Os limites à tutela animal no direito brasileiro

A desobjetificação animal como pressuposto a sua condição de sujeito de direito sui generis para uma tutela jurisdicional adequada

02/06/2021 às 17:25
Leia nesta página:

O presente artigo se dirige à investigação dos obstáculos e condições que apontem à viabilidade de se conferir, aos animais domésticos e silvestres, personalidade jurídica sui generis.

RESUMO

O presente artigo se dirige à investigação dos obstáculos e condições que apontem à viabilidade de se conferir, aos animais domésticos e silvestres, personalidade jurídica sui generis a partir da análise do comando legal inscrito no art. 225 da CF/88, o qual, contendo preciosa senda exegética, permite vislumbrar pertinência, no bojo da proteção ao meio ambiente, à desobjetificação dos animais não humanos no direito brasileiro.

Palavras-chave: personalidade jurídica sui generis, direito animal, vulnerabilidade, desobjetificação, tutela jurisdicional, sociedade.


1. INTRODUÇÃO

A razão, morada do componente intelectivo que dá sentido à existência humana, perfaz instrumento por meio do qual nos movemos, e a partir de tal matriz assimilamos conceitos que se materializam sob a forma comportamental no seio da sociedade.


O corpo social, racionalizado por meio dos arranjos a que o coletivo exista em conformidade com padrões legitimados e forjados a partir da experiência, na qual, gradações hierárquicas e toda sorte de aparatos culturais se articulam e manifestam a feição arquetípica que lhe modela, expõe, a despeito da centralidade que o ser humano ocupa no bojo da produção existencial, variáveis decorrentes da complexidade que nos caracteriza, às quais notadamente o sofrimento perfaz efeito inescapável.


Como fator indissociável à experiência, o sofrimento é elemento que fragiliza e ao mesmo tempo instila na alma humana a obstinação expressa no movimento pulsional que o dirige ao encontro de novas rotas ao existir; e, à semelhança do que propôs Hegel, parece encontrar sempre uma alternativa conciliadora com a realidade, haja vista a necessidade interior de conceber e de conservar a liberdade subjetiva no que é substancial, razão por que, a urgência em em dar continuidade à penosa caminhada existencial - em conformidade ainda com o filósofo alemão -, nos leva a aceitar a razão como rosa na cruz do sofrimento presente (HEGEL; 1997, pág.38) [1].

O sentir humano, sob tal visão antropocêntrica, ocorre ao largo das agruras dos demais seres sencientes (animais), em cujo existir, esses, para além da satisfação das necessidades imediatas tais como alimentar-se e reproduzir-se, em alguma medida, manifestam a faculdade de perceber e apreender de modo peculiar através dos sentidos, sobretudo quando estimulados em algum nível relacional com a espécie humana - fundamentalmente quando tal interação se realiza na ambiência doméstica.

E sob tal entendimento, já há uma expressiva mobilização da sociedade civil em favor do que se pode chamar desobjetificação animal, cujo empecilho reside no fato de que o Código Civil Brasileiro, por força de seu art. 1° [2], obsta a que se reconheça personalidade jurídica aos animais, qualidade atribuída apenas à pessoa humana - excetuados alguns entes que, por ficção, contam com a admissão do direito -, condição para cuja superação, conta com projetos de leis inspirados em legislação internacional, de modo a que se perceba que um amplo e intenso debate se tem travado sobre a matéria.

Sob tal consideração, o presente trabalho pretende investigar as implicações na concepção de um estatuto próprio a disciplinar a questão animal bem como refletir acerca do que preconiza a constituição federal de 1988 em seu art. 225 [3], dispositivo chave a um adequado entendimento ao que pretendeu o constituinte ao estabelecer o dever estatal em salvaguardar a fauna bem como aprofundar o entendimento quanto ao real sentido empregado ao repudiar a crueldade, visto tal componente como uma evidência da vulnerabilidade animal em contraste com a superioridade humana (relativa em alguns casos), demandar a necessidade de se repensar o status de rês consagrado à criatura animal não humana.

A produção do presente artigo se apoiou fundamentalmente em pesquisa na rede mundial de computadores (internet) e doutrina civilista, com vistas à análise das razões que orientam certa corrente doutrinária a não apenas entender que aos animais se legitima a extensão de certos direitos, à semelhança do direito de ação, notadamente por meio de ficção jurídica que admitiria os mesmos figurarem como parte através de representação, entendimento que aponta claramente no sentido de se atribuir personalidade jurídica aos animais.

À luz de tal entendimento, cumpre sublinhar, que a seção 2.1. propõe um olhar acerca dos limites coercitivos do direito positivo sobre a sociedade, haja vista a condição humana perfazer variável a produzir necessidades que renovam a realidade social, a qual, a partir de um olhar que apreenda dialeticamente as transformações, será possível captar as contradições como componente intrínseco à história das sociedades.

Nessa rota, a seção 3.1. põe em relevo o parâmetro constitucional ao deslinde das condições para se proceder a uma exegese consentânea à compreensão da dignidade com aplicabilidade à questão animal, condição para a qual se extrairá, do art. 225 (CF/88) [3], a razão de fundo a orientar uma interpretação que encontre, na vedação ao tratamento cruel, um guia para um rigoroso escrutínio.

Consoante à direção encetada no parágrafo anterior, a seção 3.1.1. aborda o tormentoso tema da personalidade jurídica com escopo na viabilidade de construção ficcional a contemplar a atuação ativa de animais em âmbito judicial sob o instituto da representação, condição a colidir frontalmente com norma fundamental do CC em seu art. 1°, a qual considerar-se-á um obstáculo de dificílima transposição, notadamente pela centralidade humana no terreno jurídico.

O tópico ainda se ocupará, com claro propósito provocativo, dos fins sociais inscritos na LINDB (Lei de introdução às normas de direito brasileiro) [4], de modo a refletir acerca do aproveitamento desse princípio com vistas a dar substrato ao argumento em favor da tese da personalidade sui generis.

Em sequência, a seção 4.1. visa apresentar, por meio de circunscrito arcabouço legislativo, uma reflexão sobre as repercussões do debate no âmbito do poder legislativo, expresso na propositura de projetos de lei em cujo cerne frequentemente se verifica a tendência de conferir aos animais domésticos e silvestres personalidade jurídica, condição para a qual se destaca o PL 6054/2019[5], cujo teor, concernente ao instituto da personalidade, aduz dois importantes elementos, quais sejam, o caráter sui generis e a feição despersonalizada intrínsecos à personalidade animal.

Em que pese o tema abranger aspectos normativos mais amplos, optou-se, no presente artigo, por uma abordagem com lastro fundamental na constituição federal brasileira, a qual inscreve a perspectiva de proteção animal com ênfase no repúdio à crueldade, componente através do qual se torna necessário refletir as razões de fundo a orientar o legislador constituinte, razão por que não se pretende esposar a posição dominante ou o entendimento minoritário da comunidade jurídica, mas, contribuir ao debate com relevo no pendor e caráter protetivo constitucional, de onde se extrai orientação essencial à compreensão de que a constituição de um direito animal, engloba uma concepção humanista que discerne a dignidade como fator decisivo na esfera da relacionalidade humana com o meio ambiente em seu entorno, notadamente a fauna.  


2. DIREITO, SOCIEDADE E A QUESTÃO ANIMAL

     2.1. Obstáculos à tutela jurisdicional dos animais no direito brasileiro

O brocardo romano atribuído ao jurista Ulpiano (170 - 228 d.C.) Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus (Onde está o homem, há sociedade; onde há sociedade, há direito) [6], afirma a indissociabilidade da ciência jurídica à coletivização da existência humana.

Em linhas gerais este aforismo é entendido como pressuposto à ideia iluminista de que a constituição da sociedade por meio do acordo geral (sob as condições materiais de existência), inscreve as balizas pelas quais a mesma funcionará, concepção a exigir observância/obediência a um ordenamento jurídico (escrito ou não).

As leis, portanto, se instalam por uma necessidade prática, refletindo os valores e princípios reitores desse coletivo em razão da complexidade inerente à vida social - a despeito de suas variações se considerarmos as particularidades de certo conjunto de sociedades humanas situadas em diferentes regiões do globo.

Ocorre que a condição humana é um dado ou fator comum em qualquer sociedade, e tal componente é a origem da complexidade acima aludida uma vez que, a despeito dos arranjos forjados ao regular funcionamento do corpo social, a estrita obediência ou reprodução automática das leis restaria impossível porquanto em franca oposição com as variáveis instaladas na subjetividade a gravitar em torno dos padrões comportamentais exigidos ao cumprimento de obrigações para cuja violação o direito constitui instrumento coercitivo.

A despeito da flagrante contradição entre a expectativa comportamental fundada no direito e as limitações do indivíduo ao absoluto cumprimento das mesmas as sociedades se organizam, e, sob tal fundamento, o repertório de transformações que se impõem - em que pese a manutenção de certo padrão comum que lhes empresta caráter homogêneo -, nascidas de aspirações e necessidades novas, inauguram inevitavelmente abordagens à reflexão no campo jurídico estranhas ao passado.

À semelhança disto, e como componente a expressar a complexidade decorrente da subjetividade humana que, em seu conjunto, concebe compreensões que impõem perplexidade pelo ineditismo, incorporando ao elenco das experiências novas perspectivas, o tema da fauna, para o direito brasileiro, permite vislumbrar uma aparente e inevitável mudança de conjuntura, na qual, tem-se evidenciado crescente revisão de diversos institutos em nome da urgente necessidade de atualização do ordenamento em razão da superação de rasa compreensão acerca da vida e condição animal.

Refletir este tema se mostra assaz tormentoso, tendo em vista a necessidade de ampliarmos a percepção de modo a que oportunizemos espaço à autocrítica no que respeita aos abusos contra os animais, uma vez que nosso repúdio ainda se inscreve na tábula antropocênctrica de nossas reflexões, condição a normalizar, na atual quadra histórica, a objetificação animal malgrado as consequências deletérias que tal condição representa.

Longe de se considerar uma panaceia, mas, ao contrário, reconhecer nas iniciativas legislativas um elemento de vital repercussão dessa demanda nascida no clamor de significativa parcela da sociedade, tem se imposto um debate e alguns projetos de leis, em âmbito federal, objetivam o disciplinamento de condutas que implicam em consequências danosas aos animais bem como a erigir amplo arcabouço jurídico de modo a estabelecer um verdadeiro microssistema.

Antes de elencar e refletir sobre algumas iniciativas legislativas dirigidas ao tema em comento, mostra-se importante sublinhar alguns aspectos que notadamente tocam elementos jurídicos destinados ao ente humano e que, por sua vez, são passíveis de suscitar perplexidade, haja vista a insólita extensividade de certos institutos aos animais, condição que, num primeiro momento, poderá considerar-se um aviltamento da dignidade humana ou inadequação analógica visto que nossa espécie ocupa a centralidade das razões que mobilizam o mundo jurídico e portanto o regramento da vida em sociedade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Em consonância, é imprescindível ao pavimento metodológico de exposição pretendida, um prévio esclarecimento acerca de uma diferença fundamental, a qual ocupa o ambiente da semântica, à medida que dois vernáculos precisam ser compreendidos na base e exatidão de seus respectivos sentidos, de modo a se evitar (ao menos em alguma medida) a leitura desse texto sob precipitada convicção de que o movimento em favor da defesa da causa animal por meio de reformulações do ordenamento jurídico ou mesmo na concepção de um estatuto próprio e consequencial à proteção preconizada pela constituição federal de 1988, estaria alicerçado na ideia de humanização ou relativa isonomia entre humanos e animais a se expressar no âmbito petitório, ou seja, na judicialização de demandas nas quais se admitiria como parte o próprio animal através do instituto da representação.

A apreensão supra esboçada, qual seja, o entendimento de que estaria surgindo um movimento em direção à relativa igualdade jurídica entre humanos e animais no âmbito da ocupação do polo ativo da demanda em juízo não é de todo absurda, sobretudo em razão de que há uma aparentemente tímida porém gradual inclinação de certa corrente jurídica no sentido de conferir legitimidade à inserção dos animais como partes nas pretensões em juízo - por via indireta - sob o instituto da representação.


Em consonância, impende sublinhar que há um receio de que estar-se-ia reivindicando a capacidade de direito aos animais (Código civil, art. 1º), e, ao que parece, circunscrita aos casos de maus-tratos, condição que evidenciaria uma mudança de paradigma, tendo em vista que essa sinalização compreenderia a ideia de abandono da objetificação em nome do reconhecimento da dignidade daqueles, entendimento que encontra lastro sobretudo na perspectiva de proteção inscrita na carta constitucional de 1988 à medida que ali se vislumbra o liame entre um fato danoso e a consequente repercussão no terreno não apenas da subjetividade dos donos, e sim, no íntimo ambiente dos sentidos dos animais conforme art. 225 da CC/88 a ser abordado em tópico próprio.

As implicações de natureza conceitual são demolidoramente flagrantes, notadamente em razão de não mais existir dúvida de que a dimensão relacional entre animal e humano experimentou um aprofundamento tal que não mais resiste a estrita e absoluta noção dono/coisa, e sim, uma interação orgânica e pulsional mediada pelos sentidos do animal ao desencadear uma intimidade afetiva com as pessoas que transcende a mera coisificação lastreada no direito positivo e que encontra acolhimento e correspondência recíproca no terreno da subjetividade humana.

Tecidas tais observações, cumpre a distinção entre senciência e consciência, cuja diferença reside no fato de que o primeiro substantivo compreende a capacidade de sentir, perceber coisas através dos sentidos, condição a guardar consenso universal quanto ao entendimento acerca de que os animais possuem tal aptidão, enquanto no segundo elemento reside a ênfase no autoconhecimento, uma vez que o ser cognoscente não apenas apreende, assimila conteúdos, mas, se sabe portador dessa capacidade, certamente o mais expressivo elemento de diferenciação entre a espécie humana e os demais seres viventes.

A distinção precedente se faz necessária com vistas à superação da ideia de que a humanização dos animais estaria, necessariamente, na base propositiva de tais iniciativas legislativas, uma vez que tal vinculação deveria ser evitada a priori tendo em vista a própria disposição dos projetos de lei no Brasil e legislações já consolidadas e de amplo espectro na tradição jurídica internacional, consolidarem a distinção acima mencionada, a partir da qual abrir-se-ia uma senda para a configuração de um estatuto jurídico infralegal à salvaguarda animal.

A centralidade que ocupa o ser humano no bojo de um dos mais importantes meios de coerção social que é o direito não é suficiente à contenção, no âmbito da poder dinâmico da existência, expresso nas transformações concretizadas a partir de necessidades que se impõem pela renovação do modo de enxergar certos temas, a reformulação de entendimentos e práticas que incorporam, como medida e pressuposto da vontade no seio tensões coletivas, referências novas que se inscrevem no sucessão dos dias e na concepção dialética da história.


3. CONSTITUIÇÃO COMO LIMITE À VIOLÊNCIA

     3.1. A natureza da proteção constitucional


Por imperativo hierárquico, impende reproduzir o art. 225, §1º, VII da CF/1988, tendo em vista a importância de tal dispositivo reconhecer, de modo inaugural ao direito constitucional pátrio, a necessidade de proteção ao meio ambiente à medida que estabelece a incumbência do Poder Público em proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Impõe-se, à luz do texto retro indicado, ressaltar que a mens legis ou o sentido do dispositivo legal apreende e contempla o ser animal, de modo singular, e para além do escopo protetivo imediato consubstanciado na salvaguarda da integridade da fortuna ambiental brasileira do assédio predatório, sob a ideia subjacente de que a crueldade é um anacronismo à luz do modelo de sociedade que se pretende civilizada, para a qual, esse plus na agressividade humana notadamente dirigida aos animais, prefigura um renovado olhar que se espraia ao âmbito da subjetividade, uma vez que o afeto e vulnerabilidade inerentes aos animais são componentes fundamentais à crescente mobilização da sociedade civil que, a despeito de classificações jurídicas e da ciência biológica, transcende e supera, no campo da experiência real, compreensões insculpidas no quadro dos domínios do saber científico e coercitividade estatal.

Sob tal perspectiva, cumpre realçar que a expressão crueldade se inscreve no âmbito de uma clara compreensão de vulnerabilidade animal, condição para a qual não silenciou o constituinte; e, nesse diapasão, é possível pinçar, do comando constitucional, o propósito ao qual se destina tal menção, qual seja, alinhar a proteção holisticamente concebida ao escopo de uma especial atenção àqueles entes para os quais a vulnerabilidade exsurge no âmbito da convivência com os humanos e/ou mesmo pela vantagem que em regra esses possuem em relação àqueles.

Desse bordo, indicar a centralidade da sociedade humana no bojo da concretização do direito não significa mais escapar ao olhar do jurista aspectos correlatos inconcebíveis nos tempos de outrora, razão por que, e em que pese a prevalente resistência jurisprudencial, a referência constitucional indicativa de que o direito animal se avizinha é realidade irrefreável e inconteste, importando que atentemos para o modo como sua expressão fática se realizará.

Por inescapável linha de convergência, é forçoso reconhecer, que as inquietações do agora, quando expressas de modo a suscitar debates intensos no campo do direito, indica-nos que alguma medida de relevância os temas objetos de intensa reflexão incorporam (à semelhança do direito dos animais), em relação aos quais o mundo jurídico deve ser emulado a pensá-los uma vez que seu caráter coercitivo será o fator através do qual os indivíduos se orientarão à provocação do estado com vistas ao ideal de pacificação social.

E com espeque na pacificação da sociedade, o direito se constitui numa sombra a acompanhar os indivíduos de modo inescapável, porquanto elemento de um sistema sem o qual os parâmetros de regulação da conduta humana restariam inscritos na alma apenas, condição para a qual sobreviria a prevalência do império da barbárie conforme concepção dominante a despeito dos elementos violentamente brutais concebidos e dos quais se serve o estado a quem a sociedade (classe hegemônica) atribuiu legitimidade para o uso da força.

    3.1.1. Personalidade Jurídica e finalidade social da lei

Com fulcro no reconhecimento de que a sociedade tem demandado reposta estatal acerca de tema que se mostra cada vez mais agudo e desafiador uma vez que sua feição, pela complexidade que comporta exige detida análise, se faz inescapável, antes de proceder aos comentários relativos a algumas iniciativas legislativas aludidas acima, aduzir o instituto da personalidade jurídica de modo a investigar os aspectos em que tais propostas guardariam relação de oposição com o direito pátrio.

A personalidade jurídica, conforme a melhor doutrina, compreende uma qualidade da pessoa, a qual, por meio desse instituto torna-se sujeito de direito, portanto capaz de direitos e obrigações na ordem civil, vale dizer, sujeito de uma relação jurídica e sujeito do direito subjetivo e do dever jurídico (LOUREIRO; 2010, pág. 96)[7].

Como qualidade reconhecida pelo direito ao ser humano (LOUREIRO; 2010, pág. 95), a personalidade surge através do nascimento com vida e se extingue com a morte, alcançando algumas outras entidades tais como a sociedade, organizações, fundações e entidades políticas (LOUREIRO; 2010, pág. 95) em que pese ser a pessoa, essencialmente, o ente humano, o qual, por expressa previsão legal, possui a capacidade de ser portador de direitos e contrair deveres na ordem civil, em conformidade com o que preconiza o art. 1º do CC ao informar que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.


Posta a conceituação precedente, se faz necessário envidar esforços à investigação das razões em que se inscrevem a resistência jurisprudencial a que se fez menção em tópico anterior, as quais, por certo, se ancoram, em grande medida, no receio de que institutos fundamentalmente vinculados e dirigidos ao ser humano, uma vez invocados em favor do animais corresponderia a uma estranha aproximação das condições inerentes à pessoa humana, desfigurando, por consequência, o propósito ao qual fora concebido o direito em seus fundamentos.

Os defensores de uma atuação supostamente ativa do animal no terreno judicial, consubstanciada pela inserção do nome do mesmo por seu(s) dono(s) em peça exordial, encontraria justificação no fato de que tal condição representaria uma vantagem ao menos, à medida que essa inserção, na suposição de vitória judicial, significaria que o proveito econômico da demanda seria dirigido ao próprio animal, condição a se considerar uma vez que tais indenizações em regra são direcionadas a entidades e mesmo aos donos da rês, os quais figurariam, na hipótese, como depositários responsáveis à gestão do valor com vistas ao implemento de medidas restaurativas ao agredido.

O entendimento manifesto estaria, conforme disposição na Lei de introdução às normas de direito brasileiro (LINDB) em seu art. 5º, na esteira da finalidade social e de acordo com as exigências do bem comum, condição para a qual é de se considerar que não apenas cumpre ao operador do direito na prática judicante observar esse importante comando, mas, igualmente, aos demais atores envolvidos em seus respectivos papéis, atuarem em consonância com tal referência sob a concepção de que tal dispositivo impõe reconhecimento de que a finalidade social da lei é concebida de modo a se ramificar ao mais amplo espectro da existência, razão por que, sob tal perspectiva, não seria absurdo aproximar os animais ao nível de atores processuais mais ativos desde que em subordinação aos limites jurídicos pertinentes, condição para a qual essa concepção ganharia concreção por meio de ficção jurídica.

Evidente que as considerações retro indicadas estão situadas na esfera hipotética, para as quais, embora se imponha a exigência de um escrutínio que não ignore o direito positivo notadamente nos pontos em que indiquem colisão entre a inovação pretendida e seus institutos mais solidamente constituídos, ao mesmo tempo não olvide as razões que emanam de uma compreensão mais profunda e que emerge sob circunstâncias históricas a exigir mais apurada reflexão a fim de que a letra fria da lei não desfira agressão e se interponha como obstáculo intransponível ao direito vivo.

4. LEGISLAÇÃO

    4.1. Ecos no legislativo

Longe de se considerar uma panaceia, mas, ao contrário, reconhecer nas iniciativas legislativas um elemento de repercussão de uma demanda de parcela da sociedade, tem se imposto o debate a influir na concepção de alguns projetos de leis em âmbito federal com vistas ao disciplinamento de condutas que determinam implicações sobre os animais.

Esse claro propósito protetivo, conforme apontara Antonio Junqueira de Azevedo, à medida que propugnara a ousadia inscrita na revisão do tema, personalismo ético, com vistas a correções na ideia dominante de dignidade humana (AZEVEDO; 2008, p. 115-126 e 117), avulta em relevância à medida que, por expressa disposição constitucional, a proteção aos animais salienta o repúdio a práticas cruéis, no bojo das quais é preciso que aceitemos que tal previsão parte da compreensão de que a crueldade se expressa como fator a infligir e resultar em sofrimento sobre o ente vulnerável, e nessa relação desigual, a proteção precisa se realizar através de institutos que permitam maior eficiência.

A par disso, convém mencionar o Projeto de Lei 3.676/2012 [8], de autoria do deputado Eliseu Padilha, em cuja proposta reside a ideia de criação de um Estatuto dos Animais, sendo oportuno reproduzir a redação do artigo 2º: Os animais são seres sencientes, sujeitos de direitos naturais e nascem iguais perante a vida.

Eis interessante redação, a qual aduz a ideia de alçar os animais à condição de sujeitos de direitos naturais, concepção que parece tomar de empréstimo a visão jusnaturalista ao conceber o ser humano como alvo, no plano da intersubjetividade, da uma norma preexistente e imutável e que deve expressar-se sob o molde do direito positivo de modo a que o mesmo se revista da melhor forma, modelo ideal.


Em complemento, o artigo conclui indicando a natureza igualitária dos animais perante a vida, forma conclusiva a reforçar, por inferência, a assertiva que abre o texto ao afirmar que animais são seres que comportam sensibilidade, entendimento correlato à noção de igualdade estrutural a despeito das diferenças que marcam a fauna terrestre, sob a qual invocar-se-ia a necessidade de proteção, tendo em vista a configuração orgânica que lhes confere caráter sensciente.

Em avançada concepção, o Projeto de Lei 6.7054/2019, de iniciativa do deputado federal Ricardo Izar, em seu art. 3º dispõe que [o]s animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa.

Neste exemplo, conforme anteriormente esboçado em tópico anterior, há uma flagrante intenção de conferir, por meio ficcional, natureza jurídica aos animais, disposta como sui generis, pressuposto a que se avance a conceituá-los como sujeitos de direitos porém despersonificados, ficção que pacificaria as discussões em alguma medida em torno da preocupante ideia de se aceitar que o animal figure no polo ativo de uma demanda, práticas que no Brasil parece expressar mais um ato simbólico em que pese algumas poucas decisões manifestarem acolhimento.

A rigor, a proposta visa outorgar aos animais tratamento que os situe como sujeitos sencientes, em conformidade ao praticado pela legislador mexicano que assim procedera.

Sob os exemplos supra indicados, em que pese existir uma plêiade de codificações compreendidas no ordenamento jurídico internacional a disciplinar tal matéria, cumpre sublinhar o fato de que o Código Civil, por expressa disposição, promoveu a indiscutível tipificação dos animais reduzindo-os a coisas, condição jurídica que os remete a meros, objetos de propriedade, não havendo o que se discutir quanto à ausência de qualidade de pessoas, inexistindo, portanto, personalidade jurídica que lhes pudesse atribuir a condição de sujeitos de direito.

5. CONCLUSÃO

Movido pela ideia de desvendar os meios pelos quais os indivíduos alcançariam a paz perpétua, Immanuel Kant, filósofo idealista do séc. XVIII conclui, após rigoroso exercício de reflexão, que a realização de tal proeza decorreria da boa vontade, em que pese aos dias atuais restar utópica a concepção do filósofo idealista uma vez que para tal comunhão, o altíssimo nível de complexidade da vida em sociedade nos indicar a necessidade de um arsenal amplamente difuso de recursos, os quais ainda assim se mostrariam insuficientes para alcançar plena concórdia.

O exemplo de Kant, consideradas as convicções que orientavam seu pensamento, ou seja, estribadas na convicção de uma razão universal, ofereceu-nos um caminho à conquista da paz em dissonância com uma realidade vital, a qual revela uma diversidade no campo social que não contempla a boa vontade apenas como condição fundamental à superação do permanente conflito que marca a existência humana, tendo em vista que, noutra direção, compre-nos questionar se o ente humano possui, de fato, condições ao alcance de tal desiderato.

A par da utópica paz se encontra o sofrimento como condição inescapável à experiência que, na atual quadra histórica, avulta em relevância, já que revela contornos que surpreendem porquanto incertos numa singularidade.

E um dos aspectos em sociedade a merecer atenção perfaz a causa dos animais, a qual exige um olhar profundo e consentâneo a um direito ao qual não mais é aceitável tolerar tratamento superficial e reducionista, ao contrário, impõe-se incorporar a complexidade como condição ao seu deslinde, uma vez que tal tema, imbricado à condição humana, determina ao estado pensar para além dos marcos legais civis atualmente vigentes à medida que a constituição federal, alinhada ao pressuposto protetivo, já indica as balizas nas quais instrumentos atualizados para essa matéria deverão ser elaborados.


Sobreleva em importância o teor de tal argumentação à medida que agrupa uma série de dimensões, as quais permitem adensar o debate ao açambarcar, na base da reflexão, não apenas o componente jurídico expresso no exercício exegético e especulativo à superação de obstáculos que se contrapõem à necessidade de se lançar um renovado olhar sobre o tema, mas, também, reconhece a própria condição humana a partir do vínculo empático com os animais tendo em vista o nível de inserção dos mesmos à vida doméstica e sua relevância ao ambiente científico.

E nesse horizonte é inegável que a consciência humana acerca do sofrimento constitui parâmetro à compreensão de que a dimensão da empatia, faculdade que extrapola o entendimento de que seu exercício encontra fim entre humanos exclusivamente, exacerba a provocação quanto aos limites à proteção animal na esfera judicial, uma vez que agora o escopo se alarga consideravelmente, haja vista não mais circunscrever as medidas de proteção jurídicas sob o esteio e razão dono/coisa, e sim, a partir da concepção prévia de que o animal constitui um membro familiar que conjuga as condições de afeto no bojo de uma interrelacionalidade expressa, em muitos casos, em medida consideravelmente intensa sem a pretensão de sublimar o recorte biologicamente traçado pela cadeia estrutural que estabelece as diferenças em relação à espécie humana.

Ocorre que há, no centro da discussão que repercute inclusive em iniciativas pioneiras no legislativo federal a sinalizar com projetos de leis que pretendem inaugurar regramento próprio à causa animal questão inquietante pela inovação que representa, uma vez que toca instituto dirigido ao exercício exclusivo da pessoa humana, à semelhança do exercício do direito de ação, o qual, segundo entendimento de certa corrente minoritária, se estenderia de modo ficcional ao animal que ocuparia o polo ativo da demanda através do instituto da representação, condição obstada pela razão de que o mesmo, à luz do CC/2002, é reduzido à coisa, cuja tutela possui referência no direito ambiental.


Impende ressaltar as implicações de tal pretensão, marcadamente pela colisão com instituto expressamente inscrito no art. 1º do CC/2002 que apenas reconhece a capacidade jurídica ao ser humano (exceções aos entes elencados em tópico precedente), obstáculo para cuja superação não restaria alternativa além da criação de um estatuto próprio que contivesse previsão expressa a elevar o ente animal à condição de sujeito de direito sui generis e despersonalizado e sua consequente desobjetificação, em lugar de se aguardar mudança paradigmática através de novo entendimento jurisprudencial acerca da matéria a tornar-se majoritário em algum momento, realidade que não se mostra no horizonte a despeito de alguns poucos exemplos decisórios.

Em síntese, malgrado o estranhamento que suscita considerar o animal sujeito de direito, parece coerente que, considerado o comando constitucinal inscrito em seu art. 225 um sinal de que a proteção ali plasmada sinaliza não apenas aos elementos imediatos de proteção, consubstanciados na abstenção de tratamento cruel, mas, sim, na percepção da vulnerabilidade da fauna frente à superioridade humana no campo relacional, condição a permitir o reconhecimento de que merece o animal revestir-se do manto da personalidade jurídica em sua feição sui generis e despersonalizada, conforme proposta legislativa inscrita no texto do projeto de lei 6054/2019 que tramita na Câmara Federal, favorecendo a uma consentânea ao princípio da dignidade, a qual perpassa o antropocentrismo jurídico.

 6. REFERÊNCIAS

Acesso em 01/06/2021 às 15:18h; http://abdet.com.br/site/wpcontent/uploads/2015/03/Princ%C3%ADpios-da-Filosofia-do-Direito.pdf[1[1]

Portal Brasil. Código Civil Brasileiro. Acesso em 01/06/2021 às 21:51h; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>[2]

Portal Brasil. Constituição Federal de 1988. Acesso em 31/05/2021 às 21:38h; <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>[3]

Ministério da Justiça e Segurança Pública, Acesso em 01/06/2021 às 15:46; <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/lavagem-de-dinheiro/institucional-2/legislacao/lei-de-introducao-as-normas-do-direito-brasileiro>4]

Câmara dos deputados. Acesso em 31/05/2021 às 22:12; <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=541122>[5]
Dicionário Online. Acesso em 01/06/2021 às 15:54h; https://www.dicio.com.br/ubi-societas-ibi-jus/>[6]

A tutela jurídica dos animais no Direito Civil Contemporâneo; Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA). Acesso 31/05/2021às 23:42h; <https://www.conjur.com.br/2018-jun-04/tutela-juridica-animais-direito-civil-contemporaneo-parte>[7]

Câmara dos Deputados. Acesso 31/05/2021 às 23:48h; <ttps://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=601739>[8]

Sobre o autor
Maurício Sobeltha

Escritor e leitor compulsivo, pós-graduado em História, pós-graduado em Filosofia Contemporânea, pós-graduado em Complementação Pedagógica/R2 - Filosofia, Pós-graduando em Direito Penal, articulista do blog www.solardapalavra.blogspot.com, em cuja alma habita a fé de que "O caminho se faz caminhando". (...) razão é a rosa na cruz do sofrimento presente... - Hegel

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A razão de fundo a justificar a produção do presente texto, compreende o desafio que o tema representa, tendo em vista tocar em institutos de natureza jurídica nos quais o ente humano encontra absoluta centralidade, razão por que, o movimento que se pode chamar desobjetificação dos animais não humanos, perfaz a possibilidade de articular, para além do campo estritamente jurídico, elementos do campo da subjetividade humana.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos