A SUPOSTA NOVA CARGA HORÁRIA MÍNIMA PARA AULAS DOS PROFESSORES DA REDE FEDERAL.

Leia nesta página:

O presente estudo pretende, por meio de uma metodologia exploratória analisando a legislação em vigor e os autores nacionais de Direito Administrativo, averiguar a compatibilidade da portaria 983/20 do MEC com o nosso ordenamento jurídico.

A SUPOSTA NOVA CARGA HORÁRIA MÍNIMA PARA AULAS DOS PROFESSORES DA REDE FEDERAL.

 

Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Professor de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Pernambuco-IFPE

 

INTRODUÇÃO

Em 18 de novembro de 2020, o Ministro da Educação editou a Portaria número 983 trazendo supostas novas regulamentações para a atividade docente no âmbito da Rede Federal de Ensino.

A feitura e o teor da dita portaria geraram uma série de discussões, principalmente no âmbito dos institutos federais de educação, porém um ponto dela chamou mais a atenção, qual seja: a previsão de uma carga-horária mínima de sala aula para os docentes nitidamente desproporcional.

Assim, o presente estudo pretende, por meio de uma metodologia exploratória analisando a legislação em vigor e os autores nacionais de Direito Administrativo, averiguar a compatibilidade da dita portaria com o nosso ordenamento jurídico.

 

1.Da previsão portarial

O termo “portarial” não existe no nosso vocabulário, não pode nem mesmo ser considerado um neologismo, pois ninguém o usa. Em verdade, a utilização da referida invenção linguística por nossa parte se deu com o único intuito de fazer o leitor perceber que o existente, em verdade, é a expressão “previsão legal”.

Pois bem, a portaria aqui estudada prevê o seguinte:

7.2. O regulamento das instituições fixará, na composição da carga horária de aulas de que trata a alínea "a" do item 3:

I - o mínimo de quatorze horas semanais para os docentes em regime de tempo integral; e

II - o mínimo de dez horas semanais para os docentes em regime de tempo parcial.

Por outro lado, a mencionada alínea "a" do item 3(que na verdade é o inciso I do item 3, existindo um erro de digitação na portaria) prevê o seguinte:

 

3. As atividades de ensino são aquelas diretamente vinculadas aos cursos e programas de pós-graduação ofertados pela instituição, em todos os níveis e modalidades de ensino (presencial e a distância), no âmbito da educação básica e da educação profissional e tecnológica, tais como:

I - aulas em disciplinas de cursos dos diversos níveis e modalidades da educação básica e da educação profissional, científica e tecnológica, ofertados pela instituição com efetiva participação de alunos matriculados; (Grifos Nossos).

Desse modo, conforme se percebe, a portaria simplesmente trouxe a previsão de que o mínimo de aula a ser dada por um professor da Rede Federal é de 10 horas-aula semanais para o professor em regime parcial (20 horas semanais) e de 14 horas-aula para o professor em regime integral (40 horas semanais).

Acontece que para cada hora de aula dada o professor tem uma hora de espelho, que seria a hora necessária para preparar a aula, leia-se: para poder estudar, atualizar-se, adaptar o conteúdo para a necessidade de cada aluno e de cada turma, elaborar atividades e provas. A referida hora espelho é extremamente necessária, pois a aula é apenas o resultado de todo um preparo realizado anteriormente pelo docente.  

Assim, facilmente se percebe que a aplicação da portaria em testilha inviabiliza por completo a possibilidade do professor 20 horas realizar qualquer outra atividade que não seja estar em sala de aula e diminui em demasiado a possibilidade de os professores de 40 horas realizarem outras atividades além de estar em sala de aula.

Desse modo, a portaria prejudica sobremaneira a realização da pesquisa, da extensão e também a feitura de atividades administrativas pelos docentes.

Seria, assim, a dita portaria legal e constitucional? É o que passaremos analisar.

 

2.Da ilegalidade/inconstitucionalidade da portaria 983/20.

De antemão, urge mencionar o “caput” do artigo 37 da Constituição:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Grifos nossos).

O artigo em testilha traz os cinco princípios constitucionais expressos norteadores da Administração Pública[1] e dentre eles (em destaque) está o princípio da legalidade.

E no que consiste o princípio da legalidade para a Administração Pública?

Para responder o referido questionamento é importante mencionar que o princípio da legalidade para a Administração Pública é diferente do princípio da legalidade para o particular, pois para o último o que não é proibido por lei é permitido, enquanto que o Poder Público só faz o que lei permite ou determina[2].

Assim, os agentes públicos, tal como é caso de todos que compõe os quadros dos institutos federais de educação, devem ser regidos pela lei, não podendo uma portaria conduzir a atuação dos mesmos, o que por si só torna a portaria 983/20 inconstitucional.(assim como já acontecia com a outrora portaria 17/2016 do MEC[3]).

Entretanto, existe uma possibilidade da dita portaria estar em conformidade com nosso ordenamento jurídico, qual seja: ela ser recebida, tal como deve ser, pelos institutos federais como uma mera recomendação e não como uma norma cogente.

Acontece que a possibilidade mencionada no parágrafo anterior não é uma realidade existente nos institutos federais, que muitas vezes tratam as portarias do MEC como uma verdadeira lei, o que não faz sentido no aspecto jurídico por uma simples razão de ser: os institutos federais possuam natureza jurídica de autarquia, ou seja, eles não são um órgão da União e sim outra pessoa jurídica, possuindo autonomia administrativa para o desempenho de suas funções[4].

O Ministério da Educação não realiza um controle hierárquico em relação aos institutos federais, mas sim um controle meramente finalístico, uma mera supervisão[5], o que só pode ser feito nos termos estabelecidos em LEI[6], de modo que o MEC só pode intervir em um instituto federal quando houver um desvio de finalidade legal, ou seja, quando não houver a prestação de um serviço de educação de qualidade, algo longe de acontecer, tendo em vista a reconhecida excelência dos serviços prestados pelos institutos federais em todo o Brasil.

Ademais, outro ponto do mencionado artigo 7.2 da Portaria 983/20 chama a atenção, qual seja: o mesmo prevê o mínimo e não o máximo das aulas que o docente pode dar, o que é algo que fere toda a lógica de qualquer norma regulamentando a função de um trabalhador. A título de exemplo, a CLT prevê o máximo de jornada semanal, o máximo de jornada diária, o máximo de peso que um trabalhador pode suportar, o máximo de horas extras...

Desta feita, tal como a portaria errou ao falar em alínea ao invés de inciso ao se referir ao seu artigo terceiro, tal como mencionado acima, é muito provável que a mesma tenha previsto mínimo quando, em verdade, quis prever máximo. Desse modo, nos parece razoável fazer uma interpretação conforme a Constituição sem alteração de texto, tal como se permite no nosso ordenamento jurídico[7], de modo a se ler “máximo” onde está escrito “mínimo” no referido artigo 7.2. Caso assim não se faça, o artigo 7.2 da Portaria 983/20 não poderá ser aplicado pela Administração Pública por prever um mínimo extremamente alto de tempo em sala de aula para os professores da Rede Federal, o que fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que são princípios constitucionais implícitos da Administração Pública[8].

Outrossim, ao inviabilizar/diminuir a possibilidade de pesquisa e extensão pelos professores da Rede Federal, a Portaria 983/20 fere outro artigo da Constituição, senão vejamos:  “Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. (Grifos Nossos).

Desse modo, o ensino superior no Brasil, tal como acontece no caso dos cursos tecnológicos dos institutos federais, é regido pelo tripé pesquisa, ensino e extensão. Assim, o professor da federal deve efetivamente ensinar, pesquisar e fazer extensão e não apenas ficar em sala de aula como “determina” (sugere, em verdade) a Portaria 983/20 para o professor 20 horas e praticamente faz o mesmo para o professor 40 horas.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Inclusive, a quantidade de produção acadêmica dos docentes é um dos principais critérios utilizado pelo MEC para avaliar os cursos superiores, o que torna extremamente importante a existência de tempo para os professores poderem produzir.

           

CONCLUSÕES

Diante de tudo que foi acima aludido, concluímos que:

- A portaria 983/20 é inconstitucional porque busca trazer uma norma cogente para a Administração Pública que é regida pelo princípio da legalidade;

-É possível considerar a portaria 983/20 constitucional caso a mesma seja recebida pelos institutos federais como uma mera recomendação;

-Os institutos federais, na condição de autarquia, não são subordinados ao MEC, recebendo do mesmo um controle meramente finalístico e não hierárquico; 

-É razoável se interpretar que, quando falou em o mínimo de aulas a ser dada pelo docente, a portaria 983/20 quis dizer o máximo;

-Caso não se dê a interpretação da conclusão acima, a Portaria 983/20 do MEC é inconstitucional também por não ser razoável e proporcional e por impedir/inibir a realização da pesquisa e da extensão no âmbito dos institutos federais, devendo o seu artigo não ser colocado em prática pelos institutos federais;

 

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2010

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. Malheiros: São Paulo, 2009.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de.  Princípios do Direito Administrativo.2ª ed.  Método: São Paulo, 2013.

 

 

           

 

 

 

 


[1]GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.6.

[2]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.94.

[3]A referida portaria, publicada em 11 de maio de 2016, buscou “Estabelecer diretrizes gerais para a regulamentação das atividades docentes, no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica”.

[4]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.302.

[5]ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.107.

[6]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. Malheiros: São Paulo, 2009. p.164.

[7]BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. Saraiva: São Paulo, 2010.  p. 415.

[8]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de.  Princípios do Direito Administrativo.2ª ed.  Método: São Paulo, 2013.p.125.

Sobre o autor
Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos