o lucro cessante sofrido pelo consumidor (requisito facultativo); (7) o dano coletivo (requisito facultativo).

Nessa perspectiva, a teoria do desvio produtivo do consumidor estrutura-se na tese de que o fornecedor deve ser penalizado na esfera civil a indenizar o consumidor por dano temporal, decorrente do desgaste para resolver o problema que ultrapassa a esfera do mero aborrecimento, por configurar ilicitude da conduta em si, porque não deu solução adequada ao caso na via administrativa, a despeito das reclamações, contatos e protocolos abertos pelo consumidor. Tudo em vão.

3. Desvio produtivo de tempo, dano moral indenizável e sua interpretação jurisprudencial

Proliferam-se no país demandas dirigidas ao ressarcimento pelo chamado desvio produtivo do tempo, conforme enfatizam Tepedino, Terra e Guedes (2021, p. 67).

Isto porque, em inúmeras situações envolvendo produtos e serviços defeituosos, os fornecedores se distanciam do bom atendimento ou da satisfatória atuação para sanar o problema, comprometendo o tempo útil do consumidor.

Dentro de tal premissa, a jurisprudência tem reconhecido que desponta o dever do fornecedor em indenizar o consumidor pelos danos decorrentes da subtração do seu tempo útil, em razão de condutas ilícitas e abusivas, que redundam em desvio produtivo do consumidor. Com a perda indevida de tempo em razão de problemas que o próprio fornecedor criou através de práticas abusivas ou de inadequado atendimento, não se mostra cabível transferir ao consumidor o ônus de resolver impasses que, além de não ter dado causa, somente não são resolvidos porque o fornecedor não oferece alternativas adequadas e céleres para solucionar a questão, desconsiderando a posição de manifesta vulnerabilidade ostentada pelo consumidor.

Sob esse enfoque, o Superior Tribunal de Justiça, denominado nos meios jurídicos de Tribunal da Cidadania, decidiu de forma emblemática: "À frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, não é razoável que se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado ou, ao menos, atenuado se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo (REsp 1.634.851-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi).

Também de forma extremamente didática, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente julgamento, definiu o sentido e o alcance do desvio produtivo do consumidor nos seguintes termos: “A teoria do desvio produtivo está caracterizada quando o consumidor precisa desperdiçar seu tempo e desviar suas competências, que seriam utilizadas em atividades necessárias ou preferidas, para resolver problema criado pelo fornecedor que sequer deveria existir. O tempo, bem jurídico finito, é utilizado nas atividades existenciais, não podendo ser recuperado em hipótese alguma. Assim, a perda do tempo para resolução de problemas decorrentes da relação de consumo que, como já ressaltado, sequer deveriam existir, gera um dano extrapatrimonial indenizável. No caso, houve comprovação das diversas tentativas de resolução extrajudicial do problema causado ilegitimamente pela parte ré, situação que ultrapassou o mero dissabor, razão por que cabível o acolhimento do pedido de condenação no pagamento de indenização por dano moral (Apelação nº 1015214-54.2019.8.26.0032, Rel. Des. Adilson de Araújo, j. 27.01.2021).

A partir de 2013, o desvio produtivo do consumidor passou a ser reconhecido e aplicado na segunda instância. De acordo com um levantamento realizado por Dessaune (2017, p. 145) observou-se que entre fevereiro de 2017 a março de 2018, elevou-se intensamente a quantidade de acórdãos utilizando de forma expressa a referida teoria – que passou de 852 para 1.785, sendo ampliado de 14 para 20 a quantidade de Tribunais de Justiça que aplicaram a tese.

A título de exemplo, no ano de 2017, o Tribunal de Justiça de São Paulo impôs condenação a uma empresa do e-commerce a pagar danos morais no montante de R$ 5 mil reais a um consumidor, além dos danos materiais gerados. O consumidor adquiriu um celular que não foi entregue e, mesmo após diversas tentativas de contato e protocolos de antendimento do SAC, o impasse não foi solucionado.O referido consumidor obteve ganho de causa na primeira e segunda instâncias. Em apelação julgada pela 33ª Câmara de Direito Privado (Apelação n° 1007464-97.2017.8.26.0269), o Desembargador Relator Sá Moreira de Oliveira reconheceu que houve a perda de tempo livre para tentar solucionar a demanda. No julgamento, o Desembargador Relator assim fundamentou o seu voto:Trata-se daquelas hipóteses em que o consumidor, para resolução da questão oriunda do descumprimento contratual, tem que despender de tempo e energia consideráveis, quando poderia utilizá-lo para uma atividade necessária ou outra de sua preferência.

Também a título de exemplo, no Estado do Amazonas, um consumidor obteve indenização de R$ R$ 15 mil reais por um aparelho de televisão defeituoso, observado no momento da instalação do aparelho. O autor da ação tentou por mais de um ano a troca do produto ou o seu conserto através de diversos contatos com o fabricante, todavia, sem êxito. O Relator do recurso no TJAM, Desembargador Cláudio Roessing, em seu voto na Apelação n° 0255718-32.2008.8.04.0001, julgada pela 3ª Câmara Cível, considerou que o motivo da reparação do dano moral não foi o mero fato de o consumidor ter adquirido o aparelho com defeito, mas sim a espera excessiva para tentar solucionar o problema relativo ao produto. Nesse sentido, o Desembargador Relator fundamentou: Entendo, assim, ser notável a sensação de incapacidade do consumidor. Aliás, o descaso de uma empresa com o tempo do consumidor, levando ao seu desvio produtivo, tem sido uma problemática verificada pela doutrina especializada nos últimos anos.

Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aplicou a teoria do desvio produtivo e deferiu indenização em caso envolvendo indevida transferência bancária, em razão de desperdício do tempo na resolução do problema. Decidiu no sentido de que comprovado o defeito na prestação do serviço e o desvio produtivo do consumidor, bem como presente a relação entre ambos, resulta configurada a hipótese de reparação por danos morais (Apelação Cível nº 70081281032, Rel. Des. Cláudio Luis Martinewski).

Julgando caso de cancelamento indevido de linha telefônica e pedido de restabelecimento, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também aplicou a teoria do desvio produtivo, reconhecendo indiscutível a falha na prestação do serviço e o dano temporal causado ao consumidor para solução do problema, a ensejar indenização (Apelação Cível nº 0342604-02.2017.8.19.0001, Rel. Des. Claudia Pires dos Santos Ferreira).

Em caso envolvendo tempo excessivo para solucionar questão de bloqueio injustificado de linha telefônica móvel, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina condenou a empresa de telefonia à reparação civil mediante aplicação da teoria do desvio produtivo do consumidor, em razão da comprovação de desproporcional e intolerável desperdício de tempo do consumidor para regularizar a má prestação de serviço pelo fornecedor, considerando a essencialidade do serviço telefônico (Apelação Cível nº 0309438-06.2016.8.24.0023, Rel. Des. Marcus Túlio Sartorato).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em caso envolvendo vício do produto, aplicou a teoria do desvio produtivo reconhecendo a configuração do dano indenizável se o fornecedor, tempestivamente procurado pelo consumidor, se nega a resolver o problema, impondo verdadeira “via  crucis” ao consumidor para ter restituído o montante que pagou. Resta configurado o desvio produtivo do consumo quando o consumidor, em decorrência do descumprimento dos deveres anexos de lealdade e cooperação impostos ao fornecedor, precisa desperdiçar o seu tempo e esforço de forma irrazoável, desviando-se de suas atribuições cotidianas para superar o ilícito praticado e ter assegurado o seu direito (Apelação Cível nº 1.0395.18.000030-3/001, Rel. Des. Otávio Portes).

Também em caso envolvendo má prestação de serviço de telefonia e de internet, em recente julgamento, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu configurado dano moral indenizável diante da interrupção do serviço sem justificativa em plena época de pandemia, sob o fundamento de que a situação vivenciada pelo consumidor realmente extrapolou o simples dissabor uma vez que foi obrigado a dedicar seu tempo na solução do problema criado pelo fornecedor, que mostrou-se indiferente em relação à solução, aplicando-se ao caso a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, segundo a qual todo tempo desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados por maus fornecedores constitui dano moral indenizável (Apelação Cível nº 1007211- 90.2020.8.26.0189, da Comarca de Fernandópolis, Rel. Des. Spencer Almeida Ferreira, j. 30.03.2021).

Sob a ótica da evolução jurisprudencial, verifica-se que, em muitas oportunidades, não conseguindo o consumidor resolver o problema pelos canais de atendimento disponibilizados pelos fornecedores, vê-se compelido a contratar advogado, ingressar com ação judicial, revelando-se indiscutível a perda de um tempo útil de sua vida, tudo isso porque teve que desperdiçar o seu tempo para resolver um problema causado exclusivamente pelo fornecedor de produto ou serviço, que ao invés de se preocupar em atender e resolver o mais rápido possível os acidentes de consumo, priorizando as necessidades dos seus consumidores, tolera ou adere, ao menos com cumplicidade cômoda, a postura de desprezo e indiferença em relação ao tempo do consumidor.

É nesse contexto que a jurisprudência tem entendido que não pode parecer razoável, numa sociedade minimamente organizada, que vive na busca incessante por otimizar seu tão precioso tempo, que um fornecedor possa, impunemente, impondo ao consumidor um verdadeiro calvário para resolver problemas que foram causados exclusivamente pela negligência, para se dizer o mínimo, de um vendedor ou prestador de serviços que, em determinadas situações, pode agir até mesmo de má-fé, com o intuito de locupletar-se às custas alheias (ilícito lucrativo). Soa como um verdadeiro prêmio ao fornecedor ser compelido a, apenas e tão somente, cumprir uma obrigação de fazer para remoção do ilícito, sem nenhum ônus pelos desgastes causados pela perda de tempo injustamente imposta ao consumidor.

 Neste sentido, ressalte-se que o Superior Tribunal de Justiça decidiu no sentido de condenar fornecedores a indenizar em danos morais por desvio produtivo do consumidor, conforme retratado em decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do AREsp 1.260.458/SP, entendimento que também passou a ser adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação n.º 0020576-31.2013.8.26.0625, Relator Desembargador João Camillo de Almeida Prado Costa, integrante da E. 19ª Câmara de Direito Privado, que reconheceu, no caso concreto, a ocorrência de danos morais com base na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, enfatizando os intermináveis percalços para a solução do problemas.

Assim, verifica-se que a jurisprudência tem reconhecido e aplicado a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, segundo o entendimento que todo tempo desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados por maus fornecedores constitui dano moral indenizável.      

Não é fácil, contudo, a tarefa de distinguir o mero dissabor e o dano moral indenizável, como não é simples desvendar a eventual fronteira entre o mero dissabor e o efetivo dano temporal decorrente da perda do tempo útil e do desvio produtivo do consumidor.

Como assevera Cavalieri Filho (2007, p. 81), “importante, destarte, para a configuração do dano moral não é o ilícito em si mesmo, mas sim a repercussão que ele possa ter”.

Para tanto, esclarece Bastos (2019, p. 153), apoiado em autorizada doutrina, que “é preciso aferir a conduta do fornecedor para a resolução do problema encontrado no produto ou no serviço. Caso aja de modo vagaroso e desrespeitador, isso deverá fazer toda a diferença na apuração da responsabilidade pelo dano cronológico”.

Sob tal perspectiva é que a indenização pela perda do tempo produtivo trata de situações intoleráveis, em que há desídia e desrespeito aos consumidores, que muitas vezes se veem compelidos a sair de sua rotina e perder o tempo livre para solucionar problemas causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores, fundamentando-se na adoção da “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor”, considerando o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade, segurança e funcionalidade do produto ou do serviço, a configurar ofensa aos deveres anexos ao princípio da boa-fé objetiva e lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil do consumidor, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça ( REsp. nº 1.737.412-SE, Rel. Min. Nancy Andrighi).

A  jurisprudência tem deixado claro que indenizações decorrentes de desvio produtivo do consumidor educam e conscientizam fornecedores  que ainda não se encontram efetivamente preparados  para oferecer um atendimento rápido, transparente e eficiente ao consumidor diante de acidentes de consumo.

Para melhor contextualização, na concepção de Marcos Dessaune, criador da teoria, o desvio produtivo do consumidor seria uma terceira modalidade de ressarcimento, tem uma espécie de autonomia em relação às tradicionais modalidades (que é a reparação do dano moral e do dano material decorrente de um comportamento antijurídico – contrário ao sistema jurídico).

Analisando a evolução jurisprudencial, observa-se, porém, a tendência de inserir o desvio produtivo, a perda do tempo útil tirado da vida do consumidor, no contexto do ressarcimento ou reparação dos danos patrimoniais (materiais) e extrapatrimoniais (morais). Ou seja, a tendência jurisprudencial, o dia a dia da vida judiciária, não sinaliza o reconhecimento de uma terceira modalidade.

Conforme ressaltado, é sempre importante observar as dificuldades de aferição (constatação) do dano moral e da sua quantificação (valor da indenização). Torna-se sempre necessário avaliar a repercussão do tempo perdido no caso concreto. Analisar a situação concreta e suas circunstâncias. Analisar, argumentar e apontar no processo judicial o impacto do desvio produtivo da perda de tempo na vida daquele consumidor específico.

O pedido exclusivo de dano moral apresenta vertentes e possibilidades jurídicas, sempre aferidas pelos parâmetros da própria configuração do dano moral, que representa uma ofensa à dignidade da pessoa, que poderiam ser assim sintetizadas:

1ª vertente-possibilidade: ficou demonstrado no processo que ocorreu perda do tempo útil pelo descaso, pela indiferença, pela desorganização ou pela ineficiência do fornecedor, gerando efetivo e considerável impacto na vida do consumidor. O dano moral será reconhecido e arbitrado pelo juiz, levando em consideração as circunstâncias do caso concreto, de modo que a indenização atinja dupla finalidade: compensação para a vítima (consumidor) e fator de desestímulo para o ofensor (fornecedor), sem que se transforme em fonte de enriquecimento fácil ou sem justa causa;

2ª vertente-possibilidade: ficou demonstrado no processo que ocorreu a perda de tempo útil, mas com reduzida repercussão na vida do consumidor. O dano moral será arbitrado em valor mais moderado, mas o comportamento antijurídico terá consequência e servirá de precedente para o fornecedor ajustar seu comportamento. Ou seja, repetindo a conduta, já será considerado um causador reincidente de perda de tempo útil na vida de consumidores;

3ª vertente-possibilidade: o fornecedor demonstra no processo que o tempo perdido para solucionar a questão não foi excessivo, considerando as peculiaridades do caso concreto. Nessa hipótese, a indenização por dano moral poderá ser afastada. Estaremos diante do simples aborrecimento não indenizável.  Não é toda situação desagradável ou incômoda, causadora de contrariedade, ainda que geradora de algum aborrecimento pessoal ou desgaste emocional, que legitima a intervenção do Judiciário e assegura automático direito à obtenção de indenização por danos morais decorrentes de perda de tempo útil

Bem por isso, com a clareza e profundidade que sempre marcaram sua trajetória como referência do Judiciário Paulista, o Desembargador ÊNIO SANTARELLI ZULIANI, em voto inspirado e emblemático, consignou que “os aborrecimentos que as pessoas suportam, todos os dias, pelos inconvenientes naturais da convivência humana, são acontecimentos que compõem o bloco de sacrifícios do belo, embora difícil, milagre de viver em sociedade. Esses dissabores diários são, quando banais, necessariamente engolidos pela própria dinâmica da vida, que, inexorável e racional, imuniza a pessoa com uma dose certa de paciência e tolerância, como se fosse uma antidroga que se aplica com eficiência contra essas mazelas”.

Como esclarece Cavalieri Filho (2005, p.104-105),  no estágio atual do sistema jurídico corremos o risco de ingressar na fase da industrialização do dano moral, onde o aborrecimento banal ou a mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações. Se dano moral é agressão à dignidade humana, não basta para configurá-lo qualquer contrariedade.

Por isso, o critério jurídico para aferição da configuração do dano moral e aplicação da teoria do desvio produtivo necessariamente deverá recair sobre a realidade concretamente vivenciada, ou seja, será guiado pelo comportamento e pela repercussão extraídos do caso concreto. Incabível a adoção de critério fundado na generalização.

                         

4. Considerações finais

Em  artigo doutrinário citado por Tartuce (2020, p. 536), Pablo Stolze Gagliano faz a seguinte pergunta: “É justo que, em nossa atual conjuntura de vida, determinados prestadores de serviço ou fornecedores de produtos imponham-nos um desperdício inaceitável de tempo? A perda de um turno ou de um dia inteiro de trabalho – ou até mesmo a privação do convívio com a nossa família – não ultrapassaria o limiar do medro percalço ou aborrecimento, ingressando na seara do dano indenizável, na perspectiva da função social?”.

 O presente estudo procurou retratar a evolução do desvio produtivo de tempo nas relações de consumo, considerando, sob a perspectiva de uma hermenêutica constitucional contextualizada, que livre iniciativa e defesa do consumidor não habitam mundos jurídicos paralelos. Ao contrário, convivem e devem continuar convivendo no mesmo universo jurídico, dentro do qual haverão de se harmonizar mediante concordância prática, sob pena de instauração de crise jurídica, a legitimar a intervenção do Estado, especialmente do Poder Judiciário.

Em breve análise, o presente estudo procurou sintetizar a compreensão em torno da responsabilidade pelo dano temporal, decorrente do tempo produtivo desviado do consumidor, analisando as circunstâncias em que o tempo despendido pelo consumidor na solução de impasses com fornecedores aos quais não deu causa merece ser indenizado, e nessa acepção, após análise da evolução jurisprudencial, observou-se que os tribunais brasileiros  estão adotando essa compreensão em seus julgados, reconhecendo que o tempo se compreende como um bem jurídico de valor inestimável e, assim, na sociedade moderna, onde os indivíduos cada vez mais necessitam desse bem, ele merece atenção e respaldo por parte do Poder Judiciário.

Afirmada a relevância do tema, enfatizou-se a necessidade de interpretação dos casos concretos de forma contextualizada, para que haja efetivo equilíbrio nas relações de consumo, sob a perspectiva da vulnerabilidade, em que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário assumam um conteúdo educativo para o resgate da dignidade e da cidadania, provocando a conscientização de fornecedores que ainda não se encontram efetivamente dispostos e preparados para oferecer um atendimento rápido, transparente e eficiente ao consumidor diante de acidentes de consumo. 

Dentro do contexto analisado, buscou-se a compreensão de que produto defeituoso ou má prestação de serviço exige correção séria, rápida e eficiente, incompatibilizando-se com conduta indiferente e SAC ineficiente, sob pena de responsabilidade do fornecedor pelo dano por desvio produtivo.

O século XXI e o status constitucional adquirido pelo sistema legal de defesa do consumidor não compactuam com verdadeiras epopeias vivenciadas para resolver um problema de exclusiva responsabilidade do fornecedor. Nesse cenário, a invocação da teoria do desvio produtivo e a indenização nela fundamentada mostram-se totalmente pertinentes como antídoto contra a cultura das jornadas homéricas a serem enfrentadas pelos consumidores para resolverem problemas criados pelos fornecedores, neutralizando ou desestimulando “um belo exemplo de aventura kafkiana”.

O presente estudo aposta na contínua valorização da dignidade e da cidadania em face das relações de consumo.

5. Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Guilherme Machado de Campos Fantoni

Aluno concluinte do curso de graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus de Campinas (SP).

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo publicado como pré-requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus de Campinas (SP).

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