A PEC 135/19

05/06/2021 às 15:23
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DA PEC 135/19 DIANTE DA JURISPRUDÊNCIA DO STF.

A PEC 135/19  

Rogério Tadeu Romano  

Observo o voto histórico emanado da ministra Cármen Lúcia Antunes na Adin n.º 4.543.  

Ali lembrou-se que, no direito brasileiro, no direito constitucional brasileiro o voto é secreto (art. 14 da Constituição). E o segredo do voto constitui conquista destinada a garantir a inviolabilidade do querer democrático do eleitor e a intangibilidade do seu direito por qualquer forma de pressão. 

A garantia da liberdade do eleitor na emissão de seu voto exige que este seja secreto, como a Constituição prescreve no artigo 14 da Constituição. Como disse José Afonso da Silva(Direito Constitucional Positivo, 5ª edição, pág. 313)o segredo do voto consiste em que não deve ser revelado nem por seu autor nem por terceiro de forma fraudulenta. O eleitor é dono desse segredo.  

Salientou o ministro Alexandre de Moraes, no julgamento da ADI 5889 / DF : “(...)Então, como eu disse, o sigilo deve ser garantido antes, durante e depois para se evitar exatamente eventuais programas eletrônicos de conferência retroativa. Ou seja, a possibilidade, a meu ver, que traz o art. 59-A, principalmente seu parágrafo único, de identificação de quem votou, de quebra do sigilo, e, consequentemente, de diminuição da liberdade do voto, pois a pessoa poder se sentir ameaçada, seria, no modelo que o art. 59-A trouxe, um retrocesso aos avanços democráticos que o Brasil fez para se garantir realmente uma eleição livre, uma eleição em que as pessoas possam escolher aqueles que elas preferem. E a urna eletrônica, como deveria realmente ter realizado, tomou cuidado de se permitir voto em branco, porque também é uma opção o voto em branco; há possibilidade, não há o botãozinho, mas há possibilidade do voto nulo, que também é uma opção, ou seja, não há nada aqui que distancie o exercício da soberania popular, o exercício da cidadania no voto eletrônico. (…) Aqui, volto a dizer, o art. 59-A, especialmente seu parágrafo único, na opção – e legitimamente o legislador tem o direito constitucional de optar como será o voto – híbrida, fere o sigilo do voto, a liberdade do voto, porque tem uma alta potencialidade de identificação do eleitor. Essas duas características são constitucionais, previstas tanto no art. 14 quanto no art. 60, §4º: a liberdade do voto e o voto sigiloso. Dessa forma, resumindo e indo para o final, não se trata da questão de custos. O legislador pode fazer uma opção legítima; que se volte o voto no papel; por um modelo híbrido que não tenha essa potencialidade lesiva à liberdade do voto, ao sigilo do voto, essa também seria uma opção do próprio legislador. Aqui, não é uma questão de economicidade, de maior celeridade, ou não, na votação, se vai atrasar ou não, mas uma questão de cunho eminentemente constitucional. O art. 59-A, caput, e seu parágrafo único atentam contra duas das principais características do voto: o voto sigiloso e o voto livre. (...)” 

O direito ao voto e ao respectivo sigilo impõe o direito à organização e aos procedimentos eleitorais que assegurem seu exercício (Recht auf Organisation und auf Verfahren). 

A liberdade do voto é fundamental para a sua autenticidade e eficácia.  

É a reação da Constituição-cidadã ao voto de cabresto.  

Esse voto de cabresto teve como símbolo o voto impresso, uma forma viabilizar o controle do chefe político sobre o seu eleitorado.  

Ali o senhorio não dava liberdade ao servo da gleba para votar, pois este teria que prestar contas.  

Este sistema sinistro para a democracia tem tristes episódios na República Velha, sob o liberal populismo, instalado na Constituição de 1946. Permaneceu a manutenção de lideranças, do velho coronelismo que se espraiou para outros tempos.  

A impressão do voto é prova do seu ato perante o seu chefe político.  

Disse bem a ministra Cármen Lúcia na Adin n.º 4.543, em abril de 2013, em histórico voto: 

“O voto é espaço de liberdade cidadã, que não pode ser tolhido pelo exigir do outro, não pode ser trocado pela necessidade do eleitor nem pode ser negociado pela vontade de quem quer que seja, pois viciado estaria, então, todo o sistema. Daí porque voto livre é voto secreto. E esse segredo não pode ficar à mercê de prestação de contas, de comprovação do ato a ser demonstrada a terceiro, sob as mais diferentes causas e as mais escusas justificativas, nunca democráticas. A urna é o espaço de liberdade mais seguro do cidadão. Nada lhe pode ser cobrado, dele não se pode exigir prova do que foi feito ou do que tenha deixado de fazer. A cabine é o espaço de garantia do cidadão da sua escolha livre e inquestionável por quem quer que seja.” 

O voto eletrônico é uma conquista do cidadão. Ele é a materialização da democracia pela liberdade do voto.  

Bem acentuou a liberdade de voto naquele julgamento a exposição do então procurador-geral da República:  

“A garantia da inviolabilidade do eleitor pressupõe a impossibilidade de existir, no exercício do voto, qualquer forma de identificação pessoal, a fim de que seja assegurada a liberdade de manifestação, evitando-se qualquer tipo de coação. ...Por outro lado, tem-se que o sigilo da votação também estará comprometido caso ocorra falha na impressão ou travamento do papel da urna eletrônica. Isso porque, sendo necessária a intervenção humana para solucionar o problema, os votos registrados até então ficarão expostos ao servidor responsável pela manutenção do equipamento. ...num eventual pedido de recontagem de votos, será novamente possível a identificação dos eleitores votantes.” 

Estaria vulnerado o direito constitucional subjetivo ao voto secreto, pois “a impressão do voto permitirá a identificação dos eleitores, por meio da associação de sua assinatura digital ao número único de identificação impresso pela urna eletrônica”. 

O voto eletrônico responde aos mandamentos pétreos exauridos no art. 14 da Constituição da República, e no inc. II do § 4º do seu art. 60, quando se tem em remate:  

Após a confirmação final do voto pelo eleitor, a urna eletrônica imprimirá um número único de identificação do voto associado à sua própria assinatura digital”, o que retira o segredo do voto, pois o número de identificação associado à assinatura digital pode favorecer até mesmo a coação de eleitores pela possibilidade que cria de vincular o voto a compromissos espúrios. Identifica-se o eleitor e não se pode dizer que tanto se dê por seu querer, mas porque pode se comprometer a comprovar a sua ação na cabine de votação. 

Aplica-se o princípio da proibição do retrocesso político. Assim é a lição de J.J.Gomes Canotilho(Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª. Ed., p. 326):  

“Esse princípio da proibição de retrocesso político há de ser aplicado tal como se dá quanto aos direitos sociais, vale dizer, nas palavras de Canotilho “uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. ...o princípio em análise limite a reversibilidade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana”.  

Ensinou a ministra Cármen Lúcia naquele voto histórico que a proibição de retrocesso político-constitucional impede que direitos conquistados, como o da democracia representativa exercida segundo modelo de votação que, comprovadamente, assegura o direito ao voto com garantia de segredo e invulnerabilidade da escolha retroceda para dar lugar a modelo superado exatamente pela vulnerabilidade em que põe o processo eleitoral. O princípio democrático (art.1º da Constituição brasileira) garante o voto sigiloso, que o aperfeiçoamento do sistema nacional adotado, sem as alterações do art. 5º da Lei n. 12.034/09, propicia. 

Em 2002, tornaram-se públicas as demoras nas filas das seções eleitorais, nas quais adotado o modelo, agora repetido no art. 5º da Lei n. 12.034/09, causaram transtornos ao eleitorado. À média registrada de um minuto e meio despendido ordinariamente para a votação eletrônica correspondeu média de dez minutos para a votação impressa. 

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A isso se somem as a possibilidade de fraudes, cópias e trocas de votos, decorrentes de votação impressa, aumenta, sendo mister ter urnas preparadas para a sua guarda, forma de transporte específico, garantia de sua integridade, tudo mais dificultado e sem garantia de eficiência do resultado incólume do sistema. 

A Secretaria de Tecnologia de Informação do Tribunal Superior Eleitoral ainda acrescentou em parecer para o TSE, que maior seria a vulnerabilidade do sistema, porque o voto impresso não pode atingir o objetivo ao qual se propõe, que é o de possibilitar a recontagem e auditoria.  

O custo ainda das eleições por voto eletrônico é bem menor do que com relação ao voto impresso.  

Quanto aos custos, a ministra Cármen Lúcia destacou que “cálculo aproximado e preliminar” indica que “o custo do voto aumentaria em mais de 140% e a Justiça Eleitoral precisaria de quase um bilhão de reais a mais para a realização das eleições”, mesmo desprezando “as despesas de manutenção preventiva e corretiva dos equipamentos”. 

Ainda acrescentou a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a impressão do voto pouco acrescenta em termos de segurança. Esse tema tem dois aspectos. Primeiro, a existência de mecanismos aptos a garantir a segurança da urna eletrônica. Segundo, a imprestabilidade da impressão do voto para servir como um controle adicional. 

Ademais o sistema do voto impresso ademais por não ter as vantagens do voto eletrônico não tem o sistema de segurança da urna eletrônica, que baseia-se em dois mecanismos de singular importância: a assinatura digital e o resumo digital. O primeiro mecanismo é uma técnica criptográfica que busca garantir que o programa de computador da urna não foi modificado de forma intencional ou não perdeu suas características originais por falha na gravação ou leitura. Ademais, com a assinatura digital se tem a garantia da autenticidade do programa gerado pelo Tribunal Superior Eleitoral. 

O sistema eletrônico de voto veio com a edição  da Lei n.º 10.740/03, que revogou a exigência do voto impresso e implantou o registro digital do voto, resguardado o anonimato do eleitor.  

Se isso não bastasse, a Lei nº 10.740/03 instituiu o Registro Digital de Voto (RDV), ao revogar os dispositivos da Lei nº 10.408/02, que determinavam a impressão do voto. A inovação permite que os votos sejam armazenados digitalmente, da forma como foram escolhidos pelo eleitor, resguardando o sigilo do voto. Com o Registro Digital de Voto (RDV) é possível recontar os votos, de forma automatizada sem comprometer ao segredo dos votos nem a credibilidade do processo eletrônico de votação. A comparação do Boletim de Urna (BU) com o RDV possibilita a auditoria. Nos termos da legislação eleitoral vigente, os interessados podem auditar o sistema eletrônico de votação, antes, durante e depois das eleições, como revelou a ministra Cármen Lúcia naquela apreciação aqui suscitada.  

Se, por um lado, as normas eleitorais podem ser modificadas pelas vias democráticas, por outro, o legislador não pode alterar procedimentos eleitorais, sem que existam meios para tanto. O comando normativo deve vir acompanhado de normas de organização e procedimento que permitam sua colocação em prática. No caso, o legislador impôs uma modificação substancial na votação – impressão do registro do voto –, a ser implementada de chofre, sem fornecer os meios – normas de organização e procedimento – para execução da medida, como disse o ministro Gilmar Mendes(Adin 5.889).  

Tudo isso é dito diante de proposta de Emenda à Constituição  (PEC) 135/19 exige a impressão de cédulas  em papel na votação e na apuração de eleições, plebiscitos e referendos no Brasil. Pelo texto, essas cédulas poderão ser conferidas pelo eleitor e deverão ser depositadas em urnas indevassáveis de forma automática e sem contato manual, para fins de auditoria, consoante a Agência Câmara de Notícias.   

A proposta, que tramita na Câmara dos Deputados, acrescenta a medida à Constituição. 

Diremos que tal proposta é inconstitucional.  

Dir-se-á que vem através de Emenda Constitucional. Trata-se de norma constitucional oriunda de um constituinte derivado que deve ser enquadrada nos limites de uma cláusula pétrea inserida na Constituição de 1988(artigo 60, § 4.º, II, da Constituição), que trata do sigilo do voto e se pronuncia dentro da proibição do atraso.  

O Supremo Tribunal Federal já entendeu ser a emenda constitucional norma de controle perante a Constituição, principalmente no que tange aos limites das cláusulas pétreas.  

No passado, tentou-se ressuscitar o voto impresso, por via da Lei n.º 12.034, mas o STF o entendeu inconstitucional.  

 Outra tentativa fracassada do voto impresso veio pela Lei n.º 13.165/2015, cuja eficácia foi cassada na Adin 5.889, por liminar de junho de 2018, quando se entendeu pela potencialidade de risco na identificação do eleitor.  

Disse o ministro Gilmar Mendes, naquele julgamento, que “o voto eletrônico faz parte da cultura eleitoral brasileira e permite ao cidadão registrar sua vontade de forma simples. Não é exagero dizer que, atualmente, mesmo as pessoas humildes têm mais facilidade de registrar seu voto em uma urna eletrônica do que no suporte anterior – cédula de papel.” 

Como se vê o Supremo Tribunal Federal, por pelo menos aquelas oportunidades, rechaçou de forma peremptória o retorno ao atraso, que é o voto impresso. 

 

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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