Assim caminha a humanidade - Uma abordagem sobre contrato

02/06/2021 às 18:32
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Uma reflexão não deve escapar à discussão ora colocada, qual seja, a percepção de que o acordo humano, a despeito de não constar em documento escrito, pode sim ter validade jurídica e não apenas restar circunscrito ao campo ético-moral.

Passei algumas horas construindo uma peça jurídica na qual expunha, de modo exaustivo, a compreensão prevalente da doutrina acerca dos valores relativos ao dever de assistência mútua que deve nortear a comunhão conjugal, a qual, por pertencer ao campo das escolhas e subjetividade humana, não está imune à dissolução.

Sob tal perspectiva, é compreensível que obrigações bilaterais precisem ser observadas por aqueles que um dia se vincularam, e para tal projeto de união estabeleceram a reciprocidade do cuidado sem que necessariamente afirmassem, de modo solene, esse compromisso.

Em que pese variar de pessoa a pessoa, o compromisso é um valor socialmente válido, o qual não precisa estar reduzido a um instrumento escrito com vistas a revestir-se de relevância jurídica por exemplo, uma vez que nosso ordenamento civil elegeu a boa fé objetiva como a bússola que nos orienta a dar cumprimento ao que nos obrigamos, extraindo de tal entendimento a noção de que esse princípio, a boa fé, dá à luz a lealdade, probidade e confiança, a partir dos quais não se escapa ao fato de que agir de boa fé significa, a despeito de certas formalidades de que se reveste parte expressiva dos pactos humanos, comportar-se em conformidade e nos moldes em que os acordos foram lavrados.

Objetivamente falando, deparei-me com um caso em que os cônjuges optaram por uma ruptura consensual do matrimônio, em razão da qual reuniram-se acompanhados de seus respectivos advogados, para enfim procederem à confecção de um acordo, ao qual, negligenciaram a inserção da manutenção da acordante (esposa) no plano de saúde em que o esposo figurava como titular de modo escrito, ou seja, no bojo do documento, embora o acordante (esposo) houvesse se comprometido e manter aquela por lapso temporal de nove meses, prazo apto a permitir que a mesma se organizasse para realizar os passos procedimentais à mudança de Seguro compreendidos na pesquisa, prospecção e respectiva portabilidade.

Ocorre que o acordante, de modo intempestivo e surpreendente, excluiu a acordante do Plano, sem realizar comunicação prévia e a despeito de haver se comprometido, condição a que denominou seu advogado "acordo de cavalheiros", para o qual,  há elementos de prova substanciais que demonstram o compromisso tais como a continuidade da manutenção da mesma no Plano por três meses, mensagem de email e whatsapp bem como gravação em áudio da reunião que culminou no acordo.

Ante a recalcitrante postura do ex marido quanto à reinserção da ex esposa, em que pese ter consciência de que se comprometera a ampará-la por algum tempo no Plano, não restou a esta alternativa senão  demandar judicialmente em face daquele, o qual, claramente se vale do fato de que não há registro escrito do compromisso em dar continuidade ao vínculo da ex esposa, mesmo sob lapso temporal relativamente curto, cuja relevância de sua permanência reside no fato de que a mesma seria submetida a grande vulnerabilidade, uma vez que teria de suportar ônus significativo, notadamente a interrupção de procedimentos médicos e impossibilidade de proceder à portabilidade para outro Seguro de Saúde com vistas a evitar período de carência.

Eis que claramente a questão exige o enfrentamento objetivo dos elementos postos ao debate, quais sejam, se a ausência de inscrição do compromisso no bojo do acordo possui o condão de afastar a responsabilidade do ex marido quanto à manutenção da ex esposa no Plano de Saúde, condição para a qual antecipei o princípio da boa fé como contraponto à tese do acordante a qual pretende-se evitar que prospere, sobretudo por haver elementos de prova que demonstram a intenção do mesmo em dar manutenção ao vínculo, a qual, inclusive, fora parcialmente cumprida no período de três meses.
A afirmação do art. 113 do Código civil de que "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", perfaz inequívoca intenção do legislador em evitar um sistema totalitário de normas de modo a coaduná-lo aos ditames da principiologia constitucional, a qual elege a dignidade humana como parâmetro à interpretação e aplicação da norma jurídica, evitando, por certo, compreensão casuística das cláusulas que agora se encontram vinculadas à matriz constitucional.

Para mais ampla compreensão da questão proposta, preconizou Miguel Reale a incidência da eticidade à exegese da norma civil, elemento que incorpora à aplicação da norma o valor ético indissociável à consolidação das relações, significando afirmar que não apenas a fria letra da lei constitui baliza ao operador do direito, mas, igualmente, razões subjetivas que dirigem a ação humana para determinados fins, condição que expõe a presença de outro princípio, qual seja, a operabilidade, cujo valor reside na noção de que resta não mais vigente a compreensão equivocada de um sistema totalitário, hermético e vinculado ao modelo oitocentista nascido dos ideias iluministas, os quais, embora de valor imprescindível ao ocidente, inegavelmente à dimensão jurídica pós-contemporânea tem sido submetidos a uma profícua revisão em razão das mudanças na realidade social.

A par de tal reflexão, inscreve o insigne jurista ao conjunto de princípios conectados à dignidade humana, a socialidade, elemento referencial à percepção de que os acordos/contratos são ultrassubjetivos, uma vez que seus reflexos impactam, muitas vezes, uma coletividade de indivíduos além dos envolvidos diretamente nas avenças, razão por que e à luz do caso sob exame, convém salientar que o descumprimento do agora Réu e ex cônjuge, colide frontalmente com os princípios retro destacados, haja vista a evidente conexão dos mesmos à dignidade humana escopo e parâmetro essencial à aplicação da norma.

Uma reflexão não deve escapar à discussão ora colocada, qual seja, a percepção de que o acordo humano, a despeito de não constar em documento escrito, pode sim ter validade jurídica e não apenas restar circunscrito ao campo ético-moral, embora a transposição ao papel ou outro meio virtual indicar, em princípio, a disposição de vincular-se os pactuantes ao que celebraram, porém, a escolha que nasce da vontade, quando não maculada por vício de consentimento, não deveria, por certo, depender de codificações. No entanto, "Assim caminha a humanidade", no sentido da consagração do  contrato escrito como mecanismo eleito pelas sociedades e que se mantém como símbolo de eficácia ou no mínimo presunção de que um acordo deva ser cumprido.

Sobre o autor
Maurício Sobeltha

Escritor e leitor compulsivo, pós-graduado em História, pós-graduado em Filosofia Contemporânea, pós-graduado em Complementação Pedagógica/R2 - Filosofia, Pós-graduando em Direito Penal, articulista do blog www.solardapalavra.blogspot.com, em cuja alma habita a fé de que "O caminho se faz caminhando". (...) razão é a rosa na cruz do sofrimento presente... - Hegel

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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