Análise Comparativa entre a obra literária “Vigiar e Punir” e o documentário a “A 13ª Emenda” sob a óptica da Criminologia

Leia nesta página:

Acareação entre a obra foucaultiana e o documentário a “A 13ª Emenda”, sob a óptica da Criminologia

Preliminarmente, antes de realizarmos a “acareação” de duas obras, demonstrando os aspectos congruentes e dissonantes entre as mesmas, faz-se necessário inteirar-se, em síntese, do conteúdo das mesmas.

A obra magistral do filósofo francês Foucault adentra a história da punição, desde o suplício físico público até a atual penitenciária, com uma crítica ao discurso de ressocialização, regeneração e readaptação do indivíduo que comete delitos.

Assevera o autor acerca de um mecanismo de vigilância, em que o sujeito é monitorado, passando a ser um produto em uma grande máquina de produção, isto é, o corpo humano atingirá diversos estágios em seu confinamento moderno, qual sejam: família, escola, faculdade, escritório, dentre outros. Este confinamento pressupõe uma “inclusão” dos sujeitos na sociedade, no entanto, na hipótese de praticar delitos, poderá ser confinado de outra maneira, passando pela “exclusão” da sociedade. Assim, a mesma sociedade que o incluirá, também poderá exclui-lo. Ao passo em que o corpo torna-se um alvo do Poder, podendo ser moldado, rearranjado, treinado e submetido para tornar-se útil, mesmo que nas duas formas de confinamento — incluído ou excluído.

Cria-se, então, a figura do delinquente, que é excluído da sociedade, quando não poder conviver ou contribuir com a ordem e progresso da mesma sociedade. Assim, coabitamos nas estruturas massivas de vigilância para sermos incluídos, como nas escolas, faculdade, escritório, igrejas, etc, e passamos a nos contentar com os delinquentes nas penitenciárias ou clínicas psiquiátricas a fim de separa-lo, para então “cura-lo”.

Pois bem, falhamos vergonhosamente neste ponto.

Ademais, quanto ao documentário a “A 13ª Emenda”, apesar de basear-se na realidade do sistema carcerário dos Estados Unidos, é inevitável que façamos paralelos com a realidade de nosso sistema carcerário brasileiro, considerando a onipresença de diversos elos com a escravidão, e principalmente, as discriminações presentes no cotidiano do brasileiro.

Isto é, o documentário nos faz compreender porque a maior parte da população carcerária é negra, e que o fim da escravidão não significou a liberdade dos mesmos, já que houve a condenação a um novo tipo de “punição”.

Enquanto a obra literária nos embala historicamente na origem da punição, e consequentemente, o combo da vigilância e a punição, o documentário da 13ª Emenda nos demonstra um esquema de exploração da mão-de-obra do corpo humana, uma “escravatura” maquiada, aplicada no sistema carcerário.

É notório que o título do documentário já nos familiariza, de alguma forma, com a legislação. E não é a toa, pois a 13ª Emenda foi um ato legislativo, que modificou a constituição estadunidense, “abolindo” a escravidão a partir de meados dos anos 60.

Embora, de maneira esdrúxula, havia uma ressalva no texto constitucional, com uma exceção que autorizava o trabalho escravo para aqueles que fossem condenados no âmbito penal. Uma ressalva opressiva o suficiente, para abrir portas para uma migração de escravos, que mesmo após a alforria que os libertou “em partes”, continuaram sob punição. Isto porquê, qualquer nível de delito era punido severamente com o encarceramento e o consequente trabalho forçado.

Ora, impossível não familiarizarmos com a expressão de Foucault em sua obra literária, o uso do “panóptico”, assim como no documentário, podemos analisar que o Estado estabelece uma estratégia de exclusão da sociedade através do encarceramento, com o pacato discurso de remédio ao delinquente que passará por uma espécie de “ressocialização”, ao passo em que se submete seu corpo à mão-de-obra gratuita, que passou a ser utilizada, evidentemente, como uma fuga das crises econômicas e políticas à época e prevalece aos dias atuais.

Não obstante os longos anos com um sistema prisional falho, não é de surpreender-se a ausência de interesse política e econômica em um novo modelo de “resolução” dos delinquentes.

Na verdade, há um imenso interesso envolvido destes, dado que, é extremamente favorável o presente cenário para o crescimento apenas vertical da economia e política, na mesma oportunidade em que se enfraquece a população carcerária.

Enquanto a obra francesa foi publicada em meados dos anos 70, o documentário estadunidense é bem atual, tendo sido produzido pela Netflix em 2016.

Tenho que uma das principais diferenças entre as duas obras é que o livro Vigiar e Punir aborda, em lato sensu, da origem histórica da punição, meios de punição, e após a leitura do livro, consideramos a vigilância, nos moldes do panoptismo, uma forma de punição. Diferente do documentário, em stricto sensu, me remeteu a uma problematização mais específica da punição.

Ora, no livro de Foucault leio de forma ampla a origem da punição e breves comparações, enquanto no documentário, percebo uma especificidade mais estrita ao tratar da punição, especialmente nos Estados Unidos, onde o documentário foi produzido. Explico: através do documentário, é possível estabelecer uma conexão entre o sistema carcerário com a abolição da escravatura. Basta analisar os encarcerados em tela, grande maioria é a “minoria”, os negros e os pobres.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Após a 13ª Emenda, o governo estadunidense criminalizou banalidades como delitos, por exemplo, morar na rua. Na mesma época em que são libertos os escravos, não lhes garantindo o mínimo de dignidade, os privamos de sua liberdade novamente, por estarem morando nas ruas, andarem descalços, etc. Em um cenário extremamente vertical, não é crível que esperássemos que, após anos de escravidão, os ex escravos evoluíssem instantaneamente.

Penso que, ambas obras são essenciais ao operador de direito, por obrigar-nos a refletir a origem da punição, sua metamorfose até os dias atuais em que temos um sistema carcerário falho com relação ao delinquente, mas útil ao Estado, como uma tecnologia de poder, iludindo a sociedade com a concepção de “remédio” ao delinquente. O que parecia uma “ressocialização”, na verdade, é apenas uma escravatura pós-moderna. Uma atualização do que, aparentemente, havia sido abolido.

Nesse sentido, é romântico pensarmos que a escravidão foi abolida, diante da existência dela, ou dos resquícios dela, nas entrelinhas dos sistemas carcerários até o momento.

Ao menos no sistema carcerário brasileiro, percebo que não é apenas a superlotação que afasta a possibilidade de uma vida digna, mas também a discriminação e preconceito da sociedade que convive fora do sistema carcerário, cegos pelo desejo de punir o delinquente, desatentos à necessidade de uma reforma desses sistemas de punição, já que não causam o efeito almejado de reeducação e/ou restauração. Do contrário, pois o ócio do “recluso” é uma espécie de pós-graduação, em que um indivíduo comete um delito insignificante, afastando-se da sociedade, sendo um aprendiz que agora aproxima-se de delinquentes “doutores”.

Em suma, a punição tornou-se uniforme, isto é, para todos os delitos que foram imaginados pelos legisladores do âmbito penal, estabeleceu-se uma punição idêntica, o mesmo remédio para todas as doenças, resultando em um sistema carcerário, no mínimo, improfícuo.

Sobre a autora
Beatriz Cristina Barbieri Büerger

Natural de Balneário Camboriú/SC, Bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI-BC). Pós graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) desde julho de 2021. Aprovada no XXXII Exame da Ordem. Membra da Comissão de Assuntos Trabalhistas da OAB-BC (2020). Perita grafotécnica e documentóloga. Entusiasta do estudo das ciências forenses, laborais e suas tecnologias. Assessora Jurídica há mais de três anos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos