O sistema africano de proteção aos direitos humanos: solidificação e desafios

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O propósito deste artigo é analisar o sistema africano de proteção aos direitos humanos, suas instituições e suas ações, contrastando-as com a realidade fática do continente e levando em consideração a tamanha diversidade entre seus povos.

Introdução

Consiste, hoje, em grande desafio a defesa dos direitos humanos, mesmo com o extenso histórico de conflitos político-sociais que ocorreram, pelo menos, desde a Queda da Bastilha, e que servem de referência para as mais variadas demandas atuais, bem como para a ordem jurídica da maioria dos países minimamente democráticos, que se fundam no pretexto da liberdade e da existência de uma sociedade na qual se busca a convivência harmônica. No entanto, nunca foram extintos, na humanidade, os típicos antagonismos que deram origem às grandes guerras entre os povos, ao genocídio em massa, bem como à discriminação e perseguição de determinados grupos com base em características comportamentais, de origem ou raça. Pode-se citar, a título de exemplo, o Genocídio Armênio, no início do século passado, que se deu pela deportação forçada e assassinato em massa da população armênia que estava estabelecida no então Império Otomano há séculos, sob a pretensa razão de que os armênios estavam, como aduz Jacques Sémelin, a serviço dos inimigos, constituindo um obstáculo para a criação e solidificação da Turquia, que eventualmente saiu vitoriosa do conflito. E é da hostilidade que se nota o quão imprescindível é a salvaguarda dos direitos fundamentais do ser humano, que vieram a ser tutelados por instituições criadas especialmente com essa finalidade. Dentre estas instituições figuram as cortes regionais de proteção aos direitos humanos, estabelecidas por tratados internacionais com o fito de proteger as populações dos Estados que aderiram ao respectivo tratado contra graves violações aos direitos humanos. Existem, hoje, três grandes sistemas regionais: o africano, o americano e o europeu, cada qual com suas particularidades e atributos. O sistema africano de proteção aos direitos humanos, objeto deste trabalho, é o mais recente dos três, tendo entrado em vigor na sua primeira forma em 1986, com a ratificação por maioria simples dos membros da então Organização da União Africana, predecessora da União Africana.

1. O sistema africano

É sabido que a África tem graves problemas. Fala-se dos países com fronteiras arbitrariamente desenhadas e das frágeis democracias que têm sofrido com constantes tentativas de golpe de estado, algumas bem-sucedidas, como se pode constar do atual presidente da Guiné Equatorial, no poder desde 1979 depois de prender e executar seu tio e predecessor num golpe envolvendo as forças armadas daquele país. Tem havido, no entanto, forte movimento progressista no continente marcado por divisões, e a criação da União Africana, em 2002, reflete isso, tendo como um dos seus objetivos “promover os princípios e as instituições democráticas, a participação popular e a boa governança”, sendo feita alusão, no Ato Constitutivo da União Africana, à proteção dos direitos humanos.

Já antes da criação da União Africana, no âmbito da sua antecessora, a Organização da União Africana, foram elaboradas as instituições que viriam a zelar pela proteção e difusão dos direitos humanos no continente, que consistem na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (com sede em Banjul, Gâmbia) e no Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos (com sede em Arusha, Tanzânia), estabelecidos, respectivamente, na Carta de Banjul de 1981 e em seu Protocolo, adotado em 1998.

O movimento pela consolidação de um sistema regional de proteção aos direitos humanos na África remonta à sua descolonização e à formação dos Estados modernos no continente, em meados do século passado, tendo alguns países obtido pacificamente sua independência, enquanto outros se envolveram em grave conflito com as potências europeias, como aconteceu na Algéria, especialmente entre os anos de 1954 a 1962, quando cerca de cento e cinquenta mil soldados argelinos foram mortos, segundo estimativas, no movimento de resistência às forças francesas.

A base do sistema africano de proteção aos direitos humanos está na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (também conhecida como Carta de Banjul) e se formou nos anos 80, com a elaboração do texto e consequente aprovação, por unanimidade, na 18ª Assembleia da Organização da União Africana, realizada em junho de 1981 em Nairóbi, no Quênia. Até a elaboração deste trabalho, 54 Estados ratificaram a Carta, sendo a adesão mais recente por parte do Sudão do Sul, país que obteve sua independência em 2011.

Tanto a Carta de Banjul quanto seu Protocolo foram largamente inspirados nos sistemas europeu e americano, cujas Convenções foram assinadas em 1950 e 1969, respectivamente, porém tendo a Carta, como aduz Piovesan (2019, p. 271), “feição própria e peculiar, que a distingue dos demais instrumentos internacionais e regionais de proteção dos direitos humanos”, em vista da série de previsões, direitos e deveres aplicados aos Estados e também aos cidadãos. Na mesma linha, sustenta Comparato (2015, p. 410):

A grande novidade desse documento normativo, aprovado na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, reunida em Nairóbi, no Quênia, em junho de 1981, consistiu em afirmar que os povos são também titulares de direitos humanos, tanto no plano interno como na esfera internacional.

É importante salientar que essas diferenças se dão, em grande medida, graças a traços que salientam o Pan-Africanismo, movimento que, em sua forma moderna, ganhou força em meados do século XX, especialmente após a independência do Gana, na África Ocidental, liderada por seu primeiro presidente Kwame Nkrumah, que também liderou esforços para a criação da extinta Organização da União Africana. Samuel Makinda e Wafula Okumu afirmam que foram três os processos pelos quais o colonialismo ajudou a causa pan-africana, a saber: a humilhação coletiva, a fundação de modernas comunidades políticas e a universalização dos valores europeus.

Pode-se associar a humilhação coletiva com a expropriação, a escravidão e a imposição forçada de um estilo de vida europeu. A insatisfação com estes elementos resultaram da independência das nações que, apesar de sua heterogeneidade, surgem num ideário de pertencimento, seja com Gana, Angola ou Senegal. Os valores europeus, por sua vez, perpassam tanto a questão de identidade nacional quanto a ideia de coletivismo, contida na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

A peculiaridade da Carta se dá pela alusão à diversidade étnico-cultural e à luta dos povos africanos pela autodeterminação ao longo dos séculos, reiterando ainda, diferentemente dos modelos europeu e americano, além dos direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais, afirmando que a satisfação destes garante os primeiros.

Por fim, a Carta estabelece ainda deveres dos próprios indivíduos. Nos artigos 27 a 29 são estabelecidas as responsabilidades para com os direitos alheios, à moralidade, à segurança e ao interesse coletivo, fazendo-se alusão ainda ao dever de respeito para a família, de estar à disposição aos interesses da comunidade bem como contribuir para a promoção e concretização da unidade africana.

2. A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

De nada valeria serem previstos todos os direitos à população sem meios de garantia. A Carta, portanto, prevê, como parte das “medidas de salvaguarda”, a criação de uma Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, incumbida, oficialmente, da proteção e da promoção dos direitos humanos e dos povos, bem como da interpretação da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

A Comissão é, conforme as disposições do texto, constituída por onze integrantes, escolhidos entre “personalidades africanas da mais alta reputação, conhecidas por sua alta moralidade, integridade, imparcialidade e competência nos assuntos de direitos humanos e dos povos”, a serem eleitos mediante voto secreto na Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, podendo cada Estado nomear dois candidatos. Os eleitos servem por seis anos, sendo possível a reeleição.

De modo semelhante ao que é praticado nos sistemas europeu e americano, a Comissão só admite a análise de casos quando esgotados todos os recursos internos, feita na Carta a exceção aos casos em que a demora no procedimento interno no Estado-parte seja excessiva. Há ainda a possibilidade de um Estado pedir explicações a outro caso acredite que este incorre em violação às previsões da Carta. 

3. O Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos

Com a criação da União Africana, verificou-se a necessidade de que fossem melhor estruturadas as “medidas de salvaguarda” aos direitos humanos no continente. Estabelecido o Tribunal por meio do Protocolo à Carta de Banjul, tem competências semelhantes às da Comissão, complementando as atribuições desta.

O Protocolo estipula que a Corte é formada por onze juízes eleitos entre juristas que gozem de elevada autoridade moral, legal, judicial ou acadêmica reconhecida na área de direitos humanos, não sendo permitida a existência de mais de um juiz por nacionalidade. Os juízes são eleitos mediante processo semelhante ao da Comissão, para um período de seis anos, sendo admitida a reeleição.

O Tribunal exerce competência consultiva, opinando sobre qualquer documento que verse sobre direitos humanos, a pedido, na forma do artigo 4º do Protocolo, de qualquer dos Estados, da União Africana e de seus órgãos e de qualquer organização africana reconhecida pela União. Exerce o Tribunal ainda competência contenciosa, apreciando casos que podem ser apresentados por qualquer dos legitimados no caso anterior, conforme o artigo 5º do mesmo Protocolo, podendo receber ainda petições de Organizações não Governamentais e mesmo dos cidadãos, se o Estado em questão tiver declarado sua anuência, nos termos no artigo 5(3), bem como do artigo 34(6) do Protocolo.

A Corte já condenou, por diversas vezes, alguns Estados, como é o caso de Burkina Faso, condenado pelo assassinato de um jornalista com base nos artigos 1º e 7º da Carta de Banjul.

4. Desafios à concretização da Carta

Em vista de tudo o que foi analisado, infere-se que o sistema africano vigente é sólido e serve, ao menos teoricamente, ao seu propósito. Pode-se, entretanto, apontar várias questões que põem em xeque a concretização da Carta e de seu Protocolo. O objetivo de proteger e promover no continente os direitos humanos vai de encontro com conflitos regionais de natureza política, econômica e étnico-racial, por exemplo. Parte dos países tem mais relações externas ao bloco que internamente, e o território africano não é bem integrado. Além disso, existem ainda as ambições de cada país, ou as de seus líderes, cujas ambições pessoais, em alguns casos, se confundem com as primeiras. Há hostilidades quanto ao uso dos recursos naturais compartilhados, como é o caso das recentes tensões entre Egito e Etiópia envolvendo a construção de usinas hidrelétricas, movimentos de independência, como no Saara Ocidental, além de uma guerra civil na Somália que se arrasta por décadas. Tudo isso influencia diretamente na proteção dos direitos humanos, considerando que os Estados darão prioridade ao combate ao inimigo ao invés do bem-estar de suas populações. Os conflitos, por sua vez, geram ondas de refugiados que, ao se depararem com uma realidade cruel em sua própria terra, põem-se em marcha em busca de paz e alimento, que tem faltado inclusive nos países relativamente estáveis. 

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Impõe-se ainda a questão das frágeis democracias, algumas das quais sancionam a detenção arbitrária e execuções sumárias de estudantes, jornalistas e políticos adversários sem o devido processo legal, como apontado em inúmeros relatórios produzidos pela Anistia Internacional.

Há ainda, notavelmente, membros das instituições “de salvaguarda” ligados a governos, inclusive diplomatas, constituindo impedimento ao regular funcionamento das mesmas, como afirma Rachel Murray, em artigo publicado no African Human Rights Law Journal.

É preciso avaliar como o Tribunal continuará a se portar conforme novos casos forem apresentados, bem como sua relação com a Comissão, que aparentemente tem atribuições análogas. No sítio da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, entretanto, faz-se alusão à possibilidade de que o Tribunal transfira um caso para análise da Comissão, bem como requerer pareceres desta, podendo a Comissão, por sua vez, comunicar ao Tribunal a falta de ação de Estado quanto ao cumprimento de medidas que lhe foram aplicadas, havendo a possibilidade ainda de que comunique por si mesma ao Tribunal violações em massa aos direitos humanos. Vale ressaltar que estas regras foram elaboradas internamente, uma vez que no Protocolo à Carta de Banjul há apenas breves menções quanto ao relacionamento entre estas instituições, que têm muito a colaborar para o desenvolvimento da África em matéria de direitos humanos, aplicando os princípios de tolerância, respeito mútuo e união entre os povos, estabelecidos na Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, bem como no Ato Constitutivo da União Africana. A observância destes princípios é vital para a estabilização do continente e para a inserção e reconhecimento da União Africana como bloco relevante no cenário internacional.

Referências bibliográficas

Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Disponível em: www.achpr.org. Acesso em: 20 de março de 2021.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

DRAPER, Katherine. Why a War Without a Name May Need One: Policy-Based Application of International Humanitarian Law in the Algerian War. Texas International Law Journal. Disponível em: web.archive.org/web/20161107072951/http://www.tilj.org/content/journal/48/num3/Draper575.pdf. Acesso em: 19 de março de 2021. 

International Amnesty. Eritrea: Rampant repression 20 years after independence. Disponível em: www.amnesty.org/en/latest/news/2013/05/eritrea-rampant-repression-years-after-independence. Acesso em: 21 de março de 2021.

MAKINDA, Samuel. OKUMU, Wafula. The African Union: challenges of globalization, security and governance. 1ª ed. Nova York: Routledge, 2008.

MURRAY, Rachel. The African Charter on Human and Peoples’ Rights 1987-2000: An overview of its progress and problems. African Human Rights Law Journal. Disponível em: www.ahrlj.up.ac.za/images/ahrlj/2001/ahrlj_vol1_no1_2001_rachel_murray.pdf. Acesso em: 21 de março de 2021.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

SÉMELIN, Jacques. Purificar e destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. Disponível em: pt.african-court.org. Acesso em: 20 de março de 2021. 

Sobre o autor
Henrique Rafael Batista da Silva

Graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará. Estagiário de Direito no Ministério Público Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo elaborado para fins de avaliação na disciplina optativa de Acesso à Justiça e Direitos Humanos, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

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