LIBERDADE DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO E DANO MORAL INDENIZÁVEL - ASPECTOS JURÍDICOS RELEVANTES

Leia nesta página:

Discussão sobre os aspectos jurídicos relevantes na liberdade de expressão e informação.

Sumário: 1. A constitucionalização da liberdade de expressão e informação. 2. Dano moral indenizável e as fronteiras entre o exercício regular da liberdade de expressão e informação e o abuso de direito. 3. Considerações finais. 4. Referências bibliográficas.

 

1. A constitucionalização da liberdade de expressão e informação

A partir de 1988, qualquer abordagem jurídica sobre liberdade de expressão e informação implica em abordagem essencialmente constitucional. Não se conseguirá realizar essa tarefa sem começar o raciocínio sempre pela Constituição. Pode-se dizer, com a maior segurança, que a avaliação jurídica, diante de cada caso concreto, pressupõe, inevitavelmente,um mergulho na Constituição.

Tanto assim que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 869-DF, decidiu que a liberdade de manifestação do pensamento e de informação não sofrerá qualquer restrição, que não esteja explícita ou implicitamente prevista na própria Constituição Federal.

Sob tal premissa, a Constituição de 1988 exige permanente compatibilização entre a liberdade de expressão e informação e os direitos inerentes à personalidade (dignidade, honra, imagem, vida privada e intimidade).

A partir da Constituição Federal de 1988, o bom senso e a ponderação de valores passaram a ser os parâmetros permanentes para a convivência entre liberdade de expressão e imprensa e direitos da personalidade, alternativa exclusiva diante do nosso sistema jurídico, que rejeita qualquer ideia de direitos absolutos.

Em um Estado Democrático de Direito, estruturado fundamentalmente na dignidade da pessoa humana, na cidadania e no pluralismo (art. 1º. da Constituição Federal), conforme enfatiza GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO (2003, p. 3), “a imprensa é o termômetro da democracia. Quanto mais livre um povo, mais livre a sua imprensa; quanto mais educado e evoluído, mais responsável e socialmente útil é a sua imprensa. Daí poder-se dizer, também, que a imprensa é o termômetro do grau de cultura e maturidade de um povo”.

Nesse clima institucional, não se concebe a democracia sem liberdade de expressão e informação, como também não se concebe o Estado de Direito sem respeito incondicional à dignidade da pessoa humana. Como conciliar esse quadro aparentemente contraditório? A resposta parece inevitável: estabelecendo uma convivência harmônica entre os dois direitos fundamentais assegurados no plano constitucional.

O  transcorrer da vida social em seus múltiplos desdobramentos, a dinâmica, a evolução tecnológica e as grandes transformações dos meios de comunicação social propiciam circulação de matérias ou programas jornalísticos abrangendo situações e fatos relacionados ao comportamento humano, exteriorizando posturas pessoais, atitudes, opções de vida e envolvimentos com fatos concretos. Em tais circunstâncias, se a matéria jornalística envereda pelo caminho da violação pessoal, atingindo as qualidades éticas essenciais à pessoa (dignidade, honra, imagem, intimidade e vida privada), consideradas como núcleo essencial e intangível pela Constituição (art. 5º., X e art. 220, § 1º.), ocorre abuso, ilegalidade, que se apresenta como fato gerador da reparação civil.

Nas mesmas circunstâncias, se a matéria jornalística mantém o compromisso com a informação objetiva e imparcial, banhada pelo interesse público,  desprovida de juízo de valor, não atingindo as qualidades éticas da pessoa, nenhuma violação poderá ser visualizada, porque estará atuando sob a proteção da garantia constitucional da liberdade de informação. Consequentemente, não haverá dano moral indenizável.

Portanto, a delicada e necessária questão da convivência harmônica entre a liberdade de expressão e informação e os limites decorrentes da proteção aos direitos inerentes à personalidade somente poderá ser bem compreendida mediante uma “leitura constitucional” do caso concreto, que exige avaliação e interpretação à luz dos arts. 220 e 221 da Constituição Federal.

Um exemplo ilustra esse dilema permanente: O ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente considera infração administrativa, com manifesta repercussão sobre a liberdade de expressão e imprensa, a divulgação de ato infracional praticado por criança ou adolescente de forma a permitir a sua identificação, ensejando a imposição da multa estabelecida no art. 247 do referido diploma legal.

A jurisprudência, sem maior divergência, tem reconhecido a compatibilidade da infração administrativa tipificada no art. 247 do ECA com o princípio constitucional que assegura a liberdade de informação jornalística, visualizando uma vertente do abuso.

Nada obstante, a questão comporta um maior redimensionamento em vista da evolução e das transformações sociais, ou seja, uma leitura evolutiva da Constituição Federal.

Os acontecimentos que compõem o cotidiano da violência e da criminalidade que se amplia e se sofistica revelam, não raro, o total engajamento de menores com o crime organizado, tornando-se eles porta-vozes de uma explícita apologia ao crime. Outras vezes, adolescentes participam, sem qualquer hesitação, da execução de crimes hediondos, chocantes e violentos, confessando com a maior naturalidade sua adesão ao projeto criminoso.

Esta realidade, à luz do tripé em que se sustenta a liberdade de expressão e informação (verdade, interesse social e respeito à dignidade), exige temperamento na análise e interpretação das restrições à liberdade de informação e das sanções administrativas impostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Afinal, é preciso buscar um meio-termo, uma interpretação que tempere e harmonize a proteção constitucional direcionada à infância e juventude com a defesa da sociedade, anseio maior de toda Constituição estruturada em um Estado Democrático de Direito.

Por isso, com toda pertinência, afirmou o professor MANUEL DA COSTA ANDRADE (1997, p. 29-30), da Universidade de Coimbra, que a liberdade de imprensa e os valores conflitantes não se perfilam numa relação estática, de fronteiras pré-determinadas e fixas. É o próprio relevo constitucional da liberdade de imprensa que condiciona o alcance em que os valores conflitantes a podem balizar, a fazer com que as normas que estabeleçam limites e sanções à liberdade de imprensa estejam sempre iluminadas com a luz da Constituição, devendo ser sempre interpretadas a partir da tutela da liberdade de imprensa consignada na Constituição.

Com  a reconciliação democrática e restauração das liberdades públicas por via da Constituição Federal de 1988, ocorreu o fenômeno a que o ministro LUIS ROBERTO BARROSO chamou de triunfo inacabado do Direito Constitucional, em que o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX, nele se condensando as promessas da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, preservação e promoção dos direitos fundamentais, realização da justiça material e respeito à diversidade.

Nascia um novo Direito Constitucional, que identificava a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico e promovia um efeito expansivo das normas constitucionais irradiando com força normativa por todo o sistema jurídico. Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si, mas também um modo de olhar e interpretar todos os ramos do Direito, sobretudo promovendo a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.

Assim, com olhos voltados para ordem jurídica instaurada pela Constituição Federal de 1988, o reajustamento permanente dos parâmetros de aferição da compatibilidade entre liberdade de expressão e informação e proteção dos direitos inerentes à dignidade humana decorre da democratização e da opção ostensiva pelo Estado Democrático de Direito, um dever daqueles que têm a missão de interpretar o sistema jurídico para mantê-lo em vida autêntica. Cabe aos operadores jurídicos evitar o divórcio entre a realidade social e a norma, porque em conflito com as tendências e os legítimos interesses dominantes no seio da coletividade. Infelizmente, como advertiu MIGUEL REALE, muito facilmente se esquece que leis falhas ou nocivas, além do mal que lhes é próprio, redundam no desprestígio das leis boas.

Nesse contexto, compatibilidade entre liberdade de expressão e informação e proteção dos direitos inerentes à dignidade humana não se vincula a maior ou menor grau de conservadorismo, como também não se vincula a maior ou menor capacidade de convivência com o pluralismo e a divergência de expectativas.

Afinal, como proclamado reiteradas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, o suporte legitimador da liberdade de expressão e informação repousa no pluralismo democrático, que deve ser preservado contra ensaios autoritários de repressão.

A liberdade de expressão e de imprensa é o termômetro da democracia, como já se afirmou. No seu exercício a ideia de liberdade se manifesta de forma ostensiva, vibrante e sempre renovada, indicando os próprios rumos e horizontes da evolução social.

Nada obstante, como acentuou LUIS GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO (2003, p. 4-6), a imprensa, livre de freios, passou a ser uma potência, às vezes mais forte que o Estado, uma empresa lucrativa, demolidora, impiedosa, temida, respeitada. Natural que submeta-se a controle jurídico de natureza diferenciada, surgido de uma nova ordem de idéias. Por isso, acrescenta o jurista, “no seu bojo, a liberdade de imprensa impregna-se de um conteúdo social, imbui-se de um interesse público. Não é mais aquela liberdade semelhante à propriedade absoluta. O jornal deixa de pertencer só a seu proprietário. São dele o nome comercial, a oficina, as máquinas, a diretriz administrativa, a inalienável opinião política. Mas, uma vez posto em circulação, o veículo da imprensa assume um sentido público, adquire asas próprias e passa a voar na mesma direção do vento que a sociedade sopra. Se a sociedade soberanamente inaugurou um Estado Social e Democrático de Direito, com igualdade e pluralismo político, o vento soprado pela sociedade-construtora levará o jornal a assumir essa característica, impondo certas regras e concepções que denotem esse perfil. Não se trata de travar a liberdade de imprensa. Pelo contrário. O direito de opinião do jornal, a faculdade de publicar, a faculdade de investigar, a abolição de qualquer tipo de restrição permanecem íntegros e mais fortalecidos porque absolutamente compatíveis com esse Estado. Contudo, a liberdade de informação deixa de ser propriedade particular do dono do jornal, direito privativo de uns poucos, e passa a ser patrimônio da sociedade, com funções sociais bem marcadas, inteiramente úteis e imprescindíveis. O jornal particular se transforma na instituição Imprensa”.

Estas reflexões deverão impregnar o raciocínio jurídico na elaboração do processo interpretativo para solução de casos concretos em que haja necessidade de compatibilização entre a liberdade de expressão e informação e os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, em completa sintonia com o art. 220 da Constituição Federal e estará submetido, permanentemente, ao seu crivo, para aferição de sua compatibilidade e simetria com a legalidade constitucional, uma vez que qualquer restrição à liberdade de expressão e informação deve ser autorizada e prevista expressamente no plano constitucional.

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Portanto, a liberdade de expressão e informação foi protegida de modo específico pela Constituição Federal, tanto que, no § 1º do art. 220, proibiu expressamente qualquer atividade (inclusive legislativa) que possa criar obstáculo ou embaraço à livre circulação da informação.

 

2. Dano moral indenizável e as fronteiras entre o exercício regular da liberdade de expressão e informação e o abuso de direito

 No preciso ensinamento do professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (2014, p. 845), “a liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa, no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mas especialmente têm um dever. A eles se reconhece o direito de informar ao público os acontecimentos e ideias, mas sobre eles incide o dever de informar à coletividade tais acontecimentos e ideias objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original; do contrário se terá não informação, mas deformação”.

Por isso, a liberdade de expressão e informação termina quando começa o direito à inviolabilidade da dignidade humana.

Nesse contexto, no afã de noticiar e de divulgar, os veículos de comunicação social devem ter sempre presente que a pessoa visada não dispõe dos mesmos meios para defender-se, motivo pelo qual o sistema jurídico não pode menosprezar o dever de responsabilidade dos veículos de comunicação ao atingirem a honra, a imagem ou a privacidade alheia.

O fato de se viver em um Estado Democrático de Direito, que pressupõe consolidação do pluralismo e permanente prática democrática, não autoriza nem justifica que a liberdade de expressão e informação seja usada para, gratuita e intencionalmente, atingir os direitos inerentes à personalidade, que são protegidos em nível constitucional (art. 5º, X, da Constituição Federal). Não há dúvida que o ambiente democrático proporciona uma compreensão mais abrangente e tolerante da liberdade de expressão e informação. Todavia, esta liberdade encontra uma fronteira bem demarcada: a fronteira do abuso.

Sob essa atmosfera jurídica, exige-se a percepção de que, nas palavras do jornalista CARLOS ALBERTO DI FRANCO, “não se faz bom jornalismo sem emoção. A frieza é anti-humana e, portanto, antijornalística. Não se pode ouvir um corrupto com a mesma fleuma com que um inglês toma o chá das 5. O veículo de comunicação social honesto e desengajado tem um compromisso com a verdade. A neutralidade é uma mentira, mas a imparcialidade é uma meta que deve ser perseguida. Todos os dias”. Assim, “o bom repórter esquadrinha a realidade, o jornalista preconceituoso constrói a história. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Trata-se de um esforço de isenção mínimo e incontornável. Mas algumas distorções transformam um princípio irretocável num jogo de aparência. A apuração de faz-de-conta representa uma das maiores agressões à ética informativa. Matérias previamente decididas em guetos engajados buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é sincera, não se apoia na busca da verdade. É um artifício. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: a repercussão seletiva. O pluralismo de fachada convoca, então, pretensos especialistas para declararem o que o repórter quer ouvir. Personalidades entrevistadas avalizam a “seriedade” da reportagem. Mata-se a informação. Cria-se a versão.

“A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade informativa. A manchete de impacto, oposta ao fato ou fora do contexto da matéria, transmite ao leitor o desconforto de um logro. Repórteres carentes de informação especializada e do documentação apropriada acabam sendo instrumentalizados pela fonte. Sobra declaração leviana, mas falta apuração rigorosa. Na falta da pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação”.

Portanto, é preciso sensibilidade, conhecimento e maturidade jurídica para ler, interpretar e aplicar a Constituição Federal em tema de liberdade de expressão e informação para aferição os limites entre o exercício regular e o abuso no tocante à definição da existência do dever de indenizar.

Quando se interpreta um fato concreto sob a dimensão do art. 220 da Constituição Federal, sinaliza-se os caminhos da democracia, do pluralismo, da cidadania e da liberdade de expressão. Por isso, o processo interpretativo a ser realizado diante de um caso concreto deve, necessariamente, contextualizar a manifestação do pensamente e a informação, não perdendo de vista que a interpretação construtiva passa, inevitavelmente, por uma espécie de radiografia do caso concreto e da dimensão do conflito submetido à apreciação do Poder Judiciário, esquadrinhando bens e valores jurídicos que estejam em jogo e que são simultaneamente protegidos no plano constitucional.

São se desconhece que em um regime democrático, a liberdade de expressão e informação se constitui em fundamento e espinha dorsal do Estado de Direito. O poder dos veículos de comunicação social se torna indisfarçável porque exerce fascínio, influência e enorme interferência na cabeça e na vida das pessoas. Como lembra o Desembargador JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO, cresce a importância da ética no jornalismo, repousada na preservação do direito à informação, na conduta profissional do jornalista e na sua responsabilidade social. Um verdadeiro poder da mídia que não é ilimitado e sofre baliza no interesse público.

Por isso, “é dever que o jornalista, no exercício ético de seu ofício, avalie os reflexos de sua atuação. Pois ela pode significar a supressão de outro valor fundamental. E não se pode confundir o interesse, muitas vezes comercial ou sensacionalista do profissional ou da empresa jornalística, com o interesse público. Tampouco se pode lidar com os fatos como se fossem verdades absolutas. Pois a narrativa do jornalista é parcial, porque fruto de atividade humana. Mas o que deve ser inegociável é que essa verdade seja produto da sua consciência ético-profissional”.

O Poder Judiciário, em vista da conjuntura acima exposta, passa a ser o termômetro das possibilidades e dos limites do exercício da liberdade de expressão e informação jornalística.

Nesse contexto, o que afasta e faz desintegrar o abuso do direito de manifestação do pensamente e informação é a conjugação de alguns fatores: a) publicar uma notícia ou reportagem checando as fontes e a veracidade em face de elementos concretos de aferição de sua prova; b) noticiar fatos de relevante interesse público que estão acontecendo ou aconteceram efetivamente, de forma objetiva e sem emissão de juízo de valor; c) partir do princípio que uma acusação proveniente de anonimato e não comprovada ao menos por indícios coerentes e concatenados não merece credibilidade, por retratar expediente marcado pela leviandade; d) avaliar as consequências da notícia, evitando exposição dos envolvidos ao descrédito e impedindo que o truncamento ou a distorção revele intenção de lançar a opinião pública contra as pessoas por ela atingidas.

No entanto, se a matéria jornalística assume contorno de sensacionalismo, retrata exploração do escândalo, adquire caráter especulativo ou envereda pelo caminho da ofensa pessoal, atingindo qualidades éticas essenciais da pessoa (dignidade, honra, imagem, vida privada e intimidade), ocorrerá o abuso, permitindo, assim, a avaliação do elemento subjetivo e a definição do dever de reparação do dano moral em questão.Não se pode desconsiderar, em tal contexto, que não se confunde a crítica jornalística com a ofensa antevista pela avaliação de uma sensibilidade exagerada. Como ressalta CAVALIERI FILHO (2020, p. 105), No estágio atual do sistema jurídico corremos o risco de ingressar na fase da industrialização do dano moral, onde o aborrecimento banal ou a mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações milionárias. Se dano moral é agressão à dignidade humana, não basta para configurá-lo qualquer contrariedade.

De maneira especial, a crítica de natureza política deve ser analisada dentro de contexto de maior tolerância. Porque, conforme entendimento já sedimentado pela jurisprudência, crítica faz parte do jogo político, onde o criticado de hoje é quase sempre o crítico de amanhã.

Ao longo do processo de sedimentação do Estado Democrático de Direito, os tribunais brasileiros têm, sistematicamente, sustentado posicionamentos que denotam sempre maior tolerância da crítica no calor de uma discussão de natureza político-administrativa. Porque a vida política constrói a sua própria linguagem e a sua própria estratégia, fazendo da crítica um instrumento quase banalizado por meio do qual se procura questionar, reduzir ou neutralizar qualidades de aliados e exacerbar defeitos de adversários.

Sob tal enfoque, não deve escapar à percepção do intérprete, na leitura contextualizada do art. 220 da Constituição Federal, que o exercício de atividade política, de função pública relevante ou de preponderante atividade que torne a pessoa possuidora de notoriedade, expõe a avaliação permanente, a juízo crítico muitas vezes não correspondente às suas expectativas, juízo crítico do qual os veículos de comunicação social se fazem porta-vozes, por estar sujeita a pessoa, em tais circunstâncias, pela escolha de vida feita e pelo caminho trilhado, à apreciação do que faz e da postura que assume, enquanto desdobramentos do comportamento de um homem público ou de uma pessoa com notoriedade. E desde que a crítica se vincule a esse âmbito, retrata exercício da liberdade de expressão e informação constitucionalmente assegurado, inerente ao próprio Estado Democrático de Direito. É sempre bom lembrar, sob tal perspectiva, que os regimes democráticos edificam-se à base de livre manifestação de ideias e opiniões. Nesses regimes os antagonismos são naturais e alimentam o pluralismo e o direito de divergir.

Aspecto também importante para a avaliação jurídica das fronteiras entre o exercício regular e o abuso do direito, com a consequente definição da existência ou inexistência de dano moral indenizável, é a questão da linguagem utilizada pelos veículos de comunicação social.

Sob esse enfoque, a jurisprudência tem firmado o entendimento no sentido de que não se tratando de linguagem utilizada em “Diário Oficial”, cada veículo de direciona o destaque da notícia ou divulgação em função de seu público leitor, divulga e ilustra o seu noticiário segundo os parâmetros que lhe pareçam mais adequados, buscando a maior aceitação no mercado jornalístico competitivo. E, sob esse aspecto, não cabe qualquer restrição à liberdade de expressão e informação, assegurada a manifestação de seu pensamento em função de determinados valores que lhe pareçam corretos. A liberdade de expressão e informação só faz sentido na vivência democrática, ou seja, numa sociedade que cultive a pluralidade e as diferenças de enfoque e de opinião.

Os veículos de comunicação social também exibem o lado impiedoso, implacável e devastador da notícia. Exatamente por isso, no processo de interpretação jurídica deverá haver um enfoque especial, diante do caso concreto, sobre o que se denomina dever de cuidado da atividade jornalística, que tem seu ponto culminante no cuidado, na consideração com a repercussão da notícia na vida das pessoas envolvidas.

Nas palavras de BRUNO MIRAGEM (2005, p. 244), o primeiro dos deveres inerentes ao exercício da liberdade de imprensa é o dever geral de cuidado, o qual se impõe como espécie de mandamento geral de prudência e diligência próprio da atuação humana social. Evidentemente, o dever de cuidado, observado frente às circunstâncias próprias da atividade jornalística, deverá ser vislumbrado em face das características desse ofício. Então, englobará, dentre outras providências, a necessidade de acesso e exame de todas as versões sobre o fato, a abstenção em promover juízos de valor antecipados, sem a posse de todas as informações disponíveis, e ainda a necessidade de projetar, em estágio anterior à decisão de divulgar ou não o fato, as consequências identificáveis desta mesma divulgação.

Portanto, a construção do método da concordância prática e da ponderação concreta de valores se desenvolve tomando em consideração que a Constituição Federal, embora garanta o exercício da liberdade de expressão e informação jornalística, impõe-lhe, como requisito legitimador de sua prática, a necessária observância de parâmetros expressamente referidos no próprio texto constitucional (art. 220, § 1º), entre os quais especifica os direitos da personalidade como verdadeira reserva legal qualificada, cabendo ao intérprete, mediante ponderada avaliação das prerrogativas constitucionais em conflito (direito de informar, de um lado, e direitos da personalidade, de outro), definir, em cada situação concretamente vivenciada, a proteção jurídica que deve prevalecer no caso concreto, promovendo, assim, a concordância prática, a convivência e a superação dos antagonismos entre princípios constitucionais de mesmo nível de proteção.

O raciocínio jurídico da concordância prática e da ponderação concreta de valores, sem o risco de ruptura da própria Constituição, há de resultar da utilização, pelo intérprete, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva valorativa concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso específico, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses em jogo não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (AI nº 595.395/SP, Relator Ministro Celso de Mello).

Nesse contexto jurídico, o direito de crítica jornalística traduz prerrogativa constitucional cujo suporte legitimador repousa no pluralismo, que representa um dos fundamentos inerentes ao regime democrático. Assim, o exercício do direito de crítica inspirado por razões de interesse público consolida uma prática inestimável  de liberdade a ser preservada contra ensaios autoritários de repressão.

Portanto, a liberdade de expressão e imprensa, nesse contexto, é o pulmão da cidadania e da própria democracia. É o fio condutor do pluralismo. É capaz de recompor e cobrar o espaço deixado pelo vazio, pela ineficiência ou pela falta de comprometimento das instituições. É capaz de desarticular a concentração do poder nas mãos dos oportunistas, dos aproveitadores, dos inescrupulosos e dos corruptos.

Traçando o paradigma da interpretação jurídica sob o enfoque da convivência e concordância prática de direitos fundamentais assegurados em nível constitucional, escreveu o Desembargador ÊNIO ZULIANI: “A imprensa é livre e vive para superar desafios. A liberdade é fundamental, pois, sem ela, não existe imprensa, mas, sim, comunicação dirigida, manietada, uma farsa que encobre a verdade que não pode ou não deve surgir. Contudo, a liberdade, que é um poder a ser exercido com critério, com lealdade e boa-fé, passa a ser um perigo quando confiada a imprudentes, a maliciosos e mal-intencionados, servindo de caminho curto para a prepotência, para a lesão de direitos, causa de danos gravíssimos, alguns irreparáveis”.

Conciliar esses valores é o grande desafio na interpretação jurídica que objetiva definir os critérios para avaliação da existência do dano moral indenizável, onde a radicalização e os extremos não contribuem para a construção de uma sociedade que seja, ao mesmo tempo, pluralista e comprometida com a dignidade humana.

 

3. Considerações finais

Quando se interpreta um caso concreto envolvendo liberdade de expressão e informação versus abuso de direito para avaliação jurídica da existência ou inexistência de dano moral indenizável, a interpretação irá sinalizar os caminhos da democracia, do pluralismo, da cidadania e da meta civilizatória traçada pela Constituição Federal para assegurar o respeito aos direitos fundamentais inerentes à dignidade humana.

Em clássico ensinamento, DARCY ARRUDA MIRANDA (1995, p. 531 e 543) ressalta que a crítica sempre fez parte do jogo democrático, acentuando que a crítica emitida através dos veículos de imprensa deve buscar sempre a sua inspiração naquilo que mais perto interesse ao bem público. Por isso, a crítica que não ofende e por isso não lesa direitos é a crítica construtiva, aquela que procura apontar as falhas de uma obra, os déficits de uma situação, as deficiências de uma organização, etc., com o intuito exclusivo de servir ao interesse público, no sentido de elevação e aperfeiçoamento. É a crítica medida e séria, sem deslizes, sem incidências pessoais visando ao seu desprestígio e exposição ao ridículo.

Em julgamento emblemático, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu que o maior pecado da linha editorial de um veículo de comunicação social é a tendenciosidade. Perde-se o senso crítico que o equilíbrio da neutralidade ou imparcialidade proporciona e, em seu lugar, entra a irracionalidade, irmã do arbítrio e péssima conselheira. Daí ao ilícito o passo é curto (Apelação Cível n. 92.056-4/8, Rel. Desembargador Ênio Zuliani).

Sob tal perspectiva é que surge o dever do veículo ou do jornalista, como pauta ética, de avaliar os reflexos e as consequências de sua atuação.

Assim, diante de um caso concreto, o Poder Judiciário passa a ser o termômetro das possibilidades e dos limites do exercício da liberdade de expressão e informação, sob a dimensão jurídica do art. 220 da Constituição Federal e dos arts. 186 e 187 do Código Civil para aferição do abuso de direito configurador de ato ilícito sujeito à reparação.

Por isso, em um regime democrático, a liberdade de expressão e informação se constitui em fundamento e espinha dorsal do Estado de Direito. E nesse ambiente, o poder dos veículos de comunicação social se torna indisfarçável, por exercer fascínio, influência e enorme interferência na cabeça e na vida das pessoas. Em consequência, cresce a importância da ética no jornalismo, traduzida na sua responsabilidade social, pois, o inegável poder da mídia, por não ser ilimitado, sofre balizamento no interesse público, na inteligência do art. 220 da Constituição Federal. Assim, se  a matéria publicada, veiculadas ou reproduzida revela-se abusiva, reveste-se de propósito especulativo ou escandaloso e assume linha tendenciosa, essa conjugação de fatores afasta a sua inspiração no interesse público, devendo os responsáveis pelo abuso da liberdade de expressão e informação responder pela reparação do dano moral.

Ao prefaciar o livro “O direito de ser rude: liberdade de expressão e imprensa”, de Max Paskin Neto, o Ministro MARCO AURÉLIO MELLO, do Supremo Tribunal Federal, escreveu: “Quando apenas a opinião oficial possui tráfego na sociedade, desaparecem as opiniões discordantes ou minoritárias, e a democracia morre”.

Portanto, é na ponderação de valores constitucionais, diante das circunstâncias do caso concreto, que reside o único caminho juridicamente viável.

 

            4. Referências bibliográficas

ANDRADE, MANUEL DA COSTA. Liberdade de imprensa e tutela penal da privacidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 20, p. 29-30, outubro-dezembro 1997.

CAMARGO, JOSÉ AQUINO FLÔRES DE. A independência do juiz e a liberdade de imprensa. Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Fonte: www.ajuris.org.br

CARVALHO, LUIS GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE. Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

FRANCO, CARLOS ALBERTO DI. Desafios do jornalismo – as virtudes e as fraquezas dos jornais não são recatadas. Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2002 (Fonte: www.conjur.com.br).

MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil da imprensa por dano à honra. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

REALE, MIGUEL, Filosofia do Direito. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

MIRANDA, DARCY ARRUDA. Comentários à Lei de Imprensa. 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

NETO, Max Paskin. O direito de ser rude: liberdade de expressão e imprensa. Curitiba: Bonijuris, 2015.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

ZULIANI, ÊNIO SANTARELLI. Responsabilidade civil pelos abusos na lei de imprensa. In: Responsabilidade civil na Internet e nos demais meios de comunicação. TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz e PEREIRA DOS SANTOS, Manoel J. (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 363.

 

Sobre o autor
Guilherme Machado de Campos Fantoni

Aluno concluinte do curso de graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus de Campinas (SP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo publicado como pré-requisito para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus de Campinas (SP).

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