I – O FATO
Segundo o site do jornal O Globo, em 28 de abril do corrente ano, tem-se:
“O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou ao governo federal "a adoção de medidas voltadas à realização do Censo". Ele atendeu um pedido feito pelo governo do Maranhão. Na semana passada, o Ministério da Economia informou que a realização do Censo em 2021 estava cancelada devido aos cortes de verba.
Em outro despacho, dado algumas horas depois, Marco Aurélio liberou o caso para julgamento no plenário virtual da Corte, em que os ministros não se reúnem. Eles votam por escrito no sistema eletrônico do tribunal. Os integrantes do STF poderão começar a votar na sexta-feira da semana que vem, e terão até a sexta seguinte para se manifestar. A decisão de Marco Aurélio, que é liminar, ou seja, provisória, continua valendo. Só cairá se a maioria dos ministros do STF votar em sentido contrário.
"Defiro a liminar, para determinar a adoção de medidas voltadas à realização do censo, observados os parâmetros preconizados pelo IBGE, no âmbito da própria discricionariedade técnica", decidiu Marco Aurélio.”
Na aprovação do Orçamento de 2021, a pesquisa perdeu 96% de sua verba, que foi reduzida de R$ 2 bilhões para R$ 71 milhões. Ao final, no texto sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o valor ficou em R$ 53 milhões, ou seja, menos de 3% da verba inicial.
Se isso não bastasse há o evidente risco de contaminação de pesquisadores nessa tarefa em plena pandemia.
Dir-se-á, entretanto, na linha da ação movida pelo governador Flávio Dino, do Maranhão, exposta por Míriam Leitão em sua coluna naquele jornal, que o Censo é a nave-mãe das estatísticas brasileiras e por isso precisa ser realizado. É um desafio fazer no meio de uma pandemia, mas isso pode ser enfrentado se o IBGE se cercar de um bom conselho de especialistas que agregue epidemiologistas, sanitaristas, especialistas em saúde além dos demógrafos e estatísticos. Não é fácil fazer, mas é indispensável para o país.
De outra forma, informou o Estadão (Política) o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) abriu divergência no julgamento sobre a realização do Censo e votou no dia 12 de abril, para a pesquisa, aguardada desde o ano passado, ir a campo apenas em 2022.
Na avaliação do ministro, este é um prazo ‘razoável’ para que o governo federal possa adotar as medidas necessárias para a realização do levantamento. Em sua decisão, Gilmar apontou que o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo Censo, informou que os atrasos na fase de preparação já não permitem iniciar a coleta de dados nos próximos meses. O ministro também apontou dificuldades em alterar o orçamento aprovado para este ano para incluir os gastos com a pesquisa.
“Cuida-se de solução que, em suma, além de evitar as dificuldades inerentes ao recrutamento de mais de 200 mil agentes censitários e ao treinamento dos supervisores e recenseadores durante um período de agravamento da pandemia causada pelo SarsCoV-2, é capaz de trilhar caminho que preserva as bases da democracia representativa, especialmente a liberdade de atuação das instâncias políticas”, diz um trecho do voto.
A não realização do recenseamento pelo IBGE inibe o levantamento de indicadores necessários para: a) atualização dos coeficientes de partilha do FPE, FPM e salárioeducação, mecanismos necessários para garantia da autonomia política e financeira dos entes subnacionais menos favorecidos economicamente; e b) acompanhamento dos resultados das políticas sociais dos governos federal, estadual e municipal, de maneira a permitir o contínuo aprimoramento do sistema de proteção social brasileiro.
II – O CONCEITO DE ORÇAMENTO
Costuma-se se dizer que orçamento é o processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elabora, se expressa, se aprova, se executa e se avalia os planos e programas de obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa de receita e fixação de despesas de cada exercício financeiro.
O Orçamento além de ser peça pública, deve ser apresentado em linguagem clara e compreensível a todas as pessoas e suas estimativas devem ser tão exatas quanto possível de forma a garantir a peça orçamentária um mínimo de consistência.
Fala-se na natureza jurídica do orçamento.
A primeira corrente nasceu do jurista alemão Hoennel, o qual entende que o orçamento é sempre uma lei, na medida em que emana de um órgão legiferante, isto é, o Poder Legislativo. Por tal razão, afirma Hoennel que tudo aquilo que é revestido sob a forma de lei constitui-se em preceito jurídico, pois a forma de lei traz em si mesma o conteúdo jurídico. Nesse aspecto, qualquer lei traria inserta um comando normativo. Esta tese sofreu críticas porque classificava as normas jurídicas segundo a origem, não levando em conta o conteúdo jurídico.
A segunda corrente veio a partir de Paul Laband como resistência à anterior, entendendo que o aspecto formal não poderia, por si só, fazer do orçamento uma lei, tomando esta palavra em seu sentido material. Nesse sentido, afirma que a utilização da forma legal em nada altera o conteúdo do orçamento, não suprindo a ausência do preceito jurídico. Assim, entende que o orçamento apresenta extrinsecamente a forma de uma lei, mas seu conteúdo é de mero ato administrativo. Logo, o orçamento seria, então, apenas lei em sentido formal, materialmente não constituindo regra de direito.
A terceira corrente é liderada por Léon Duguit, o qual identifica na peça orçamentária uma mescla de lei em sentido formal e material, considerando o orçamento, em relação às despesas e às receitas originárias, um mero ato administrativo e, em relação à receita tributária, lei em sentido material, já que a arrecadação tributária dependeria de autorização orçamentária. Pelo que se observa, Duguit analisou ordenamentos jurídicos em que a autorização para a cobrança de tributos obedece ao princípio da anualidade tributária, que exige a prévia inclusão de autorização no orçamento como condição à cobrança de tributo.
A quarta corrente, por sua vez, originou-se de Gaston Jèze criador do conceito do ato-condição, defendendo a tese que o orçamento não é lei em sentido material em nenhuma de suas partes, embora tenha o aspecto formal e a aparência de lei. Afirma que tanto em relação às despesas quanto no que concerne às receitas, seria o orçamento apenas lei formal, mas com o conteúdo de mero ato-condição, sendo a lei orçamentária, em qualquer caso, o implemento de uma condição para a cobrança e para o gasto.
Como modelo autorizativo, tem-se o orçamento como lei formal, daí as ideias trazidas por Ricardo Lobo Torres (Curso de direito financeiro e tributário, 2011):
"Em suma, e inserindo-nos na discussão, basta a afirmação de que se cuida de lei em sentido formal, que estabelece a previsão de receitas e despesas, consolidando posição ideológica governamental, que lhe imprime caráter programático. Ao lado de ser lei, é o orçamento plano de governo, mas que deve possuir previsões efetivas de ingressos públicos e previsões reais de despesa, equilibradas com aqueles".
Mas o orçamento é uma peça que é formalmente instrumentalizada por meio de lei, mas, que, materialmente, se traduz em ato político-administrativo.
Daí as reservas que existem quanto a interferência do Judiciário num ato precípuo do Legislativo e do Executivo.
III – A FORMULAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Temos a realidade presente dos direitos subjetivos públicos e um Estado diverso do Estado liberal, onde a preocupação se alicerçava no mérito da limitação do Poder político.
Para Locke (Two treatises of Government) onde explica a teoria do contrato social, idealiza-se o homem livre e igual por natureza, sendo o Estado constituído apenas para garantir os seus direitos.
Deve-se a Jellinek a elaboração da teoria dos direitos subjetivos públicos (System der subjektiven öffentliche Rechte, 1892). O tipo histórico do Estado de Direito moderno diferencia-se dos demais por reconhecernos seus súditos pessoas com direitos a reivindicar a proteção do Estado. O Estado possui personalidade que o limita juridicamente, pois sujeita-se a direitos e deveres. O status ou personalidade caracteriza-se como ̈uma relação com o Estado que qualifica o indivíduo ̈, conferindo-lhe como conteúdo o ser jurídico, como ensina Alexy, e não o ter jurídico de uma pessoa.
Sabe-se que Jellinek classificou os direitos subjetivos públicos em 4 (quatro) status consoante a posição ocupada pelo indivíduo em relação ao Estado: no status passivo, o indivíduo encontra-se numa posição de subordinação ,despido de personalidade, no status negativus, há o reconhecimento ao indivíduo de uma esfera de liberdade individual intangível pelo Estado; no status positivus, o indivíduo é reconhecido como sujeito do poder político, com direitos a prestações fornecidas pelo Estado; por último, no status activus, o indivíduo angaria o direito de participar ativamente do poder político.
O moderno Estado Democrático de Direito reclama uma Democracia Participativa aberta, dentro de uma Constituição aberta a todas as instâncias de participação permanente.
Fácil e ver que os esquemas político-institucionais baseado sem estruturas antigas, do tipo liberal-individualista, não se adaptam às novas exigências da ordem coletiva.
O Estado tem o dever de zelar pela saúde, a educação, a segurança, o meio ambiente, pela proteção ao consumidor. Dir-se-á, como revela Luíza Cristina F. Frischeisen (Políticas Públicas – A responsabilidade do administrador e do Ministério Público, Max Limonad, 2000, pág. 146 a 150), as normas constitucionais da ordem social constitucional delimitam políticas públicas, vinculantes para o administrador, que visam o efetivo exercício dos direitos sociais para a realização dos objetivos daquela: o bem-estar social e a justiça social, sendo que o seu descumprimento gera responsabilidade para a Administração, pois tal conduta é ilegal e inconstitucional.
Parece-me, na linha de Eduardo Talamini (Tutela relativa aos deveres de fazer de não fazer – art. 461, do CPC e art. 84 do CDC) deve-se distinguir entre as hipóteses normativas constitucionais de que se extrai apenas o dever de o Estado realizar políticas públicas de caráter social e aquelas que, mais do que a imposição de diretrizes objetivas estatais, embasam verdadeiros direitos subjetivos públicos. No caso de exigência quanto a formulação de políticas públicas, dir-se-á que há restrições á tutela jurisdicional. No segundo caso, é viável o ingresso no Judiciário para a fruição completa do direito assegurado no texto constitucional.
Adito a isso se cuida de decisão política do Estado que, a pretexto da escassez de verbas públicas, descumpre deveres instituídos em lei federal , no caso, a periodicidade decenal do Censo Demográfico do IBGE (art. 1º da Lei 8.184/97). Em havendo essa omissão da Administração e do Legislativo cabe a intervenção do Judiciário para cumprimento da lei.
Falar-se-á que o administrador público tem discricionariedade quanto a essa atuação.
Mas, há limites implícitos e explícitos. Tem o administrador público o dever constitucional de respeitar os limites mínimos de destinação de recursos públicos para manutenção e desenvolvimento do ensino. O não oferecimento e a oferta irregular do ensino obrigatório importam responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 2º, da Constituição Federal).
Diversa é a situação da ocorrência de uma grave pandemia em que se constata a omissão do Poder Público em combatê-la. Aqui não se abre qualquer discricionariedade ao Administrador na definição de prioridades ou de meios a utilizar. Há, ao invés, inequívoca violação de dever constitucional imposto, sendo caso de responsabilidade, abrindo-se ao cidadão evidente direito subjetivo público, sendo de permitir o emprego da tutela jurisdicional para constranger a Administração a efetuar programa de ação social. Tal é exigir junto ao Judiciário a implementação de política pública, refletindo, cada vez mais, a efetiva participação da sociedade civil nos desígnios da Nação. Nessa hipótese, o patrimônio valorativo de certa comunidade foi agredido de maneira injustificável do ponto de vista jurídico.
Sobre o tema disse Janaína da Silva Rabelo (A cláusula da reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais no ordenamento jurídico brasileiro. O papel do Poder Judiciário na defesa dos direitos fundamentais:
“A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança.”.
Nesse sentido, Antônio Augusto Cançado Trindade (Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: SafE, 1997, p. 364) enumera estratégias políticas de efetivação desses direitos, que podem e devem ser exigidos de imediato: a) Obrigação de adotar medidas após a entrada em vigor desses direitos; b) compromisso de garantir o exercício desses direito sem discriminações; c) aplicação imediata de determinadas disposições por órgãos judiciais e a institucionalização de mecanismos e institutos do ordenamento jurídico nacional; d) Obrigação de realizar esses direitos sem retrocessos; e) Obrigação de prestar um padrão mínimo de direitos humanos e, em caso de não cumprimento, provar que o máximo de recursos foi utilizado de forma absolutamente eficiente; f) Obrigação de proteger as partes mais vulneráveis da sociedade por meio de programa específicos de prestação de direitos, como disse Janaína da Silva Rabelo (obra citada).
IV – O LIMITE DO POSSÍVEL
Mas, há o limite do possível.
"Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas" (REsp. 169.876/SP, Min. José Delgado, Primeira Turma, j- Em. 16.6.1998).
Disse bem o Estadão, em editorial, no dia 1 de maio do corrente ano:
“Não há dúvida de que o censo periódico é instrumento fundamental para a implementação de políticas públicas. No entanto, por mais que haja boas razões aconselhando a realização do censo neste ano – e que o seu adiamento seja mais um sintoma da falta de planejamento do governo federal –, não cabe a um ministro do Supremo impor ao Executivo federal essa obrigação.
O raciocínio exposto na decisão – a falta de dados prejudicaria a elaboração de políticas públicas, políticas essas que implementam direitos fundamentais previstos na Constituição e, portanto, a não realização do Censo feriria “a própria força normativa da Lei Maior” – não autoriza o Judiciário a ingressar em esfera própria do Executivo.”
É dito que a má opção do administrador na escolha de errôneas soluções, deverá ter o seu julgamento nas urnas.
Os recursos econômicos do Estado são limitados – nem sempre suficiente para o desenvolvimento simultâneo de todas as suas tarefas, inclusos os programas de ação social constitucionalmente previstos. É a chamada reserva econômica da possível, como já advertia Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, IV, n. 77, pág. 340), na linha de Konrad Hesse.
Sendo assim cabe aos Poderes Executivo e Legislativo a distribuição orçamentária dos recursos a serem utilizados nas diversas políticas públicas constitucionalmente impostas. É nesse sentido que há certa carga de discricionariedade. Atribui-se àqueles poderes uma ampla margem de manobra para a eleição de meios a empregar. Não há discricionariedade na adoção, ou não, das políticas públicas em exame – e, sim, na eleição orçamentária das prioridades e na eventual definição do conteúdo da ação.
Sendo assim a previsão orçamentária de recursos, a programação dos gastos públicos, a arrecadação de receitas, as leis orçamentárias e de responsabilidade fiscal são também determinantes na definição das estratégias, programas e políticas públicas do Estado.
Trago a lição de Fernando Borges Mânica (Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169-186, jul./set. 2007):
“No caso, a Corte alemã analisou demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique em face da política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em 1960. A pretensão foi fundamentada no artigo 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.
Ao decidir a questão o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva – no caso aumento do número de vagas na universidade – encontra-se sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar, de maneira racional, da sociedade. Ou seja, a argumentação adotada refere-se à razoabilidade da pretensão. Na análise de Ingo SARLET, o Tribunal alemão entendeu que “(...) a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. “
Tal não foi entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça.
O Ministro Herman Benjamin, nos autos do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 11075112, falou sobre a aplicação alemã da reserva do possível. Disse ele que o tema deve ser analisado à luz da realidade social, econômica e política brasileira. A teoria da reserva do possível, importada do Direito alemão, tem sido utilizada constantemente pela administração pública como escudo para se recusar a cumprir obrigações prioritárias. Não deixo de reconhecer que as limitações orçamentárias são um entrave para a efetivação dos direitos sociais. No entanto, é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada. Na verdade, o direito alemão construiu essa teoria no sentido de que o indivíduo só pode requerer do estado uma prestação que se dê nos limites do razoável, ou seja, na qual o peticionante atenda aos requisitos objetivos para sua fruição. Informa a doutrina especializada que, de acordo com a jurisprudência da Corte Constitucional alemã, os direitos sociais prestacionais estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade (Krell. Andreas J. Controle judicial dos serviços públicos na base dos direitos fundamentais sociais in SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituição Concretizada – Construindo Pontes entre o Público e o Privado. 2000, p. 41). Ora, não se podem importar preceitos do direito comparado sem atentar para as peculiaridades jurídicas e sociológicas de cada país. A Alemanha já conseguiu efetivar os direitos sociais de forma satisfatória, universalizou o acesso aos serviços públicos mais básicos, o que permitiu um elevado índice de desenvolvimento humano de sua população, realidade ainda não alcançada pelo Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna. Por esse motivo é que o indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Situação completamente diferente é a que se observa nos países periféricos, como é o caso do Brasil. Aqui ainda não foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna.
Para a realidade brasileira, observo as palavras do ministro Roberto Barroso (A falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para atuação judicial. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 2007. Disponível em: https://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf).
Os recursos públicos seriam insuficientes para atender as necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais.
Entretanto, a invocação desta cláusula pelo Estado, na intenção de justificar a não realização de determinadas ações essenciais à efetivação de demandas sociais ou individuais, somente se apresentará legítima se comprovada for a alegada insuficiência de recursos.
Sendo assim observo a lição do ministro Celso de Mello na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45:
“[...] Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.”
Por outro lado, lecionou o ministro Celso de Mello, no julgamento do RE 581352 AgR / AM – AMAZONAS. AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Julgamento: 29/10/2013. Órgão Julgador: Segunda Turma:
“Mais do que nunca, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa. Isso significa que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado da separação de poderes), sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde. Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
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É que, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário (de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito), inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivam restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República. (...) O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República. Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.”