Possibilidade de sucessão dos bens digitais.

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Os arquivos digitais são bens? Sendo eles considerados como bens digitais é possível a sucessão desses ativos? Com base nesses questionamentos, analisaremos resumidamente sobre a possibilidade de sucessão dos bens digitais.

Um bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que satisfaz uma necessidade humana. A grande maioria dos bens são dotados de uma carga pecuniária e valoração financeira, se constituindo em ativos que compõem o patrimônio da pessoa. 

Silvio Salvo de Venosa pontua que, em visão leiga, bem é tudo aquilo que corresponder aos nossos desejos e, na visão jurídica, bem é tudo aquilo que tem valor pecuniário ou axiológico.

O ordenamento jurídico e mais precisamente o direito civil brasileiro, se encarregou de tutelar e proteger esses bens de modo que dá ao cidadão o direito à propriedade e sobretudo resguarda de usurpações ilícitas. 

Destarte, o direito de propriedade é levado tão a sério que se constitui em um dos direitos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

O código civil brasileiro a partir do artigo 79, conceitua e classifica diversas espécies de bens, são eles: imóveis, móveis, fungíveis, não fungíveis, consumíveis, divisíveis, singulares, coletivos e os bens públicos. Neste trabalho não serão pormenorizadas cada uma dessas classificações pois o objetivo aqui é conceitualizar uma nova classificação de bens que o legislador não previu, que são os bens digitais.Conceituação esta que será realizada mais adiante. 

São exemplos de bens previstos pelo legislador civilista: uma casa, um sítio, uma chácara, um carro, um apartamento, sacas de soja, ações, dinheiro etc. Nota-se que todos esses bens anteriormente elencados são mensuráveis no mundo físico e nada dizem respeito sobre o mundo da informática.

Ainda segundo Venosa, todo bem necessariamente é uma coisa.

Todavia, na atualidade, com o advento das tecnologias da informação e da comunicação surgem novas coisas que estão além do mundo físico, muito embora pertençam ao mundo real, e que possuem carga pecuniária ou axiológica, são eles os conteúdos existentes nas mídias digitais, sobretudo aqueles compartilhados na rede mundial de computadores. 

Uma conta no Gmail, os documentos salvos no Google Drive, contas em redes sociais como Facebook, Instagram, Whatsapp, Linkedin, Twitter, entre outros, são bens com carga axiológica pois ali estão informações do cotidiano das pessoas como fotos e vídeos de momentos felizes em viagens, encontros familiares, amorosos e com os amigos e etc. Portanto há que se observar a importância destes instrumentos tecnológicos como bens, ou seja como coisas que possuem utilidade e satisfazem um desejo do ser humano. 

Somente essa carga axiológica dos arquivos digitais, por si só, são capazes de configurá-los como bens e desse modo atrair para si a proteção estatal.

Outrossim, como é sabido os arquivos digitais compartilhados na internet, sobretudo nas redes sociais, para além de possuir apenas carga axiológica, possuem também valor pecuniário. 

O valor pecuniário das informações depositadas todos os dias na rede mundial de computadores pode ser percebido ao observar o modus operandi da empresa Google e a importância dada a essas informações. Ao fazer uma simples pesquisa no google, seja de qual for o assunto, essa informação fica salva em um banco de dados e conforme o usuário navega na internet começam a surgir inúmeros anúncios de marketing relacionados com o assunto pesquisado. A pergunta que fica é: seria isso uma mera coincidência?  Ou será que o Google verifica cada pesquisa feita nas suas plataformas para obter informações valiosas e com isso potencializar suas vendas?! Teria essas simples e ingênuas pesquisas feitas diariamente pelos internautas algum valor econômico?!

A resposta é evidentemente sim! 

Todavia, avançando na análise pecuniária de outros arquivos digitais, há de se presumir que

se meras informações em sites de buscas tem valor monetário, o que falar de arquivos de trabalho armazenados na nuvem, trabalhos acadêmicos publicados em periódicos on line, páginas com milhares de seguidores em redes sociais como Instagram, Facebook, Linkedin, entre outras redes sociais, canais do youtube com milhares de seguidores, músicas e filmes sendo produzidos em plataformas de streaming etc.

O século XXI trouxe juntamente com o avanço tecnológico uma mudança inenarrável de paradigmas, hoje uma conta no instagram pode, do ponto de vista pecuniário, valer muito mais do que uma casa ou um carro de luxo. 

Um exemplo atual dessa força das redes sociais e de como ela pode ser direcionada para capitalização são os participantes da edição 21 do Reality Show Big Brother Brasil exibido na TV Globo. 

A título de exemplo, a  participante Juliete, campeã da edição, entrou na casa com pouco mais de 4 mil seguidores na sua conta do Instagram, durante a sua estadia na casa ganhou destaque e, cem dias depois, quando saiu da casa tinha quase 24 milhões de seguidores, um dia após a sua saída alcançou a marca dos 27 milhões de seguidores nesta mesma rede social. 

Vejamos com sensibilidade a potência econômica daí advinda pois uma única postagem da ex participante do reality show no seu perfil do instagram vale em torno de 60 a 80 mil reais conforme o site buzzfeed.

Ainda citando exemplos de ex participantes de Reality Show para evidenciar a existência dos bens digitais e a necessidade da tutela estatal é possível citar a música “batom de cereja” na voz do cantor sertanejo Rodolfo, que durante a participação dele no Big Brother Brasil essa se tornou a música mais tocada nas principais plataformas de streaming no Brasil e figurou entre as cinquenta músicas mais tocadas em todo o planeta terra. 

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A lucratividade advinda desse feito foi enorme. 

Resta configurada, a caracterização de bem digital de enorme importância pecuniária para esta música. 

Nesse sentido, corroborando com esta definição, Lacerda afirma que bens digitais são incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que trazem alguma utilidade àquele, tenha ou não conteúdo econômico. (Lacerda, 2017, p. 58)

Ao discorrer sobre bens digitais, seria leviano não citar a revolução no mercado financeiro que a blockchain está realizando com o Bitcoin e outras criptomoedas. Esses bens digitais estão surgindo com força inigualável e são capazes de revolucionar o sistema financeiro mundial. Atualmente um bitcoin está valendo aproximadamente R$200.000,00.

Se há valoração axiológica e pecuniária nos bens digitais a pergunta que ecoa no ambiente jurídico é como se dá a sucessão dos mesmos?!

No brasil a sucessão se dá de acordo com o disciplinado a partir do artigo 1.784  do código civil no qual, com o óbito do De  Cujus, abre a sucessão e a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. 

A herança legítima é aquela que se destina a proteção do núcleo familiar. Cuida-se de um quantum mínimo de 50% do patrimônio que deve ser destinado aos herdeiros necessários. 

Os herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Os outros 50% dos bens que compõem o patrimônio do De Cujus, fazem parte da chamada sucessão testamentária, na qual, por disposição de última vontade, o cidadão investido na capacidade civil plena pode indicar quais os beneficiários pretende incluir no seu futuro espólio, independente de consanguinidade. 

Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro possuir normas que disciplinam o uso da internet, como é o caso da Lei 12965/2014, o chamado marco civil da internet, normas dessa natureza apenas estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da internet mas não se presta a disciplinar a sucessão dos bens digitais.

Nesse sentido há um interessante julgado num processo em que a associação brasileira do consumidor ajuizou ação civil pública em face da companhia aérea TAM, com a finalidade de obter a sucessão das milhas aéreas do De Cujus aos seus sucessores cuja decisão de primeiro grau foi favorável, vejamos a decisão da juíza Priscila Buso Faccinetto:

Ação Civil Pública N°1025172- 30.2014.8.26.0100/40° Vara Cível de São Paulo

Reconhecida a natureza patrimonial das milhagem, conforme item supra, é de rigor que os valores auferidos pelo consumidor na forma de pontos, em razão da fidelidade ao programa, não enseje benefício ao fornecedor em caso de morte daquele, o que representaria vantagem manifestamente excessiva, vedada pelo inciso V do art. 39 do CDC, bem como verdadeiro enriquecimento ilícito da ré (CC, art. 884). Assim, em caso de falecimento, os benefícios recebidos devem ser transmitidos aos herdeiros, na forma prevista pelo Código Civil.

Esse processo ainda está em sede recursal, todavia representa um avanço no entendimento do direito à sucessão dos bens digitais.

Uma análise importante a ser feita no momento de permitir ou não a sucessão de bens digitais é se há colisão entre a proteção dos direitos da personalidade do De Cujus como o direito à honra e a imagem e do direito à sucessão dos consanguíneos. 

Entende-se que uma vez não expostos os dados digitais para o público para exposições vexatórias, o simples fato de repassar os ativos digitais aos sucessores não viola o direito à honra do De Cujus.

Nota-se que essa sucessão de que trata o ordenamento jurídico brasileiro trata-se daqueles bens previstos na parte geral do código civil, entretanto, ao analisar o surgimento de bens digitais convém ainda a existência de adaptações legislativas que certamente surgiram com o decorrer do tempo para disciplinar esse tão imenso desdobramento do conceito de bens, dentro da seara do Direito Civil.

 

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002. PL 634/1975.

BRASIL.Marco Civil da Internet. Lei 12.964/14.Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.http> Acesso em 25 de maio de 2021.

Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais. Indaiatuba: Editora Foco Jurídico, 2017, p. 58.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: reais, vol 4 / Sílvio de Salvo Venosa. – 21. ed. São Paulo: Atlas, 2021.

 

 

Sobre os autores
Adelson Tavares Oliveira

Sou pós graduado em Gestão Pública pelo Instituto Federal de Rondônia - IFRO, graduado em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil-ULBRA e estou cursando bacharelado em Direito pela Universidade São Lucas.

Wagner Tavares Oliveira

Acadêmico de Análise de Sistemas pela Universidade Cruzeiro do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

#BensDigitais #Sucessão #Herança #Milhas

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