Da inconstitucionalidade da ausência de defesa técnica em processo administrativo disciplinar

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Pretende-se com este averiguar a (in)constitucionalidade da Súmula vinculante n° 5 do STF, a qual dispõe o seguinte teor: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.

RESUMO

Pretende-se com o presente artigo averiguar a (in)constitucionalidade da Súmula vinculante n° 5 do STF, a qual dispõe o seguinte teor: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Nesse diapasão, tem-se em sentido contrário a súmula 343 do STJ, a qual dispõe sobre a obrigatoriedade da presença do referido defensor. Com efeito, vale mencionar que o art. 5°, inciso LV da CF/88, que dispõe expressamente sobre o contraditório e a ampla defesa, bem como a todos os meios e recursos a elas inerentes. Levando em consideração que o rol dos direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata, e que o direito de defesa constitui um pilar fundamental no Estado Democrático de Direito, não estaria tal súmula implicando em um retrocesso social, sem um sistema alternativo que compense ou resguarde o núcleo essencial dos direitos do cidadão? Até que ponto uma súmula, que possui efeito vinculante, pode dar um novo significado a um tema emanado da própria Constituição, possuindo, portanto, ampla legitimidade democrática? A argumentação de que em processo administrativo não há pena privativa de liberdade ou correlata, é elemento suficiente para afastar a garantia sobre tal direito? Busca-se, portanto, analisar através de metodologia bibliográfica e jurisprudencial quais são os eventuais prejuízos que o servidor público pode suportar em um processo administrativo disciplinar, decorrente justamente da ausência de uma defesa qualificada, a fim de averiguar a (in)constitucionalidade da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Direito Administrativo Disciplinar. Principiologia Constitucional. Dispensabilidade de Defesa Técnica. Devido Processo Legal. Suposta inconstitucionalidade da Súmula Vinculante nº 5º do STF. 

ABSTRACTS

The purpose of the bill is to verify the constitutionality of the binding Precedent No. 5 of the STF, which states "The lack of technical defense by a lawyer in the administrative disciplinary process does not offend the Constitution. In this step, we have in opposite sense the Precedent 343 of the STJ, which provides on the mandatory presence of the referred defender. In fact, it is worth mentioning that art. 5, subsection LV of CF/88, which expressly provides for contradictory and broad defense, as well as all the means and resources inherent thereto.Bearing in mind that the list of fundamental rights and guarantees has immediate applicability, and that the right of defense constitutes a fundamental pillar in the Democratic State of Law, would such a summary not imply a social regression, without an alternative system that compensates or protects the essential core of citizens' rights? To what extent can a precedent, which has binding effect, give new meaning to an issue emanating from the Constitution itself and therefore possessing broad democratic legitimacy?Is the argument that there is no custodial sentence in administrative proceedings sufficient to prevent the application of such a right? Therefore, it seeks to analyze through bibliographic and jurisprudential methodology what are the possible losses that the public servant can bear in a disciplinary administrative process, due precisely to the absence of a qualified one, in order to ascertain the (in) constitutionality of the binding summary. No. 5 of the Supreme Federal Court.

Keywords: Disciplinary Administrative Law. Constitutional Principiology. Technical Defense Dispensability. Due Process of Law. SFC’s Binding Precedent No. 5 supposed unconstitutionality.

Sumário: Introdução. 1. Surgimento da súmula vinculante nº 5º do Supremo Tribunal Federal (STF). 2. Da Principiologia Constitucional e suas garantias. 2.1. Do contraditório e ampla defesa. 3. Da natureza Jurídica do Processo Administrativo Disciplinar 4. Do Processo Administrativo Disciplinar. 5. Da incompatibilidade material da Súmula Vinculante nº 5 em face à Constituição Federal e seus preceitos. 6. Do declínio das garantias fundamentais perante a dispensabilidade de defesa técnica.  Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Sabidamente, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada ao ano de 1988, abarcou de forma pioneira a dignidade da pessoa humana como um objetivo matricial do ordenamento jurídico pátrio, sendo tal episódio um marco histórico do Direito brasileiro pelo qual se garantiu ao cidadão o gozo e o dever de direitos e garantias anteriormente suprimidos quando do antigo regime . 

Dentre os direitos fundamentais, a “Constituição Cidadã” abrangeu caudalosa e enfaticamente  aqueles direitos indissolúveis à condição humana propriamente dita, zelando o legislador constituinte originário pela fundamentalidade do direito à vida; à liberdade; à igualdade; à segurança; e à propriedade do homem, sendo as garantias fundamentais tidas como um instrumento assecuratório de tais direitos, os tornando cogentes à produção de efeitos, conforme leciona o saudoso jurista Ruy Barbosa:

“Mas a accepção é obvia, desde que separarmos, no texto da lei fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existencia legal aos direitos reconhecidos, e as disposições asse-curalortas, que são as que, em defeza dos direitos, limitam o poder. Aquellas instituem os direitos ; estas, as garantias; occorrendo não raro juntar se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito.” (BARBOSA, Ruy, Os Actos Inconstitucionaes do Congresso e do Executivo. p. 187. Capital Federal. 1893.) Biblioteca Virtual do Superior Tribunal de Justiça.

Contudo, sendo o homem um ser integrante da esfera social em que este habita, o garantismo fundamental idealizado pelo legislador constituinte precisou extrapolar à pessoalidade de seu titular, vindo a abranger as relações interpessoais intrínsecas e indissociáveis da vivência social.  Para tal, a Magna Carta de 1988 estabeleceu uma série de garantias que visam a limitação da atuação estatal em relação aos direitos fundamentalmente estabelecidos, criando-se assim garantias relativas ao processo democrático em si, tais como a presunção de inocência, a isonomia processual e a inafastabilidade da função jurisdicional do Estado. 

Neste ínterim, através da análise do bojo constitucional, observa-se de forma nítida que o legislador pátrio estabeleceu cautelosamente ao inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, a garantia do devido trâmite processual que antecede à aplicação da pena -  dando à esta sua fundação formal e material em conformidade ao plano fático - zelando-se ainda pelos institutos principiológicos referentes ao contraditório e à ampla defesa do acusado, através do inciso LIV do mesmo artigo. O estabelecimento de tais garantias democráticas tem o condão de preservar o sistema democrático restaurado pela promulgação da atual Carta Constitucional, sendo tais garantias constitucionais tidas como preceitos básicos a serem seguidos e zelados em qualquer natureza de procedimento ou processo que tenha por fim  a produção de efeitos jurídicos no meio social.  

No âmbito administrativo público, manifesto é que o administrador se encontra vinculado ao dever de apurar e processar quaisquer irregularidades que atentem ao ordenamento que lhe rege, devendo o processo administrativo de caráter disciplinar se submeter aos preceitos constitucionais que fundam a higidez e legitimidade processuais. Somente através de tal submissão - em que atende a autoridade administrativa, à garantia ao contraditório e à ampla defesa - é que se pode averiguar a lisura da penalidade que decorreu dos atos e diligências que apuraram e imputaram o fato irregular, e, tão somente, podendo considerar-se um deslinde constitucionalmente edificado através do devido processo legal. 

Não obstante, com advento da  súmula vinculante nº 5 editada pelo Supremo Tribunal Federal,  os preceitos fundamentais que tangem ao devido processo legal, contraditório e à ampla defesa, se encontram contrapostos em face às disposições constitucionais, uma vez que facultou-se ao acusado em processo administrativo disciplinar, que este se contradite mediante defesa técnica qualificada ou não. Tal medida impõe à uma suposta subversão da principiologia constitucional, a qual viabiliza e instrumenta o cometimento de eventuais irregularidades de apuração e processamento disciplinares, essencialmente mediante à ausência dos operadores jurídicos durante o trâmite processual. 

Destarte, imperioso se faz averiguar a (in)constitucionalidade da Súmula vinculante n° 5 do Supremo Tribunal Federal, uma vez que a manutenção desta pode, potencialmente, vir a produzir efeitos atentatórios contra o Estado Democrático em razão de sua (in)constitucionalidade. 

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Surgimento da súmula vinculante nº 5º do Supremo Tribunal Federal (STF). 

Previamente, a fim de se assegurar a devida compreensão acerca do assunto, de suma importância é situar o cenário e o contexto histórico pelos quais a referida temática surgiu e se problematizou no ordenamento jurídico brasileiro. Neste sentido, a fim de esclarecer acerca da controvérsia tocante à necessidade ou não de defesa técnica durante o trâmite de um processo administrativo disciplinar, o Superior Tribunal de Justiça editou ao ano de 2007 e aprovou consequentemente ao ano de 2008, a súmula de nº 343, a qual prevê em sua redação o seguinte: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar.”

Indispensável é mencionar que a edição da súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça se deu, principalmente, devido à repercussão de uma pluralidade de julgados e decisões de natureza condenatória, e que tinham por objeto a ausência de manifestação adequada e contraditória do acusado durante o trâmite de processo administrativo disciplinar. Tais decisões, bem como os fundamentos que lhes sustentam, remetem a um possível cerceamento de defesa do acusado, já que não há nestas a devida constituição de um advogado ou mesmo a nomeação tempestiva de um defensor dativo.

Neste ínterim, tendo em vista a referida súmula e atentando-se ao arcabouço principiológico constitucional, nota-se que os dizeres relativos à redação da súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça se coadunam harmonicamente ao instituto principiológico referente ao devido processo legal, na medida em que assegura não somente o avanço processual em meio ao ordenamento brasileiro, mas também provê a garantia do cidadão ao exercício do contraditório em todas as fases do processo administrativo disciplinar. Em outros dizeres, a aprovação da súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que o trâmite processual desprovido de assessoria de profissional qualificado a ofertar a defesa do acusado, estaria sujeito à anulação de todos os atos processuais e decisões envoltas no processo administrativo disciplinar - o que impede eventuais decisões ilegais e oportuniza o exercício satisfatório e adequado da defesa pelo acusado.

Não obstante, surge ainda ao ano de 2008 a redação da Súmula Vinculante n° 5, provinda do entendimento emanado pelo Supremo Tribunal Federal acerca do tema, estabelecendo o seguinte: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende à Constituição”. Neste certame, segundo os preceitos abarcados pela Súmula Vinculante n° 5, o Supremo Tribunal Federal compreendeu que a ausência de defesa técnica, apta a prover o exercício do contraditório pelo acusado, não poderia ser invocada ou oposta a fim de anular o processo administrativo disciplinar. Segundo o entendimento da corte, desde que haja a garantia de acesso às informações do processo; da manifestação do acusado nos atos processuais; e da consideração das arguições manifestadas pelo acusado, não haverá ofensa ou agressão do processo administrativo disciplinar ao inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, uma vez que o direito à ampla defesa e exercício do contraditório terá sido regularmente exercido.

Ocorre que a redação da Súmula Vinculante n° 5 abarca uma contrariedade ao exposto pela súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que traz ao acusado a faculdade sobre a participação ou não de defensor técnico e qualificado no decorrer do processo administrativo disciplinar. Aos que defendem a edição deste teor, não levam em consideração o cenário que vigia aquela época, isto é, os inúmeros processos administrativos que estavam até então em tramitação na administração pública. Neste ínterim, urge a necessidade de reavaliar a referida vinculação, não somente pelo viés jurídico e interpretativo advindo da Constituição Federal, mas também do viés político, uma vez que, sob a justificativa de a súmula guarneceria segurança jurídica a tais processos e recursos, a mesma ainda assegurou, tão por si, a manutenção de milhares decisões administrativas de cunho sancionador, indo tal vinculação de desencontro a uma história repleta de lutas e conquistas progressistas da sociedade brasileira em ter por garantidos os seus direitos fundamentais, acima de tudo, em face ao próprio Estado.

Destarte, exposto o contexto pelo qual a problemática originou e se desenvolveu, passa-se a expor o teor que envolve a discussão acerca do tema, bem como os potenciais impactos gerados pela mesma em face ao ordenamento jurídico brasileiro e à Constituição Federal.

2.2 Da Principiologia Constitucional e suas garantias. 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme já abordado neste projeto, remete a um marco histórico do Direito brasileiro e ocidental, em que se houve a valorização inédita da condição humana em sua individualidade como um princípio norteador do ordenamento jurídico e, concomitantemente, como um instrumento instituído a fim de efetivar a proteção do cidadão em face à soberania estatal. Assim, o princípio relativo à dignidade da pessoa humana, consolidado como um objetivo constitucional ao artigo 1º da Constituição Federal, bem como um pilar estrutural republicano e federativo, asseriu enfaticamente em sua positivação acerca da necessidade imperiosa de primar-se pelos direitos indissociáveis do ser humano em sua essência, o que, eventual e concomitantemente,  implica ao dever coletivo da sociedade e do Estado de efetivá-lo.

Presumivelmente que, devido à operabilidade do constituinte originário ao ano de 1988 - em que foram adotados e instituídos os princípios atinentes e compatíveis aos ideais da Nova República do Brasil – em que os demais ramos do Direito tiveram de se adaptar a fim de conformarem-se aos valores republicanos instituídos pela Magna Carta de 1988, assentando assim no ordenamento pátrio, a comunicação sistemática e harmoniosa entre diplomas e normas legais para com a Constituição Federal.

Na esfera do direito administrativo, especificamente, houve uma migração do paradigma principiológico, em que ascendeu-se a preocupação acerca de vários institutos basilares que até então inexistiam ou não eram considerados no bojo da Constituição Federal de 1967. Dentre tais institutos, destacam-se aqueles atinentes à adequação procedimental, aos direitos e garantias fundamentais do homem, e ao interesse público da sociedade, tendo estes sido explicitados pelo legislador pátrio, principalmente, sob as disposições constantes nos artigos 5º e 37 da Constituição Federal de 1988.

Neste ensejo, mister salientar que o processo administrativo disciplinar se trata de uma abstração da face disciplinar do Direito Administrativo, sendo aplicável ao mesmo as disposições da lei nº 9.784 , de 29 de janeiro de 1999, a qual regula o processo administrativo em sua operabilidade e remete em seu bojo aos direitos e garantias constitucionais, principalmente se observados os direitos do administrado e as disposições gerais da referida lei. Neste sentido, devido à sua natureza processual e administrativa, aplica-se ao processo administrativo disciplinar a totalidade dos fundamentos constitucionais suscetíveis à Administração Pública, em que se faz necessária a preocupação acerca dos institutos do contraditório e da ampla defesa; do devido processo legal; da proporcionalidade e da razoabilidade; da legalidade; da finalidade; da motivação das decisões; da segurança jurídica e do interesse público social.

Neste ínterim, o Direito Administrativo abarca uma grande área em suas fontes e aplicabilidade, comunicando-se diretamente à uma diversidade de princípios processuais e constitucionais que se expressam de forma a se complementarem sistemicamente. Não obstante, para fins de análise e desenvolvimento deste projeto, serão abordados tão somente os que se demonstram  indispensáveis à problemática da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal.

2.2.1 Do contraditório e da ampla defesa.

A abordagem da temática referente à principiologia constitucional, bem como o prisma garantista desta, urge a necessidade de especificar dois princípios basilares que são influenciadores da disciplina processual, mais especificamente no que se refere ao contraditório e à ampla defesa. Ambos destes princípios constitucionais se encontram interligados e dependentes entre si, complementando-se, pois, uma vez que não há a garantia do contraditório, a ampla defesa inexiste, e não havendo a ampla defesa, o contraditório resta prejudicado e ineficaz.  Não obstante, antes de adentrar-se ao âmbito processual disciplinar naquilo que tange ao contraditório e à ampla defesa, conveniente se faz a exposição acerca de tais institutos, a fim de que estes restem explícitos e compreensíveis à pretensão deste projeto. 

Os institutos do contraditório e da ampla defesa encontram sua origem legal no artigo 5º da Constituição Federal, ao seu inciso LV, garantindo o legislador pátrio às partes integrantes de litígio, o exercício da defesa e o uso de quaisquer meios legais pelos quais as partes possam desempenhar tal defesa. Assim, depressível é que tais institutos expressam seu fundamentalismo em face ao trâmite processual, como direitos indissociáveis ao ser humano enquanto integrante social, justamente porque são estes que possibilitam a defesa do acusado e limitam o arbítrio do Estado perante o particular.

Neste certame, a ampla defesa, como instituto constitucional e basilar na esfera processual, pode ser compreendida como a amplitude de meios e mecanismos que possibilitam ao acusado expor a lisura dos fatos ou omiti-los em caso de conveniência à sua defesa, enquanto o contraditório se demonstra como a imperatividade de resposta do acusado à todos atos, alegações e apontamentos realizados pelo acusador e demais litigantes, conforme expõe e salienta Alexandre de Moraes em sua obra: 

“Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.” (DE MORAES, Alexandre. Direito constitucional. p. 85. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017.)

Portanto, a defesa do acusado, abrangida pelo contraditório e pela ampla defesa, deve ser promovida ao seu tempo e modo a partir do conhecimento das acusações feitas em desfavor do demandado, conforme as normas e princípios constitucionais que atinem ao devido processo legal, não podendo sob nenhuma hipótese ser a defesa mitigada ou diminuídas as possibilidades e condições de defesa do acusado. Somente de tal forma, havendo por garantida a amplitude do contraditório e dos meios de defesa, é que se pode asserir pela efetiva participação do acusado no processo bem como pela influência da defesa na decisão final do processo, ao que, não sendo devidamente realizado implica na nulidade processual devido ao cerceamento de defesa da parte – já que acomete ao inciso LV do artigo 5º da da Magna Carta.

No âmbito administrativo, a Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal) salienta ao seu artigo 2º acerca da aplicabilidade do contraditório e da ampla defesa ao processo administrativo, trazendo à tona a essencialidade do devido processo legal constitucionalmente instituído à esfera pública, que repete-se ainda ao parágrafo  único do mesmo artigo, em que se assegura a observância aos pressupostos processuais constitucionais. Com efeito, tem-se que o princípio do contraditório, na atual sistemática processual, como corolário do devido processo legal, afeta não somente a temática jurídica em processo judicial, mas também na esfera administrativa como um todo, aplicando-se vastamente ao longo do ordenamento jurídico.

Neste ínterim, a análise dos institutos da ampla defesa e do contraditório, de forma conjunta, remete à uma interpretação de normas, conceitos e temas básicos  preestabelecidos, a fim de conferir legitimidade e legalidade ao proferimento de uma medida que prive ou restrinja direitos dos cidadãos. Em outras palavras, é bastante questionável a imposição de penalidade sem que antes estabeleça, não só a paridade de armas para ambas as partes, mas também a averiguação da possibilidade e da capacidade de que uma parte dispõe, ao ser submetida a um procedimento administrativo, de influenciar na decisão do terceiro imparcial da melhor maneira possível -  o que, plena e logicamente, somente pode ser alcançado pela defesa técnica, tanto pela tecnia do arcabouço intelectual ostentado pelo profissional qualificado e apto a prover uma efetiva defesa ao acusado, quanto pela especialização do próprio profissional e sua formação acadêmica e técnica.

Especificamente, no que se refere à defesa técnica como um instrumento apto a prover a ampla defesa ao acusado e de promover condições paritárias ao mesmo em processo, esta encontra seu respaldo nos artigos 133 e 134 da Constituição Federal, sendo a figura do advogado/defensor um elemento indispensável à administração da justiça e do regime democrático do Estado de Direito. Portanto, a defesa técnica bem como o uso de todos os meios em direito permitidos para subsidiar e conferir robustez à defesa do acusado, a fim de que este possa comprovar a verdade real dos fatos por meio do direito de resposta em Processo Administrativo Disciplinar, se coaduna aos fundamentos processuais e democráticos expostos ao texto constitucional, e que, havendo a sua ausência, tornar-se-ia desarrazoada e desproporcional a relação entre o poder do Estado para com um cidadão – o qual, tacitamente se  presume desmunido de conhecimentos técnico-jurídicos ou mesmo leigo uma vez desamparado por um advogado ou defensor público. 

Nesse sentido, justamente em virtude da dualidade de teses opostas, em que de um lado permeia-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e doutro o do Supremo Tribunal Federal, é que se faz necessária a garantia ao mínimo igualitário da capacidade argumentativa do acusado, de modo a conferir-lhe que foram observadas todas as formalidades e garantias processuais previstas no ordenamento jurídico, para que somente assim se tenha a imposição de uma sanção, privação ou restrição de direitos plenamente legítima, ou quando for o caso, de absolvição do acusado. Ressalta-se ainda, que ao proceder um processo administrativo disciplinar sem a obrigatoriedade de defesa técnica, resta caracterizado, no mínimo, como um retrocesso social, uma vez que, como diz J.J Canotilho (2002, p. 336.), a supressão ou limitação de direitos – contraditório e amplo defesa - sem outros sistemas alternativos que o compense é extremamente reprovável no cenário jurídico, contrariando anos e anos de lutas e conquistas de direitos fundamentais.

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Destarte, perceptível é que a suposta mitigação das previsões constitucionais promovida pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal,  perante a figura da súmula vinculante nº 5, viola potencialmente a materialidade dos direitos e garantias que foram instituídos justamente para assegurar aos cidadãos um julgamento justo, íntegro e em conformidade às previsões legais.

2.3 Da natureza Jurídica do Processo Administrativo Disciplinar 

O processo administrativo, em se pese, consiste em uma diversificação de procedimentos provindos das necessidades da Administração Pública, os quais tem o condão de registrar, executar e solucionar atos e decisões do Poder Público, sendo assim o instrumento pelo qual procede o administrador a fim de gerir e organizar os administrados.  Comumente, atribui-se o termo “processo administrativo” à generalidade dos trâmites realizados pela Administração Pública, contudo, tal generalização se demonstra superficial e vulgar às especificidades do dinamismo administrativo, ao qual se faz necessário distinguir-se os termos “processo” e “procedimento” administrativos para os fins deste projeto.

O processo propriamente dito, segundo Meirelles (2016, p. 818), pode ser compreendido como “o conjunto de atos coordenados para a obtenção de decisão sobre uma controvérsia no âmbito judicial ou administrativo”, enquanto o procedimento se dá como o “modo de realização do processo, ou seja, o rito processual”. Neste diapasão, o processo administrativo ocorre mediante uma finalidade específica da Administração Pública, que seja legalmente prevista e que remeta ao interesse público, e que, a pender de sua natureza, far-se-á perante um procedimento específico e adequado à finalidade almejada, ou seja, o modo pelo qual os atos se desencadearão.

Conforme já mencionado neste projeto, o processo administrativo encontra suas raízes atreladas à Lei nº 9.784/1999, a qual o regulamenta e estabelece suas diretrizes genericamente, tratando-se assim de uma compreensão lato sensu do processo administrativo, o qual se expressa como gênero de uma determinada classe processual. Assim, tomada a analogia à esfera civil para fins de exemplificação, o processo administrativo previsto à Lei nº 9.784/1999 pode ser interpretado como o procedimento comum no âmbito público, ao qual, havendo a lacuna de um procedimento legalmente especializado, torna-se aplicável o mesmo.

Neste contexto, o processo administrativo disciplinar remete a uma das espécies de procedimento compreendidas pelo gênero referente ao processo administrativo, encontrando-se  discriminadamente previsto  à lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, especificamente ao Título V da referida norma. Assim, o processo administrativo disciplinar detém natureza de direito público, uma vez que é compreendido como um processo administrativo in stricto sensu, ao qual detém o interesse público atrelado à sua essência. Ainda, em observância aos artigos 145 e 148 da lei º 8.112/1990, denota-se ter o processo administrativo disciplinar uma natureza processual apuratória e contenciosa, concomitantemente, uma vez que a Administração Pública, sendo  detentora do Poder Disciplinar, pode apurar infrações administrativas e impor as respectivas penalidades aos agentes submetidos à disciplina administrativa.

2.4 Do Processo Administrativo Disciplinar. 

Abordados os aspectos que orbitam e interferem na sistemática do processo administrativo disciplinar, faz-se necessário o discorrimento deste propriamente dito, uma vez que a controvérsia acerca da constitucionalidade da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal não toca somente aos aspectos constitucionais deste, mas também às peculiaridades do procedimento em si. Reconhecer a metodologia e a logística pela qual decorrem os seus atos até a aplicação da sanção administrativa é de suma relevância ao desenvolvimento do presente tema, inclusive para assentar seguramente acerca da dispensabilidade ou não da defesa técnica. Desta feita, passa-se a expor e qualificar o que vem a ser tal rito e a lógica por trás deste, ainda que de forma sumária, tendo em vista não ser este o foco principal deste projeto.

Preliminarmente, antes da abordagem discriminada do processo administrativo disciplinar e seus atos, permeia-se a necessidade de diferenciar alguns conceitos relativos a quais penalidades administrativas estão envoltas ao PAD, bem como a diferença deste para a sindicância disciplinar. Deste modo, utilizando como parâmetro a lei que versa sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais - lei nº 8.112/90 – tem-se basicamente a presença de seis penalidades disciplinares no âmbito administrativo, quais sejam: advertência; suspensão; demissão; cassação da disponibilidade ou aposentadoria; destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.

Sucintamente, existem dois procedimentos disciplinares que visam à aplicação de uma sanção administrativa a um servidor público, sendo que, os fatores determinantes que estabelecem qual destes procedimentos o servidor público será submetido, não se limitam apenas à gravidade e à natureza da infração cometida, mas também aos danos causados para o serviço público, às circunstâncias agravantes e atenuantes e aos antecedentes funcionais do servidor. Neste sentido, tem-se a figura da sindicância punitiva e do processo administrativo disciplinar, instituídos no caput do artigo 143 da lei nº 8.112/90.

No que tange à sindicância disciplinar de caráter punitivo, esta se aplica aos casos em que as penalidades são mais leves e amenas, ou seja, quando a infração supostamente praticada pelo servidor público for punível com pena de advertência ou quando a mesma implicar em suspensão das atividades funcionais do serventuário por até 30 dias – conforme disposto ao inciso II do artigo 145 da lei nº 8.112/90. Em virtude de sua natureza e complexidade, pode-se observar que a sindicância punitiva se prevalece de uma maior celeridade se comparada ao processo administrativo disciplinar, haja vista que o prazo de tramitação de uma sindicância é de no máximo 30 dias, prorrogáveis por igual período a depender da necessidade da instrução. Ademais, a sindicância punitiva apresenta um caráter de procedimento preliminar à instauração de um processo administrativo disciplinar, já que tal também se destina à elucidação de indícios autorais e materiais que induzem à possível prática de infração disciplinar que abarque maior complexidade, tal como se depreende do inciso III do artigo 145 da lei nº 8.112/90.

Doutro lado, naquilo que se refere ao processo administrativo disciplinar propriamente dito, nota-se que sua aplicação para as outras penalidades, isto é, sua ocorrência se dá nos casos de imposição de penalidades de suspensão por mais de 30 dias; demissão; cassação da aposentadoria ou disponibilidade, ou destituição de cargo público em comissão. Além disso, há uma mudança substancial no prazo de tramitação do PAD quando comparado com a sindicância, sujeitando-se este a um prazo máximo de 60 dias, com possibilidade de prorrogação por igual período, quando houver necessidade para tal.

Esclarecidos tais conceitos, passa-se a expor os trâmites do processo administrativo disciplinar, desde sua instauração, até o julgamento do servidor público em questão.  Iniciando a cronologia lógica e sistemática dos atos, tem-se em primeiro lugar a forma de instauração deste procedimento, o qual se inicia com a publicação oficial do ato que institui a comissão responsável por conduzir o procedimento em si. No tocante à referida comissão, esta se compõe por três servidores estáveis, nomeados pela autoridade competente segundo redação do artigo 149 lei nº 8.112/90, sendo que um deles é designado como o presidente da comissão, o qual deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ainda ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado. Insta salientar, também, que entre os membros da comissão se designa um como secretário, havendo a expressa vedação de participar da comissão processante o cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, bem como na possibilidade, caso haja necessidade, de afastamento do servidor das funções oriundas do cargo, como medida cautelar, no prazo de sessenta dias, admitida prorrogação, a fim de evitar que o sujeito interfira na instrução a culminar eventual irregularidade.

Depois de instaurado o processo administrativo disciplinar propriamente dito, inicia-se a fase inquisitorial disciplinar, mais conhecida como “inquérito administrativo”, que basicamente se divide em três fases: instrução, defesa e relatório. A primeira diz respeito à apuração dos fatos, envolvendo depoimentos, acareações, investigações e diligências cabíveis, objetivando a coleta de prova bem como a utilização de técnicos e peritos a fim de contribuir com o esclarecimento da verdade, sendo reconhecido ao servidor, o direito de acompanhar a sindicância pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas, bem como formular quesitos ao perito. Além disso, o presidente da comissão pode impor algumas vedações, como é o caso de negar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos, além indeferir o pedido de prova pericial, quando a comprovação do fato independer de conhecimento especial de perito. Com efeito, o presidente também ouvirá as testemunhas, sendo que os depoimentos serão orais e reduzidos a termo, bem como a competência de proceder ao interrogatório do acusado de modo a esclarecer a verdade dos fatos. Após este contexto, se a comissão entender que há elementos suficientes para caracterizar a infração disciplinar em sua autoria e materialidade, será formulada a indiciação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas. Logo, é exatamente neste momento que o servidor passa da condição de sindicado para indiciado no processo administrativo.

Mediante esta primeira análise, já é possível se observar a complexidade do procedimento e os possíveis prejuízos que podem decorrer de sua inobservância, uma vez que, fundando-se a instauração do processo administrativo disciplinar através dos indícios autorais e materiais colhidos em fase sindical, qualquer ato ou fato, irregular, inverídico ou ilegal, pode acarretar uma sucessão de vícios que prejudicarão todos os demais atos processuais, inclusive no momento da aplicação de uma suposta penalidade. Fatos e atos que uma pessoa qualificada para tal, ou melhor, circunstâncias que a defesa técnica pode superar com maior facilidade, além de proporcionar o cumprimento adequado e legal dos atos administrativos praticados dentro do PAD. É inegável que, a não averiguação do cumprimento formal do procedimento, bem como a apresentação das teses técnicas defensivas em momento oportuno para refutar eventual penalidade, ocasiona uma repercussão direta à fase final.

Indiciado o servidor, inicia-se a segunda parte do procedimento, qual seja: a defesa do indiciado. Na presente, o indiciado será citado por mandado para apresentação de defesa escrita, tendo o prazo de 10 dias, sendo este o momento para que o indiciado conteste os fatos e provas elencadas pela comissão em seu desfavor, com intuito de refutar os elementos em questão e elidir a penalidade. Caso o servidor não apresente a defesa, será considerado revel, entretanto, diferentemente do que acontece no processo civil, em que vigora o princípio da verdade formal, gerando a confissão, no processo administrativo disciplinar vigora o princípio da verdade material, de modo que, mesmo sem a apresentação de defesa pelo agente público, os fatos alegados não serão considerados confessos, cabendo ainda à administração pública o ônus de provar o alegado - caso isto ocorra, a autoridade instauradora nomeará um servidor ocupante de cargo efetivo de escolaridade igual ou superior ao do indiciado, para atuar na qualidade de defensor dativo.

Contrapostos os indícios de autoria e materialidade no inquérito administrativo, desencadeia-se a fase final do inquérito, sendo esta a elaboração e emissão do relatório. Basicamente, a presente fase consiste no ato em que a comissão realiza, depois de analisar a defesa, resumir todas as minúcias do ocorrido e as provas em que levou em consideração para formar a convicção do fato. Ressalta-se, portanto, que este relatório tem caráter conclusivo, ou seja, contém manifestação sobre a inocência do servidor ou sobre sua responsabilidade. Após isso, o PAD é encaminhado, em regra, salvo alguns casos especiais, para a autoridade que determinou a instauração, a fim de proferir o julgamento, no prazo impróprio de 20 (vinte) dias. Um ponto interessante de ser ressaltado neste momento é que, embora o relatório não gere efeito vinculante, o julgamento deve acatar o que foi previsto nele, salvo se houver evidente contradição da prova constante no procedimento daquela que se apresenta no relatório. 

Não obstante, conforme demonstrada a tramitação do processo administrativo disciplinar de uma forma mais sucinta, resta o questionamento aceca da dispensabilidade da defesa técnica em um processo que pode levar desde a suspensão dos vencimentos alimentares até à demissão de um servidor, e se a complexidade de alguns casos não são capazes que fundamentar a obrigatoriedade de defesa técnica constitucionalmente abrangida pelo devido processo legal.

2.5 Da incompatibilidade material da Súmula Vinculante nº 5 em face à Constituição Federal e seus preceitos. 

Analisados os aspectos do processo administrativo disciplinar em si, notáveis são os impasses iniciais ocasionados pela Súmula Vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal, principalmente pelo caráter sancionatório e putativo de tal procedimento, o qual, a depender da penalidade aplicada, pode acarretar na privação de direitos inerentes à própria subsistência familiar ou individual do acusado. Assim, inequívoco é que a consagração do direito à ampla defesa - compreendida a defesa técnica em tal – implica em uma variedade de reflexos significativos, tanto no deslinde processual e decisório, quanto fático do PAD. Tal asserção se justifica uma vez que são os direitos do acusado que estão sendo tutelados em tal procedimento, não podendo a garantia da pretensão punitiva da Administração Pública se sobrepor, sob nenhuma hipótese, a um direito constitucionalmente garantido, pois tal hipótese representaria uma liberalidade sancionatória da Administração Pública para com seus agentes e propiciaria a aplicação de sanções desguarnecidas das devidas garantias constitucionais aos acusados. Assim, uma vez compreendida a importância do PAD na vida do acusado, bem como o prejuízo incidental de outros bens jurídicos que deste podem decorrer, é de suma importância que o acusado tenha oportunidade de acesso à totalidade dos meios de defesa admissíveis e legalmente cabíveis, preferencialmente os exercíveis por profissional qualificado com os conhecimentos técnicos necessários e que possa beneficiar e auxiliar à pessoa do acusado, não deixando-lhe desguarnecido quanto à preservação de seus direitos.

Neste certame, faz-se necessário discorrer especificamente sobre a incompatibilidade da Súmula Vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal quanto à essencialidade e à congruência desta para com a Constituição da República Federativa do Brasil. Sabidamente, a edificação do direito e de seus institutos no meio social ocorre em função de uma série de variantes relativas ao tempo e espaço em que uma determinada sociedade se encontra, assim, podendo-se dizer que a evolução do direito se encontra condicionada à época, ao lugar, aos costumes, valores e princípios de uma sociedade, os quais, conjuntamente, influenciam tanto no processo legislativo quanto na interpretação de uma norma. Conforme já explicitado neste projeto, a Constituição Federal de 1988 remete a um nítido exemplo de como transformação dos valores e princípios de uma sociedade implicam na mudança de paradigma em relação ao ordenamento legal - ao passo de que a constante atuação dos operadores do direito sobre a norma é que recai diretamente sobre a aplicação casual-fática e determina a conformidade legal da norma para como um novo paradigma. 

No Brasil, especificamente, a colaboração exercida pela jurisprudência tem aumentado cada vez mais sua influência perante o processo de edificação do direito nas últimas décadas, uma vez que muitas normas apresentam ambiguidades ou obscuridades interpretativas em sua aplicabilidade e conflitam à coerência legal-sistemática do ordenamento, o que ocasionalmente pode incidir em uma pluralidade de entendimentos diversos sobre um determinado tema e propiciar a falta de segurança jurídica sobre o mesmo. Neste contexto, as decisões tomadas pelo Superior Tribunal de Federal e demais instâncias superiores têm o condão de orientar os tribunais, a fim de que haja a harmonização jurisprudencial sobre o entendimento de uma determinada matéria. Para tal, o Superior Tribunal de Federal pode se utilizar da edição de súmulas, vinculantes ou não, como mecanismo constitucional de uniformização da jurisprudência. No tocante às súmulas vinculantes,  estas detêm maior imperatividade em sua aplicação, pois conforme o artigo 103-A da Constituição Federal, estas têm força normativa sobre os órgãos do poder judiciário e sobre a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, razão pela qual estas implicam ao seu fiel cumprimento em tais órgãos. Por tal razão, é necessário que seja considerada veemente, a observância do texto constitucional naquilo que se refere aos entendimentos vinculantes dos órgãos superiores do Poder Judiciário, pois os impactos de suas decisões não ecoam tão somente nas matérias de direito público ou administrativo, mas também nas relações privadas em sua totalidade.

A edição da Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça, quando do momento de sua edição, se expressou como uma medida acertada, pois consignou a relevância da defesa técnica no processo administrativo disciplinar, e em conformidade à pretensão do legislador pátrio segundo a luz dos incisos LIV e LV do artigo 5º, e dos artigos 133 e 134 da Constituição da República Federativa do Brasil. A assertividade de tal súmula se expressa no momento em que a necessidade de defesa técnica no PAD remete à garantia absoluta do contraditório e à ampla defesa sobre a totalidade dos processos movidos em face do acusado, o que se coaduna especial e explicitamente com a redação do inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal. A instituição do direito de defesa garantido pelo legislador pátrio ao inciso LV da Constituição da República Federativa do Brasil, fora veemente estabelecido à generalidade de acusados, independentemente da natureza do processo submetido, razão pela qual o entendimento estabelecido pela Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça encontra seu fundamento, harmônico e indissociável aos preceitos constitucionais. Assim, sob tal sentido é que se manifestou o Sr. Ministro Hamilton Carvalhido em seu voto, como relator da discussão envolta à Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça:

“A presença obrigatória de advogado constituído ou defensor dativo, por óbvio, é elementar à essência mesma da garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas os litigantes, mas também os acusados em geral.”

(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Votação da súmula nº 343. Revista de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. p. 348-349. Brasília, v.1.  nº 29 (2012).)

Neste diapasão, a ausência de defesa técnica no processo administrativo disciplinar faz alçar à nulidade processual, uma vez que tanto a presença quanto o acompanhamento de profissional qualificado não implicam tão somente na viabilização do contraditório e da ampla defesa, mas também se constitui como uma matéria de ordem pública no âmbito processual, devido à indispensabilidade do advogado e do defensor à administração da justiça como um agente regulador – por se tratar de um direito fundamental constitucionalmente garantido ao acusado.

Não obstante, devido ao prejuízo acarretado à Súmula nº 343 do Superior Tribunal de Justiça, decorrente da edição da Súmula Vinculante nº 5º do Supremo Tribunal Federal, muito se debate acerca da constitucionalidade desta, uma vez que a mesma se contrapõe diretamente à redação do inciso LV do artigo 5º e do artigo 133 da Constituição Federal, uma fez que preceitua a dispensabilidade de defesa técnica no PAD. Os principais julgados tomados como precedentes à sustentação sedimentar para a edição da Súmula nº 5 do STF (os recursos especiais nº 434059 e 244027, o mandado de segurança nº 24961, e o  agravo de instrumento nº 207197), fundamentam-se perante a compreensão restritiva dos direitos de defesa contidos ao inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, especificamente aos direitos de informação, manifestação e consideração dos argumentos trazidos pelo acusado no PAD. Segundo tal compreensão, que cumulada à disposição do artigo 156 da lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, a defesa se trata de ato que pode ser realizado tão somente pela pessoa do acusado em procedimento administrativo disciplinar, e dispensa a constituição, o acompanhamento e a participação de profissional qualificado.

Todavia, questionáveis são os argumentos pautados sobre a fundamentação de tais precedentes devido à realidade fática do acusado em procedimento administrativo disciplinar, assim como pela hipossuficiência discursiva acerca da edição da Súmula Vinculante nº 5º do Supremo Tribunal Federal. Inicialmente, infactível é o fato de que pessoa juridicamente leiga ou mesmo desqualificada no  ramo científico-legal, venha a exercer satisfatoriamente o seu direito de defesa e observe à institutos essencialmente relevantes ao exercício do contraditório no procedimento administrativo disciplinar - tais como o juízo natural, a revelia, a prescrição,  a validade e existência citatórias, a presunção de inocência, o ônus acusatório, a decadência ou mesmo a perda do próprio objeto constituinte da pretensão punitiva da administração pública. Para tal, faz-se necessária a mínima compreensão acerca da complexidade processual em seu trâmite e possíveis deslindes, para que somente assim seja possível considerar uma vaga capacidade da autodefesa pelo acusado em tais circunstâncias. A capacidade jurídica do indivíduo não pode ser equivocadamente confundida com a aptidão jurídica do mesmo, uma vez que a primeira se demarca tão somente pelo transcorrer temporal enquanto a segunda enseja a preparação técnica e intelectual do ser humano à compreensão analítica e crítica dos institutos fundadores do Direito, razão pela qual a exigência de defesa técnica se constitui como um requisito implícito e necessário à fiel observância do devido processo legal, sendo necessária, portanto a obrigatoriedade da presença, manifestação e acompanhamento de profissional qualificado sobre a amplitude da ceara processual, conforme preceitua Alexandre de Moraes:

“O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral,381 conforme o texto constitucional expresso (art. 5º, LV). Assim, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa.382”

(DE MORAES, Alexandre. p. 84-85, Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017.)

Outra razão pela qual se indaga acerca do verbete da súmula vinculante nº 5 do STF, se dá perante os pressupostos de edição da mesma, pois conforme disposto no caput do artigo 103-A da Constituição Federal, a aprovação de súmula vinculante necessita, precisamente, da aprovação de dois terços dos ministros membros desde que após reiteradas decisões sobre matéria constitucional versada em edição. No caso específico da súmula vinculante nº 5, a primeira turma à época se utilizou tão somente de quatro julgados para concluir acerca da resolução da matéria objeto de vinculação, não vislumbrando a amplitude ou a essencialidade do tema em si. Nitidamente, o caput do artigo 103-A da Constituição Federal não estabelece uma taxatividade ou mesmo um referencial quanto ao grau ou número sobre a reiteração da matéria a ser vinculada na Suprema Corte, contudo, perceptível é que a complexidade da matéria ensejava uma maior maturação dos fundamentos, além de uma projeção mais ampla acerca da concretude dos casos em si. Tal conduta adotada pelo Supremo Tribunal Federal aparenta remeter à uma sobreposição dos preceitos sumulares práticos, a fim de, possivelmente, acautelar aos interesses da administração em detrimento de uma série de recursos que abarcam à matéria, utilizando-se estrategicamente da vinculação do entendimento em contrariedade aos preceitos constitucionais para evitar uma cadeia de nulidades bem como assegurar a segurança jurídica de tais recursos. Tal aparência presume a um mal uso da medida, pois não considera as especificidades constitucionais e fáticas da matéria ora discutida. Assim, a súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal transparece uma celeridade excessiva, mesmo antes da matéria se encontrar devida e seguramente sedimentada no Supremo Tribunal Federal, tal como expõe Marinela: 

“Na verdade, a forma com que esse instrumento vem sendo utilizado preocupa um pouco, porque já se verifica edição de súmula vinculante em situação em que a orientação não estava sedimentada no Tribunal (duas decisões e uma súmula vinculante), ou ainda em que não existia um número considerável de demandas, havendo somente um risco de grandes prejuízos financeiros para o Estado; dessa forma, a súmula passa a ser um risco para a evolução do Direito e até para a segurança jurídica. Quanto ao enunciado, também é importante grifar que uma súmula vinculante precisa ser suficientemente clara para não depender de interpretação, considerando que representa o ponto final sobre o assunto.”

(MARINELA, Fernanda. p. 73. Direito administrativo / Fernanda Marinela. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.)

Segundo o entendimento destas e de outras razões, é que fora interposto o pedido de cancelamento da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, ao ano de 2006 - entidade esta legitimada ao ato mediante a disposição permissiva constante ao inciso V do artigo 3º da lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Segundo o voto do ministro Marco Aurélio sobre o pedido de cancelamento enumerado como PSV nº 58, este compreendeu que a aprovação da súmula vinculante nº 5º não atendeu ao cumprimento do requisito correspondente à reiteração de decisões sedimentadas no Supremo Tribunal Federal a fim de que o verbete pudesse se dar por sumulado, razão que faz com que a referida súmula se muna de inconstitucionalidade formal uma vez que não foram atendidos os preceitos essenciais do caput do artigo 103-A da Constituição Federal. Em acompanhamento, o ministro Celso de Mello consignou acerca da relevância e da necessidade do profissional qualificado em relação à efetivação e viabilização do efetivo contraditório ao acusado em procedimento administrativo disciplinar. O voto ainda foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luiz Fux e a presidente do Supremo Tribunal Federal à época, ministra Cármen Lúcia, conforme os seguintes termos:

“Cumpre ter presente, bem por isso, na linha dessa orientação, que o Estado, por seus agentes ou órgãos, não pode, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer pessoa, exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois – cabe enfatizar – o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público, de que resultem consequências gravosas no plano dos direitos e garantias individuais, exige a fiel observância do princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LV)...”

[...]

Qualquer que seja a instância de poder perante a qual atue, incumbe ao Advogado neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias – legais e constitucionais – outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos.

O exercício do poder-dever de questionar, de fiscalizar, de criticar e de buscar a correção de abusos cometidos por órgãos públicos e por agentes e autoridades do Estado, inclusive magistrados, reflete prerrogativa indisponível do Advogado, que não pode, por isso mesmo, ser injustamente cerceado na prática legítima de atos que visem a neutralizar situações configuradoras de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele em cujo favor atua.

O respeito às prerrogativas profissionais do Advogado, desse modo, constitui garantia da própria sociedade e das pessoas em geral, porque o Advogado, nesse contexto, desempenha papel essencial na proteção e defesa dos direitos e liberdades fundamentais.

Sendo assim, Senhora Presidente, e tendo em vista as razões expostas, peço vênia para, acolhendo o pedido formulado pelo E. Conselho Federal da OAB, cancelar a Súmula Vinculante nº 5.”

[...]

(PORTAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Íntegra do voto do ministro Celso de Mello na PSV 58. Brasília: 30 de novembro de 2016.) 

Não obstante, o referido pedido de cancelamento foi majoritariamente rejeitado pelos demais ministros, mediante os moldes do voto do ministro Ricardo Lewandowsk, o qual fora acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes. Segundo Lewandowsk:

“O mero descontentamento ou divergência quanto ao conteúdo do verbete vinculante não propicia a reabertura das discussões sobre tema já debatido à exaustão por esta Suprema Corte. Ademais, na linha do que foi observado pelo presidente da Comissão de Jurisprudência do STF e também pelo procurador-geral da República, ressalto que, para admitir-se a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, é necessário que seja evidenciada a superação da jurisprudência da Suprema Corte no trato da matéria, que haja alteração legislativa quanto ao tema ou, ainda, modificação substantiva de contexto político, econômico ou social”

(PORTAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário rejeita pedido de cancelamento da Súmula Vinculante nº 5 feito pela OAB. Brasília: 30 de novembro de 2016.)

O cancelamento da referida súmula ainda é um tema que permeia o debate acerca da inconstitucionalidade da mesma, principalmente pela polarização das votações e da fundamentação dos votos adversos no pedido de cancelamento proposta pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, contudo, certo é que a contraposição de tal medida aos preceitos abrangidos pelas garantias constitucionais, representa um risco à hierarquia constitucional e aos direitos e garantias fundamentais compreendidos pelo contraditório e pela  ampla defesa dos acusados em PAD’s na atualidade. A supressão do texto constitucional em detrimento de uma orientação vinculativa do poder judiciário, fundamentada pobremente em sua discussão e sedimentação nas instâncias superiores, alude a um ato que, se tomado como hábito magistral, pode potencialmente vir a subjugar a vontade do legislador à interpretação livre e imediata de tal classe, bem como ambientar um cenário propício à insegurança jurídica e à inconstitucionalidade interpretativa da Magna Carta. 


2.6 Do declínio das garantias fundamentais perante a dispensabilidade de defesa técnica.

Resta-se ainda, finalmente, abarcar a real intenção e validade das garantias presentes no texto constitucional em decorrência da edição e vigência da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal, pois afinal, de que vale uma constituição exemplar em seus direitos e garantias, sendo referência internacional e  moldada perante os paradigmas do direitos sociais e cidadãos, fruto de diversas lutas e batalhas na história brasileira, sendo que, no âmbito material e fático, não há o devido respeito às garantias e à hierarquia das disposições constitucionalmente previstas ? A permanência da súmula vinculante nº 5 até a atualidade representa uma subversão do texto constitucional em detrimento de interesses oriundos da convencionalidade administra, ao passo de ter por subjugada a hierarquia da Magna Carta em suas garantias fundamentais, fenômeno este que representa uma incongruência da jurisdição, em sua finalidade, para com a garantia do devido processo legal previsto na Constituição Federal, conforme assevera Antônio Carlos de Araújo Cintra acerca deste:

“…o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimamente do exercício da jurisdição.”

(CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. p. 88. Malheiros. São Paulo. 2010.)  

Os direitos e garantias fundamentais presentes no Título II da CF/88, sobretudo aqueles constantes no capítulo I, isto é, os direitos e deveres individuais e coletivos, encontram- se em evidente declínio se considera a súmula vinculante nº 5 em seu teor material e formal. Tem-se, portanto, o claro e notório retrocesso social, legal e democrático acerca sobre tal vinculação, assim como a evidência da instabilidade das relações jurídicas -  pois, ao que tudo indica, a disposição formal, o devido processo legislativo, o respeito ao rito e todo os trâmites processuais e procedimentais na elaboração da norma jurídica não têm relevância, se no final de tudo, os operadores do direito interpretam a norma de forma incongruente e contraditória as intenções do legislador constituinte.

Com efeito, é necessário destacar que tal argumento não vai de encontro com a evolução natural da sociedade, de modo que as normas jurídicas devem amoldar-se à nova realidade social. Muito pelo contrário, o ordenamento deve sim acompanhar a dinâmica das relações sociais, mas deve-se, no mínimo, resguardar o núcleo essencial dos direitos e garantias fundamentais, permitindo que interpretações e novas disposições legislativas`e jurisprudenciais procedam tão somente a novos e eventuais contornos, e não à supressão e desrespeito das norma, como se nota na supressão da obrigatoriedade de defesa técnica em processo administrativo disciplinar exposta à súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal.

3 CONCLUSÃO

A elaboração do presente projeto possibilitou a análise da Súmula Vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal através de um prisma focalizado nos direitos e garantias fundamentais da pessoa acusada em processo administrativo disciplinar. Em suma, tal súmula estabelece a dispensa de defesa técnica e qualificada como um obrigatoriedade do PAD, o qual, por sua natureza e relevância públicas, decorre em fases que compreendem a instauração e  o inquérito administrativo, que se destrinha na instrução, defesa e relatoria do PAD, e, finalisticamente aplicando uma sanção administrativa ao servidor público que lhe afeta administrativa e pessoalmente em sua vida. 

Notavelmente, a edição da Súmula Vinculante nº 5 do STF, na época de sua discussão e publicação, promoveu a disposição de um grande mecanismo para a  Administração Pública no momento em que consolidou a segurança jurídica para os processos e recursos que não guarneciam à pessoa do acusado em PAD, a garantia do contraditório exercido por profissional apto e qualificado, seja defensor público nomeado ou advogado devidamente constituído. Não obstante, tendo-se em vista os preceitos constitucionalmente instituídos pelo legislador pátrio naquilo que se refere ao contraditório e à ampla defesa, bem como à importância do advogado como agente integrante da administração e garantia da justiça, tal vinculação se demonstra em seu verbete um tanto quanto contraditória, pois não remete à situação fática de defesa do acusado e nem pondera ou mesmo considera a importância da defesa técnica e qualificada ao regular deslinde processual. Assim, tal contrariedade acaba por ambientar um cenário processual em que as garantias referentes à ampla defesa do acusado se encontrem suprimidas e desertas à pessoa do acusado, fazendo com que a paridade de armas -  que deveria existir entre a Administração Pública e o acusado - não seja sequer instituída como regra em nenhuma das fases dos PAD.

Portanto, através deste projeto e da análise da Súmula vinculante nº 5 do STF, concluiu-se pela notória e perceptível violação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão com a edição desta, especificamente ao direito de defesa, ao contraditório e à ampla defesa qualificadamente instituídos em processo. Com a devida vênia, a decisão do Supremo Tribunal Federal desrespeita o processo histórico de formação do Estado democrático brasileiro bem como os diversos tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados no plano interno, e que o Brasil se obrigou a cumprir. Pelo exposto, constatam-se os diversos prejuízos e consequências que a ausência de defesa técnica acarreta no processo administrativo disciplinar, bem como na vida das pessoas que estão a ele sujeitas.

Ressalta-se ainda a importância da presença do advogado ou defensor nesses trâmites administrativos, uma vez que, embora não haja diretamente uma pena privativa de liberdade ou restritiva de direito, os impactos podem ser tão grave quanto a estas, afinal de contas, o processo administrativo disciplinar se refere ao principal meio de subsistência do sujeito, ou seja, o trabalho humano, bem como o modo que o indivíduo se enxerga na sociedade, de modo a contribuir com o todo. Privá-lo de tal prerrogativa, sem a efetivação do devido processo legal, é retirar sua dignidade como pessoa, o que consiste em uma clara contrariedade aos preceitos constitucionais positivamente instituídos.

Finalmente, por mais que se trate de uma temática complexa e que detêm divergências em sua discussão, medida cabível que  se aplicaria em maior consonância àquilo estabelecido pelo legislador constituinte seria a proposição e efetivo cancelamento da súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal, pois, por mais que a repercussão fosse significativa em suas consequências e adaptações, os direitos e garantias constitucionalmente atreladas ao cidadão encontrar-se-iam seguramente consolidados em face do ordenamento pátrio.

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Sobre os autores
Virgílio Queiroz de Paula

Orientador deste artigo. Mestre em Direito Público pela Universidade Fumec (2016), onde se graduou em Direito (2004). Pós-graduado em Direito Processual: Grandes Transformações (2006), Direito Processual Civil (2013) e Gestão Pública (2014). MBA em Engenharia e Inovação (2015). Especialista em Governança, Riscos, Compliance e Controles (2016). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito. Membro das Comissões de Direito Administrativo e Proteção de Dados da OAB-MG. Ex-Procurador Estatal Federal concursado da Ceasaminas, sociedade de economia mista da União. Diretor de Transparência e Data Protection Officer - DPO do Município de Belo Horizonte-MG. Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Administrativo e Cível, advoga em Belo Horizonte/MG e região metropolitana. Professor de Direito Administrativo e Constitucional do Centro Universitário UNA.

Gabriel Luan Barbosa Pinto

Assistente Jurídico-Parlamentar na Câmara Municipal de Betim; Assistente Jurídico em advocacia privada; Graduando em Direito pelo Centro Universitário UNA Betim. Zelo por gerar ideias que inovem e desenvolvam soluções viáveis para problemas relevantes do Direito, principalmente em tempos tão desafiadores quanto estes.

Cássio Yuri Xavier do Vale

Graduando em Direito, 9º período, Centro Universitário UNA Betim/MG

Informações sobre o texto

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