SUMÁRIO
Introdução. 1 Processo Penal: provas e princípios pertinentes. 1.1 Provas. 1.2 Princípios constitucionais e penais. 2 O usuário e o traficante à luz da lei 11.343/06. 3 O depoimento policial como fundamento para condenação por tráfico de drogas. 3.1 O policial como testemunha e a fé pública de seu depoimento. 3.2 A atuação policial e o tráfico de drogas. 3.3 O inquérito policial e o art. 155 do Código de Processo Penal. 3.4 Depoimento policial como único fundamento para a condenação por tráfico de drogas e a violação de princípios. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
A lei 11.343/06, também conhecida como Lei de Drogas, tipifica em seus artigos 28 e 33 a figura do usuário e do traficante de entorpecentes, respectivamente (BRASIL, 2006). Em razão das dificuldades para a diferenciação das referidas condutas ilegais, visto a determinação presente no art. 28, §2º, da lei 11.343/06 (BRASIL, 2006), o testemunho policial é utilizado de forma recorrente para que seja decidido em qual delas o indivíduo se enquadra.
Nesse sentido, este artigo possui como objetivo discorrer acerca da relevância do depoimento policial em processos que tratam sobre o tráfico de entorpecentes e se é possível condenar com base unicamente nesse meio de prova. Dessa forma, a finalidade é demonstrar que a condenação nestes termos viola dispositivos legais e princípios, mesmo estando em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
O presente tema é de suma importância na atualidade, porquanto o tráfico de drogas é o principal motivo de encarceramento no Brasil, cujos presídios estão superlotados (GOMES, 2018) e apresentam situações degradantes, o que, inclusive, possibilita que presos recorram ao judiciário para serem colocados em liberdade em razão da violação de direitos humanos (TEIXEIRA, 2019).
Para o desenvolvimento deste artigo, foram realizadas pesquisas bibliográficas a partir de consultas em livros, artigos e sites, bem como consultas jurisprudenciais.
Assim, como o testemunho é central para a questão, inicialmente, serão examinadas as provas do direito processual penal, para que se tenha uma visão geral do sistema probatório brasileiro, e os principais princípios que incidem sobre o processo penal, para que, posteriormente, seja possível estabelecer uma relação entre eles e o assunto tratado. Em seguida, será realizada uma análise das figuras dos artigos 28 e 33, ambos da lei 11.343/06 (BRASIL, 2006), de forma a demonstrar as principais diferenças entre elas, para que se evidencie o contraste no que tange à gravidade de ambas.
Por fim, será discutida a possibilidade de a fundamentação da sentença condenatória por tráfico de drogas se basear em depoimentos policiais, especialmente se este for o único elemento probatório. Com isso, serão indicados dispositivos legais pertinentes, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, bem como a súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2004), além da atuação policial, de como tal testemunho é percebido em sede de audiência de instrução e da violação de princípios.
1 PROCESSO PENAL: PROVAS E PRINCÍPIOS PERTINENTES
1.1 PROVAS
As provas têm por objetivo a reconstrução de um fato pretérito, o crime, para que, assim, o julgador seja instruído acerca do fato (LOPES JR., 2019, p. 341). Dessa forma, “a meta da parte, no processo, portanto, é convencer o magistrado, por meio do raciocínio, de que a sua noção da realidade é a correta, isto é, de que os fatos se deram no plano real exatamente como está descrito em sua petição” (NUCCI, 2020, p. 225).
Assim, Lopes Jr. (2019, p. 344) afirma que, dentre os elementos fáticos apresentados, o magistrado escolhe versões, situação que se evidencia na valoração da prova, que seria uma crença na axiologia, com certa carga ideológica. Assim, as provas possuem como objetivo criar condições para o exercício da atividade recognitiva do magistrado em relação a um fato pretérito, com finalidade retrospectiva, de forma a legitimar o proclamado na sentença.
Com a análise probatória, o juiz, a partir dos elementos que lhe foram apresentados, forma sua convicção. Todavia, por depender das provas colhidas, não é possível assegurar que corresponde à exata verdade do que ocorreu na realidade, sendo apenas uma noção do que de fato aconteceu, o que pode ser verdadeiro para uns, enquanto para outros não (NUCCI, 2020, p. 16-17).
Dessa forma, a verdade real pressupõe que a acusação deva limitar sua tese conforme a norma e a as provas colhidas por meio de técnicas previamente estabelecidas, de modo que elas estejam sujeitas a prova e oposição e, assim, caso haja dúvida em razão de falta de acusação ou de provas, a presunção da inocência deve prevalecer, sendo atribuída a falsidade formal ou processual às teses da acusação (LOPES JR., 2019, p. 373).
Nesse sentido, existem três sistemas de valoração de provas, denominados sistema legal de provas, íntima convicção e o livre convencimento motivado.
O sistema legal de provas, em suma, parte do pressuposto da existência de hierarquia entre as provas, tendo a confissão, por exemplo, valor absoluto. Ademais, não era possível a valoração de provas pelo juiz, o qual tinha que obedecer aos limites estabelecidos por lei. Tal sistema pode ser identificado no art. 158 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), que exige a realização de exame de corpo de delito em crimes que deixam vestígios, o qual não pode ser suprido pela confissão do acusado (LOPES JR., 2019, p. 367-368).
Conforme o princípio da íntima convicção, o magistrado não é obrigado a fundamentar suas decisões e nem atender a requisitos de valoração de provas. Atualmente, tal princípio é adotado no Tribunal do Júri, onde os jurados podem decidir sem atender a qualquer critério (LOPES JR., 2019, p. 368).
Por fim, há o livre convencimento motivado, disposto no art. 155 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), que exige a fundamentação de decisões judiciais. Dessa forma, segundo Lopes Jr. (2019, p. 369), não há regras abstratas para a valoração das provas, mas é necessário que a convicção seja fundamentada. Além disso, a partir dessa previsão legal, presume-se que todas as provas são relativas, sem qualquer hierarquia entre elas.
Com isso, o magistrado não possui total liberdade para a valoração e é necessário que haja a devida fundamentação. Nesse sentido, ele não pode se utilizar de sua vivência ou opinião pessoal como forma de integrar as provas, mas sim, a partir em seu discernimento, decidir de modo fundamentado com base nas provas constantes no processo (NUCCI, 2020, p. 230).
Ademais, existem provas que não são aceitas pela legislação processual penal vigente. A prova ilícita surge a partir de uma violação de regra de direito material ou constitucional ao ser coletada, de forma anterior ou durante o processo, mas sempre fora deste e, como o vício já estava presente no momento de sua obtenção, elas não podem ser repetidas e devem ser desentranhadas do processo. Por fim, a prova ilegítima é aquela que viola uma regra de direito processual penal no momento em que é produzida em juízo e, portanto, sua limitação é exclusivamente processual e seu defeito pode ser repetido e validado (LOPES JR., 2019, p. 394-395).
Assim, além da previsão do art. 157, caput, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o desentranhamento das provas ilícitas, o art. 157, §1º, do Código de Processo Penal também prevê a inadmissão das provas derivadas das ilícitas, em casos de evidente nexo causal (BRASIL, 1941). Tal previsão se dá a partir do princípio da contaminação, com origem na expressão fruits of the poisonous tree, sob a lógica de que, se uma árvore está envenenada, seus frutos também serão contaminados e, por isso, as provas derivadas de provas ilícitas também devem ser desentranhadas, visto que são igualmente ilícitas (LOPES JR., 2019, p. 401).
Nessa esteira, o interrogatório é o momento no qual o réu apresenta sua versão dos fatos em juízo, de forma a exercer o contraditório por meio da autodefesa. Além disso, conforme o art. 5º, LXIII da Constituição Federal (BRASIL, 1988), é direito do réu permanecer em silêncio, o qual não será interpretado de forma prejudicial à defesa, em razão do disposto no art. 186, parágrafo único, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Ademais, a confissão deve ser um ato voluntário, expresso e pessoal (NUCCI, 2020, p. 258), a qual deve ser analisada em conjunto com as demais provas, porquanto essa, isoladamente, não pode justificar a condenação (LOPES JR., 2019, p. 452).
Por fim, a prova testemunhal é o principal meio de prova, pois grande parte das sentenças absolutórias ou condenatórias são baseadas nela (LOPES JR., 2019, p. 458). Conforme o art. 212 do Código de Processo Penal, as perguntas a serem feitas às testemunhas serão formuladas pelas partes, podendo o juiz não as admitir caso induzam a resposta, não tenham relação com o caso discutido ou sejam repetitivas (BRASIL, 1941).
Segundo Nucci (2020, p. 272), em regra, o depoimento deve ser colhido de forma oral, sendo reduzido a termo. Com isso, o depoimento escrito é considerado impessoal, visto que não há como o magistrado averiguar a veracidade dos fatos. Todavia, há exceções a essa regra, previstas no art. 192 e 221, §1º, ambos do Código de Processo Penal, tratando o primeiro do surdo mudo e o segundo do Presidente, Vice-Presidente da República, presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1941).
Conforme afirma Lopes Jr. (2019, p. 461), como a prova testemunhal é abrangida pela oralidade e imediatidade, não é possível que haja a simples ratificação em juízo do que foi declarado na fase do inquérito policial. Sendo assim, não pode o magistrado simplesmente ler, em audiência, o que foi afirmado durante o inquérito, para que a testemunha apenas confirme.
Ademais, Nucci (2020, p. 270) leciona que é necessário que o juiz compromisse a testemunha, para que esta tenha o dever de dizer a verdade e, caso contrário, poderá ser processada por falso testemunho, em razão do disposto no art. 342 do Código Penal (BRASIL, 1940), com exceção dos denominados informantes ou declarantes, que não prestam esse compromisso, conforme disposto nos arts. 206 e 208 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Contudo, ainda que seja o meio de prova mais utilizado, é o menos confiável e perigoso, visto que uma informação que não corresponde à realidade pode gerar uma memória falsa e alterar a lembrança no que tange a um determinado fato (LOPES JR., 2019, p. 477 e 479).
Nesse sentido, Nascimento (2018, p. 22) explica que o testemunho é um meio de prova precário, porquanto depende do intelecto do ser humano e de sua vontade. Sendo assim, deve ser acolhida com extrema cautela por parte do magistrado, visto que não há como ter certeza de que o fato exposto é verídico.
1.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E PENAIS
Os princípios possuem papel determinante para a compreensão, integração e aplicação do ordenamento jurídico. Portanto, eles devem ser observados pelo legislador no momento de criação da norma.
Para o Nucci (2020, p. 5), a dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, e o devido processo legal, disposto no art. 5º, LIV, da Constituição Federal, são norteadores do sistema de princípios. A dignidade da pessoa humana visa garantir um mínimo existencial para o ser humano, como também abrange um aspecto de autoestima e respeitabilidade. Por fim, o devido processo legal está ligado ao princípio da legalidade, visto que garante que um indivíduo seja punido e processado apenas se houver lei penal tipificando a conduta praticada.
Com isso, o princípio da ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), dispõe que o acusado pode utilizar-se de extensos meios para se defender, eis que é a parte mais fraca na persecução penal, enquanto o Estado possui mais força. Nessa esteira, o princípio do contraditório, também previsto no artigo supracitado, pressupõe que a parte contrária tem o direito de se manifestar acerca de qualquer prova ou situação fática alegada pelo adversário, de forma a gerar um equilíbrio processual (NUCCI, 2020, p. 7 e 8).
Assim, conforme lecionado por Lopes Jr. (2019, p. 361-362), o contraditório é uma maneira de confrontar a prova e comprovar a verdade e uma maneira de conflito entre defesa e acusação. A partir dele, tem-se o direito à audiência e às alegações de ambas as partes, que devem ser ouvidas pelo juiz, sob pena de parcialidade, ainda que uma delas não queira se manifestar. Portanto, além de ser um direito que as partes têm de debater perante o magistrado, também implica que ele participe ativamente, de forma que responda as petições apresentadas e fundamente suas decisões.
Nesse sentido, o princípio da presunção da inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, dispõe que o acusado é considerado como inocente até que haja uma sentença com trânsito em julgado que declare o contrário (BRASIL, 1988). Segundo Lopes Jr. (2019, p. 355), tal princípio é um dever de tratamento pelo magistrado e pelo acusador durante o processo, porquanto o réu é visto como inocente e, assim, o ônus da prova é da acusação, além de ser uma regra de julgamento, eis que, em caso de dúvida, o réu deve ser absolvido, por meio do princípio do in dubio pro reo. Ademais, além do processo, é uma forma de limitar a publicidade abusiva e a estigmatização do acusado. Por fim, com a presunção de inocência, prisões cautelares e outras medidas com a finalidade de restringir direitos individuais devem ser medidas excepcionais (NUCCI, 2020, p. 5).
Com isso, Nucci (2020, p. 6) leciona que o princípio do in dubio pro reo pressupõe que, em caso de dúvida em relação à sua inocência, é necessário proferir decisão em favor do acusado. Logo, a interpretação de regras processuais penais em casos de dúvida quanto ao seu sentido e alcance deve ocorrer de modo a favorecer o réu.
Dessa forma, conforme o princípio do nemo tenetur se detegere, ninguém será obrigado a produzir prova contra si, sendo um obstáculo à autoacusação. Visto que o Estado é a parte mais forte do processo, ele deve buscar elementos que provem que o acusado não é inocente. (NUCCI, 2020, p. 7). Portanto, o réu pode se recusar a praticar qualquer ato que seja prejudicial à sua defesa (LOPES JR., 2019, p. 367).
O princípio da vedação das provas ilícitas, disposto no art. 5º, LVI, da Constituição Federal, dispõe que provas adquiridas por meios ilícitos não são aceitas no processo (BRASIL, 1988). Nesse sentido, Nucci (2020, p. 11) diz que ilícito seria aquilo que fosse contrário ao ordenamento jurídico, ofendendo normas de direito material e processual, princípios, bons costumes e a moral. Sendo assim, o termo ilício engloba tanto o ilegalmente colhido, quanto o ilegalmente produzido.
Ademais, segundo Nucci (2020, p. 16-17), o princípio da busca pela verdade real prima pela verdade que se revela a partir das provas colhidas. Dessa forma, pode o juiz, durante a instrução processual, buscar provas, caso não se contente com o que foi apresentado.
O princípio do juiz natural, previsto no art. 5º, LIII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), pressupõe que a designação do juiz para uma causa deve ser estabelecida previamente por lei, de forma a evitar o juízo ou tribunal de exceção, objetivando-se a imparcialidade do magistrado (NUCCI, 2020, p. 9).
O princípio da publicidade, previsto no art. 5º, LX e XXXIII, e art. 93, IX, ambos da Constituição Federal, determina que os atos processuais devem ser realizados publicamente (BRASIL, 1988). Todavia, ele possui exceções, como casos de interesse social ou quando se exigir intimidade, em que é possível restringir tal publicidade. (NUCCI, 2020, p. 10).
Consoante explicado por Nucci (2020, p. 16), a partir do princípio da vedação do duplo processo pelo mesmo fato, não é possível processar alguém pela mesma conduta, pois seria uma dupla punição. Assim, não é igualmente possível que alguém que foi absolvido seja processado com base no mesmo fato.
Pelo princípio do impulso oficial, após a ação penal ser iniciada pelas partes, o magistrado deve continua-la até proferir sua decisão, de forma a impedir a paralização da ação penal (NUCCI, 2020, p. 18).
Além disso, Nucci (2020, p. 19) leciona que o princípio da persuasão racional prevê que o juiz forma sua convicção de maneira livre, porém fundamentada, sendo um conjunto entre o art. 93, IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), o art. 155, caput, do Código de Processo Penal, e o art. 381, III, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Por fim, o princípio da identidade física do juiz, previsto no art. 399, §2º, do Código de Processo Penal, dispõe que o juiz que presidiu a instrução deve ser o que profere a sentença (BRASIL, 1941). Contudo, as provas colhidas à distância e depoimentos realizados em outras comarcas são consideradas uma exceção a esse princípio (LOPES JR., 2019, p. 370-371).
2 O USUÁRIO E O TRAFICANTE À LUZ DA LEI 11.343/06
A Lei de Drogas diferencia as condutas do tráfico e do porte de drogas, previstas respectivamente em seus artigos 33 e 28 (BRASIL, 2006), dando punições consideravelmente diferentes a cada um.
Para a figura do usuário, prevista no art. 28 da Lei 11.343/06, o que chama a atenção é a ausência de pena privativa de liberdade, conforme segue:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
[...] (BRASIL, 2006)
Enquanto isso, dispõe o art. 33:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matériaprima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI nº 4.274) Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.
§ 3º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos , desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012) (BRASIL, 2006)
Ambos os artigos possuem como bem jurídico tutelado a saúde pública, porquanto a posse de drogas, tanto para uso, quanto para o tráfico, tem o potencial de afetar a saúde dos indivíduos de forma geral e não apenas individual. Por essa razão, o sujeito passivo do delito de tráfico de drogas é o Estado, assim como a coletividade, o que também ocorre no caso da figura do usuário (RANGEL; BACILA, 2015, p. 45 e 75). Logo, os delitos não possuem uma vítima específica, porquanto atingem a sociedade como um todo.
Contudo, é possível perceber que, para a figura do traficante, disposta no art. 33, o tratamento é extremamente mais grave, prevendo, em seu preceito secundário, um mínimo de 5 anos de reclusão (BRASIL, 2006).
Ainda que tenha sido declarada inconstitucional parte do art. 33, §4º, da Lei de Drogas (BRASIL, 2006), que determinava a impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, à figura do traficante é dada uma gravidade superior à do usuário, não sendo possível aplicar a substituição de pena à totalidade dos casos, em razão de ser necessário o preenchimento dos requisitos previstos no art. 44 do Código Penal (BRASIL, 1940).
Anteriormente, a Lei 6.368/76 previa, em seu art. 16, a pena de 2 a 6 meses de detenção, mais o pagamento de 20 a 50 dias-multa para o usuário de drogas, enquanto, para o traficante, a pena prevista no preceito secundário do art. 12 da referida lei era de 3 a 15 anos de reclusão, mais o pagamento de 50 a 360 dias-multa (BRASIL, 1976).
Assim, ainda que o uso de entorpecentes seja considerado crime, é notório que o entendimento acerca de sua gravidade mudou, porquanto excluiu-se a reprimenda corporal, o que não ocorreu com a figura do traficante, para a qual houve um aumento da pena mínima.
A análise das referidas previsões legais, por si só, já é um indicativo do problema que será discutido no presente artigo. Enquadrar alguém na conduta do traficante tornou-se profundamente grave, pois esse indivíduo, possivelmente, será preso, a não ser que sua pena seja substituída por restritiva de direitos.
Nessa esteira, na prática, existem dúvidas acerca da tipificação de cada um, em razão dos critérios de diferenciação, o que gera sentenças equivocadas (COSTA; MARCELINO, 2017, p.12).
Ademais, deve-se considerar o fato de que o delito de tráfico de drogas é o principal motivo de encarceramento no Brasil e corresponde à maior porcentagem da população carcerária (GOMES, 2018). Em consulta ao Infopen, o número de presos como incurso no art. 33 da lei 11.343/06 ou no art. 12 da lei 6.368/76, incluindo também os presos por tráfico internacional de entorpecentes (art. 33 c/c art. 40, I, ambos da lei 11.343/06, ou art. 18 da lei 6.368/76), a nível nacional, entre julho e dezembro de 2019, é de 175.690 (BRASIL, 2019a).
Nesse sentido, a diferenciação entre as condutas não apresenta um caráter objetivo, visto que dispõe o art. 28, §2º, da Lei de Drogas:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
[...]
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (BRASIL, 2006)
Desse modo, cabe ao magistrado, analisando as hipóteses do art. 28, §2º, da lei 11.343/06 (BRASIL, 2006), decidir acerca de em qual tipificação legal o indivíduo deve ser enquadrado.
Segundo Coffi (2018, p. 30), a diferença entre as condutas supracitadas possui enorme relevância jurídica, porquanto a posse de entorpecentes é considerada um crime de menor potencial ofensivo, em razão do previsto na lei 9.099/95, enquanto o tráfico de drogas se equipara a crimes hediondos, segundo previsão na Constituição Federal e na Lei de Crimes Hediondos. Por esta razão, aquele que for flagrado com drogas para consumo pessoal terá seu processo tramitando no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, enquanto o indivíduo que for enquadrado como traficante receberá o mesmo tratamento que quem pratica um crime hediondo. Tal fato evidencia ainda mais a gravidade de cada conduta em análise, porquanto as consequências legais são extremamente discrepantes.
Além disso, os critérios determinados no art. 28, §2º, da Lei de Drogas (BRASIL, 2006), são subjetivos, cabendo ao magistrado examinar cada um, com base nos elementos de cada caso concreto, e enquadrar o indivíduo. Assim, é notório que os tipos penais presentes na referida lei não foram determinados com exatidão, o que fere diretamente o princípio da legalidade, o da reserva legal e o da taxatividade, visto que o dever de legislar é do Poder Legislativo (COFFI, 2018, p. 36).
Nesse sentido, a lei 11.343/06 não define, de forma concreta, a diferenciação entre tais condutas, sendo omissa nesse ponto, o que gera insegurança jurídica (COSTA; MARCELINO, 2017, p. 12).
Por fim, Sá (2019, p. 50) defende que os critérios de diferenciação das condutas estabelecidos no art. 28, §2º, da Lei de Drogas, são vagos e imprecisos, o que dá margem para o poder discricionário do julgador e seu livre convencimento motivado, refletindo diretamente na aplicação da pena. Dessa forma, tais fatos colocam mais poder na mão dos policiais ao realizarem o flagrante e dos juízes ao proferirem a decisão.
3 O DEPOIMENTO POLICIAL COMO FUNDAMENTO PARA CONDENAÇÃO POR TRÁFICO DE DROGAS 3.1 O POLICIAL COMO TESTEMUNHA E A FÉ PÚBLICA DE SEU DEPOIMENTO
O art. 37, caput, da Constituição Federal, determina que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]” (BRASIL, 1988). Assim, é notório que os policiais, pelo simples fato de ocuparem uma função pública, recebem tamanha credibilidade em seus atos e depoimentos por estarem amparados pelo dispositivo constitucional supracitado.
Nesse sentido, Carvalho e Weigert (2018, p. 52) lecionam que:
No exercício da função pública, portanto, supõe-se que o policial militar atue dentro da legalidade, sendo sua palavra, fundada nos princípios éticos da boa-fé e da probidade, comprometida com a veracidade dos fatos, notadamente em razão de validar importantes atos subsequentes, como indiciamentos, denúncias e decisões judiciais.
Em razão do ar polêmico que envolve a temática, foi editada a súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual determina que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” (RIO DE JANEIRO, 2004). Dessa forma, caso a única prova testemunhal do caso concreto seja a de um agente policial, a condenação, ainda assim, será possível.
Em um estudo de caso, Carvalho e Weigert (2018, p. 51) identificaram que o julgador se baseou na súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, afirmando que a palavra dos policiais teria fé pública e só poderiam ser rebatidas caso a defesa apresentasse argumentos que indicavam a má-fé, além da coerência entre seus depoimentos.
Portanto, a simples existência formal dos depoimentos, ou seja, prestados em juízo e submetidos ao contraditório, lhe remetem validade, considerando os princípios da moralidade e da impessoalidade, a qual só seria afastada em casos de inequívoca prova em sentido oposto (CARVALHO; WEIGERT, 2018, p. 53).
Importante destacar também que, quanto à credibilidade, o Superior Tribunal de Justiça entende que “os depoimentos dos policiais têm valor probante, já que seus atos são revestidos de fé pública, sobretudo quando se mostram coerentes e compatíveis com as demais provas dos autos” (BRASIL, 2020). Logo, conforme o entendimento desta Corte Superior, os testemunhos policiais estão, de fato, amparados pelo previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), visto a função pública que estes agentes exercem.
3.2 A ATUAÇÃO POLICIAL E O TRÁFICO DE DROGAS.
O tráfico de drogas é um crime que comumente ocorre de forma mais reservada, visto que, na maioria dos casos, não há outros indivíduos presentes durante a abordagem policial e a posterior prisão em flagrante, se for o caso. Com isso, em razão da dificuldade de diferenciar as condutas de traficante e usuário, muitos magistrados dão enorme valor probatório ao depoimento em juízo dos policiais que realizaram o flagrante, eis que é habitual que sejam as únicas testemunhas do delito.
Sobre a temática, Maria Gorete Marques de Jesus publicou dois brilhantes trabalhos, baseando-se em autos de prisões em flagrante e em processos criminais, além de realizar entrevistas com policiais e operadores do direito. Como resultado, verificou-se a existência de diversos argumentos repetitivos de forma a validar a crença na atividade policial, o que será exposto logo mais.
De início, a autora indica que, na maioria dos relatos, os operadores do direito sequer questionaram a narrativa policial, o que indica grande inclinação a desconfiar do relato do acusado. Nessa esteira, há uma crença de que o juiz deve defender a sociedade, com a consequente prisão do acusado, no sentido de que a defesa só seria concretizada caso fosse decidido pela manutenção da prisão feita pela polícia (JESUS, 2016a, p. 3 e 14-15).
Conforme visto anteriormente, o art. 28, §2º, da Lei de Drogas, determina os elementos que devem ser observados para a imputação da conduta legal (BRASIL, 2006). Todavia, Jesus (2016b, p. 75) acredita que os critérios acerca das circunstâncias pessoais e sociais do indivíduo e as condições em que se desenvolveu a ação são seletivos, o que leva ao questionamento de como os policiais determinam quem é usuário e quem é traficante. Assim, eles procuram por indícios, que são elementos de prova relevantes para se definir o crime cometido no caso concreto.
Nesse sentido, a autora trabalha com o conceito de verdade policial, sendo a resultante da observação de acontecimentos e que é interpretado a partir de um saber policial. Logo, é esperado que eles identifiquem situações em que sua intervenção seja necessária, dentro dos limites legais (JESUS, 2016b, p. 75-76).
Com isso, Jesus (2016b, p. 79) entende que o enquadramento legal da conduta, especialmente nos casos de tráfico de drogas, é feito pela polícia responsável por realizar o flagrante e não pela judiciária. Ela é encarregada de, a partir de sua observação dos elementos do caso concreto, com auxílio de seu saber policial, interpretar o fato e transformá-lo em um fato jurídico, sendo que a polícia judiciária apenas é responsável por transpô-la aos autos.
Nesse sentido, a autora percebeu que nem todas as motivações dos policiais são narradas nos autos de prisão em flagrante. Desse modo, como há a necessidade de que a ação seja reduzida a termo, o policial, a partir de seu saber, seleciona o que será descrito oficialmente, de forma a enquadrar a realidade em um formato jurídico. (JESUS, 2016b, p. 81).
Ademais, ao longo de suas pesquisas, foram identificados diversos argumentos recorrentes, dentre eles o de que a definição do crime depende do olhar policial, porquanto existe uma carga subjetiva para a imputação do delito cometido. Nesse sentido, conclui-se que as lacunas deixadas pela lei são supridas pela narrativa policial (JESUS, 2016a, p. 11 e 20).
Dessa forma, a palavra crença apareceu por diversas vezes nos relatos, de modo a justificar o porquê de esses depoimentos possuírem tanta credibilidade. Assim, promotores e juízes acreditam que tal convicção é fundamental para o funcionamento do sistema e é um importante elemento para o poder de punir, o que gera o chamado campo de imunidade da narrativa policial (JESUS, 2016a, p. 20).
Dentre os relatos, alguns merecem destaque. Um dos entrevistados afirmou que muitas dessas denúncias anônimas são provenientes da própria Polícia Militar, porquanto seria uma forma de evitar uma ação direta de policiais disfarçados. Inclusive, os delegados entrevistados afirmaram que isso seria ilegal, visto que os policiais militares não são responsáveis por investigar, e sim a polícia judiciária. Com isso, as denúncias são realizadas de forma anônima, pois não pode constar nos boletins de ocorrência que o flagrante foi realizado em razão de uma investigação da Polícia Militar, eis que é ilegal (JESUS, 2016b, p. 88-89).
Além disso, um delegado entrevistado afirmou que acredita que focar a tipificação do tráfico de drogas na posse de drogas gera a prisão apenas de indivíduos substituíveis, ou seja, pequenos vendedores e, portanto, a definição do delito não atingiria os grandes comerciantes de entorpecentes (JESUS, 2016b, p. 90-91).
3.3 O INQUÉRITO POLICIAL E O ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Em razão da dificuldade de se diferenciar as figuras do usuário e do traficante, em razão de obscuridades legais, dentre ela o determinado pelo art. 28, §2º, da Lei de Drogas (BRASIL, 2006), os depoimentos policiais são a principal fonte de provas nesses casos. Sucintamente, os policiais militares que efetuaram a prisão em flagrante influenciam toda a fase do inquérito, porquanto são eles que presenciam a atividade criminosa e colhem as drogas e petrechos encontrados com o indivíduo, fatores que norteiam a investigação. Posteriormente, os mesmos são ouvidos em juízo, momento no qual prestam seu depoimento, tornando seu testemunho uma prova submetida a contraditório e a ampla defesa.
Nessa esteira, Nascimento (2018, p. 22) defende que, especialmente em casos relacionados ao tráfico de drogas, em que as abordagens são realizadas em locais reservados, os autores do delito se empenham para ocultar os meios empregados e as testemunhas dificilmente aceitam depor em juízo por medo, o depoimento policial se torna uma das principais bases probatórias, porquanto as provas adquiridas no inquérito podem ser limitadas.
Assim, quanto à formação da convicção do magistrado com base em elementos colhidos durante a fase investigatória, determina o art. 155, caput, do Código de Processo Penal que:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (BRASIL, 1941)
Portanto, tal artigo determina que o magistrado, além de se atentar às provas produzidas judicialmente, também pode se basear nos dados colhidos na investigação policial, desde que amparados pelo contraditório e pela ampla defesa (MENDONÇA, 2015, p. 48).
Contudo, cabe questionar se o agente policial pode testemunhar acerca dos fatos que tomou conhecimento em razão da função que exerce, podendo, inclusive, ter atuado no caso. Com isso, uma amiga que trabalha no Superior Tribunal de Justiça criou o critério de pesquisa “prisão adj2 flagrante mesmo depoimento adj5 policial” próprio para o site do Superior Tribunal de Justiça, de forma a analisar o entendimento dessa Corte Superior acerca do assunto. Desse modo, constatou-se o que se segue:
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firme de que os depoimentos dos policiais, que acompanharam as investigações prévias ou que realizaram a prisão em flagrante, são meio idôneo e suficiente para a formação do édito condenatório, quando em harmonia com as demais provas dos autos, e colhidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. (BRASIL, 2019b)
Logo, segundo o Superior Tribunal de Justiça, é notório que, para que o depoimento policial seja fundamento para a condenação, é necessário que a prova testemunhal seja corroborada em juízo, amparada pelo contraditório e pela ampla defesa e que esteja de acordo com os demais elementos probatórios constantes nos autos (BRASIL, 2019b).
Assim, imagine um caso concreto em que a única prova testemunhal seja a do policial que procedeu a prisão em flagrante. Na hipótese, seria necessário que este depoimento estivesse em consonância com as demais provas colhidas, como drogas apreendidas durante o flagrante, provas estas coletadas pelo próprio policial, as quais são validadas posteriormente em juízo em conjunto com o testemunho do agente. Com isso, na prática, o poder de provar para que haja a condenação está todo nas mãos de uma única pessoa.
Portanto, todo o conjunto probatório se baseia no que foi afirmado por um policial militar, tanto em sede de inquérito policial, visto que sua versão dos fatos é utilizada como fundamento para o auto de prisão em flagrante, quanto em juízo, por meio do depoimento judicial prestado (NASCIMENTO, 2018, p. 30).
Por isso, Nascimento (2018, p. 25) defende que o depoimento prestado em juízo pelo agente é uma forma de driblar o disposto no art. 155 do Código de Processo Penal, para que, assim, o testemunho do policial se torne um meio de prova submetido ao contraditório e a ampla defesa, visto que, em sede de inquérito policial, não há a garantia do contraditório. Nessa esteira, Lopes Jr. (2019, p. 462-463) acredita que o Ministério Público, ao arrolar policiais como testemunhas, busca judicializar seus depoimentos como forma de evitar o disposto no artigo supracitado.
Além disso, Nucci (2020, p. 268) acredita ser necessário que o magistrado o avalie com cautela, ainda que o agente preste o compromisso de dizer a verdade, porquanto este pode estar ligado à investigação e à prisão e, por isso, sua maneira de narrar pode ser influenciada por suas emoções.
Nesse sentido, leciona Lopes Jr. (2019, p. 462):
Além dos prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à atividade desenvolvida, é evidente que o envolvimento do policial com a investigação (e prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados. Assim, não há uma restrição ou proibição de que o policial seja ouvido como testemunha, senão que deverá o juiz ter muita cautela no momento de valorar esse depoimento. A restrição não é em relação à possibilidade de depor, mas sim ao momento de (des)valorar esse depoimento.
Ante a controvérsia supracitada, foi editado um projeto de lei, atualmente arquivado, de número 7.024/17, que sugeriu o acréscimo de um parágrafo único no art. 58 da Lei de Drogas, o qual possui a seguinte redação: “Serão nulas as sentenças condenatórias fundamentadas exclusivamente no depoimento de policiais” (BRASIL, 2017).
Dentre os argumentos utilizados pelo Deputado Federal Wadih Damous, que apresentou o referido projeto de lei, foi informado que diversos estudos indicam que o depoimento policial foi o único responsável pela prisão em 74% dos autos analisados (BRASIL, 2017, p. 2). Além disso, o deputado aponta que:
Ademais, o depoimento prestado pelos agentes envolvidos diretamente na prisão em flagrante traz em seu bojo um evidente juízo prévio condenatório em relação ao réu, até mesmo para não ver questionada a legalidade do seu ato. (BRASIL, 2017, p. 3)
Todavia, do ponto de vista criminal, a nulidade das referidas sentenças condenatórias, não é viável, visto que não há qualquer ilegalidade no depoimento de policiais, que, inclusive, é permitido por lei, conforme disposto no art. 202 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Logo, só seria possível a nulidade da sentença condenatória, caso restasse comprovado que a colheita dos depoimentos se deu de forma ilegal, correspondendo ao período entre a sua proposição no processo e a sua produção (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2018, p. 15 e 17).
Ademais, caso o projeto de lei prosperasse, seria criada uma diferenciação entre a prova oriunda do testemunho policial e a de terceiros. Nesse sentido, se não houvesse nenhum elemento de prova diverso do depoimento policial que confirmasse o narrado por ele, como, por exemplo, o testemunho de terceiro, o que foi dito seria dado como inverídico. Dessa forma, estaria criada uma hierarquia entre provas testemunhais (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2018, p. 22).
3.4 O DEPOIMENTO POLICIAL COMO ÚNICO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO POR TRÁFICO DE DROGAS E A VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS
As provas utilizadas para a absolvição ou a condenação dos acusados por tráfico de drogas, no geral, são as colhidas durante a prisão em flagrante, consistentes em depoimentos policiais e substâncias apreendidas (JESUS, 2016a, p. 3). Sendo assim, os agentes, que se tornam testemunhas de acusação, possuem grande papel na imputação legal da conduta praticada, especialmente quando são os autores da prisão em flagrante (JESUS, 2016b, p. 60- 61). Contudo, Nascimento (2018, p. 13) defende que, ainda que se busque a isenção de juízo de valor nos relatórios policiais, tal situação não ocorre na prática.
Assim, é notório que fundamentar a condenação com base apenas no testemunho policial indica a violação de diversos princípios. De início, o não questionamento da narrativa dos agentes por parte de julgador implica na não análise de princípios como presunção da inocência, contraditório e ampla defesa, visto que não é verificada a existência de possíveis ilegalidades presentes no caso concreto (JESUS, 2016a, p. 17).
Nessa esteira, Nascimento (2018, p. 22) defende que que o depoimento policial possui grande força, inclusive em casos de falta de provas, sendo uma clara violação do princípio do contraditório e da ampla defesa, assim como do in dubio pro reo.
Além disso, cabe salientar que, em juízo, os policiais se limitam a repetir o que foi dito em sede de inquérito. Dessa forma, a possibilidade de contraditório por parte do acusado se prejudica, porquanto gera um distanciamento entre o depoimento e a análise de seu conteúdo por parte da defesa (NASCIMENTO, 2018, p. 26).
Por fim, em seu estudo de caso acerca da súmula nº 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Carvalho e Weigert (2018, p. 69-70), a partir das inconsistências dos depoimentos policiais analisados por eles, que, inclusive, não estavam em consonância com o depoimento prestado por uma testemunha, defendem que a presunção de validade dos depoimentos policiais, como determina a súmula supracitada, não deve afastar o princípio do in dubio pro reo, que é mais relevante no sistema de provas do processo penal brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme exposto anteriormente, as consequências para o uso e o tráfico de drogas são extremamente diferentes, de forma que a condenação por tráfico, crime equiparado à hediondo, gera o encarceramento do indivíduo. Ademais, em razão das dificuldades de se diferenciar as condutas supracitadas e, muitas vezes, da ausência de outras testemunhas, o depoimento dos policiais que realizaram a prisão em flagrante se torna a principal fonte probatória, além de serem eles também os responsáveis pela coleta de outros elementos, como entorpecentes e petrechos encontrados com o indivíduo.
Nesse sentido, os agentes influenciam a fase do inquérito policial, pois, geralmente, todas as provas são colhidas a partir de sua atuação, além de que, posteriormente, eles se tornam testemunhas de acusação em sede de audiência de instrução, de modo a submeter o seu depoimento ao contraditório e à ampla defesa. Contudo, tal situação é uma forma de burlar o previsto no art. 155 do Código de Processo Penal, o qual prevê a impossibilidade de se basear a condenação unicamente em elementos colhidos em fase de investigação policial (BRASIL, 1940).
Assim, a judicialização (LOPES JR., 2019, p. 462) desses testemunhos gera a violação de princípios como o contraditório, o in dubio pro reo e a presunção de inocência, o que prejudica a defesa do acusado, visto que os depoimentos dos agentes possuem presunção de legitimidade, conforme previsto no art. 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e, por isso, muitas vezes o que foi dito por eles sequer é posto em dúvida pelos magistrados.
Portanto, a palavra dos policiais apresenta um enorme valor apenas pela função que exercem, o que gera uma discrepância quanto à credibilidade dada às declarações prestadas por eles e pelo réu, visto que, provavelmente, essas afirmações não serão compatíveis e, consequentemente, o acusado sempre estará em desvantagem.
Desse modo, para que haja a preservação dos princípios supracitados, é necessário que o magistrado aprecie a prova com cuidado, eis que, ainda que haja presunção de legitimidade quanto ao depoimento dos policiais, eles podem ser influenciados por fatores externos que afetam testemunhas em geral pelo simples fato de serem humanas. Assim, é possível destacar, por exemplo, a falha de memória, considerando-se principalmente o decurso de tempo entre o fato e a audiência, além dos diversos casos em que tais agentes atuam, e as emoções, especialmente em situações nas quais agiram diretamente.
Por fim, cabe salientar que a atuação policial necessita da aplicação de certos parâmetros subjetivos, visto que as condutas previstas no art. 28 e no art. 33, ambos da lei 11.343/06 (BRASIL, 2006), não define critérios objetivos para a diferenciação concreta das condutas, de forma que os agentes, a partir de sua experiência profissional, enquadram os indivíduos em algum dos artigos supracitados durante a fase investigatória. Dessa forma, posteriormente, caso não haja qualquer questionamento por parte dos magistrados, os policiais, na prática, se tornam os responsáveis por imputarem a alguém a conduta de tráfico de drogas, o que, ao final, gera a condenação por este crime.
REFERÊNCIAS
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