O último dia 29 foi marcado por protestos contra o atual governo em todo o país – cerca de 180 municípios e 24 estados, além do DF - onde os manifestantes clamavam por aceleração da vacina, retorno do auxílio emergencial e a favor do impeachment, mesmo dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 460 mil mortos, segundo dados do Portal G1 [1].
O jargão utilizado pelos manifestantes, estes imersos em uma crise tão grande que em dado momento me pareceu ter engolido a sanitária, dizia que
“quando um povo vai as ruas em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus”,
resultado do desespero de uma população que se vê longe de um governo preparado, eficiente e sério. A falta de políticas públicas eficazes e de um projeto sério e rápido de vacinação alinhados a onda de transmissão de Fake News envolvendo os imunizantes e o perigo da doença contribuem para que os números de óbitos e de casos confirmados aumentem ainda mais, afogando o país em um verdadeiro caos.
O Presidente da República Jair Bolsonaro se transformou em símbolo do negacionismo à ciência e em personificação da má gestão da pandemia ao constantemente flertar com Fake News acerca da vacina, ao declarar que o imunizante transformaria as pessoas em jacaré, ao fazer alusão a medicamentos sem eficácia comprovada, a exemplo da hidroxi-cloroquina, ao rechaçar o uso de máscaras de proteção, além de promover e induzir aglomerações em tempos de isolamento social em clara ameaça à saúde pública, o que culminou em sua reprovação crescente nos últimos meses, abertura da CPI da Covid e desencadeou nas manifestações realizadas no último sábado do mês de maio do corrente ano.
Os direitos do homem foram confirmados no século XVII, expandindo-se no século seguinte ao se tornar elemento básico da reformulação das instituições políticas, sendo atualmente denominados direitos humanos ou direitos fundamentais. O reconhecimento destes direitos básicos acaba por formar padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, observando as necessidades e responsabilidades dos seres humanos, estando vinculados ao bem comum.
Cada Estado tem seus direitos específicos, entretanto, os direitos fundamentais estão vinculados aos valores de liberdade e da dignidade humana, nos levando assim ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana, sendo considerados direitos inalienáveis do indivíduo e vinculado pela Constituição Federal como normas fundamentais, surgindo a necessidade da consolidação de obrigações erga omnes de proteção diante de uma concepção integral e abrangente dos direitos humanos que envolvam todos os seus direitos: civis, políticos, econômicos e culturais.
Buscando promover a tutela desses direitos, o Brasil tornou-se signatário de diversos tratados e convenções internacionais que versam sobre o tema, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tutelando não somente o direito à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana, como também o direito a liberdade de expressão e liberdade de manifestação, o que compreende a proteção ao exercício da democracia que pode ser materializado através de manifestações populares e reuniões pacíficas.
Não poderia ser diferente o entendimento do constituinte. O art. 5º da Constituição Federal arrola uma lista de direitos fundamentais inerentes a um Estado Democrático de Direito, estabelecendo que todos são livres para se expressar, se locomover e se reunir em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que sem armas, bem como não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso as autoridades competentes, primando pelo bem de todos sem qualquer distinção e afirmando a sua vocação genuinamente democrática.
Para além dos direitos individuais – estes ligados ao indivíduo, ao conceito da pessoa humana e sua personalidade – existem também outros direitos que são salvaguardados pela Constituição e elevados ao patamar de direito fundamental, aqueles que buscam melhorar as condições de uma coletividade, sendo o Estado o ente responsável por salvaguardar esse direito, trazido na Carta Magna em seu art. 6º, que são aqueles
“afirmados na Constituição como garantias dos indivíduos e da sociedade diante da força do Estado, seja por estabelecerem esferas de autonomia protegidas contra a ingerência do Estado, seja por definirem obrigações a serem satisfeitas pelo Estado em relação aos indivíduos, seja por assegurarem a participação dos cidadãos na condução da política”,
também chamados de direitos sociais. É a própria responsabilidade estatal [2].
O conceito de democracia deriva da ideia de que o povo exerce soberania e escolhe os seus representantes políticos, onde todo poder do Estado dele decorre. E, em razão da sua essência, o Estado Democrático de Direito abriu espaço para a participação política popular, culminando em diversas manifestações populares ao longo da história, direito garantido constitucionalmente como o direito de reunião, e de forma mais abrangente o direito a manifestação e ao protesto, aos que queiram exercê-lo, devendo o cidadão se atentar tão somente aos requisitos estabelecidos no inc. XVI do art. 5º da CF para fazer valer a sua garantia legal.
Nesse ínterim, a brilhante doutrinadora Maria Lidia Ramos esclarece como manifestação
“A liberdade de Manifestação consiste, pois, na possibilidade de os cidadãos se agruparem na via pública, para exprimirem uma mensagem, opinião pública, sentimento ou protesto através da sua presença e/ou da sua voz, abrangendo gestos, emblemas, insígnias, bandeiras, cantos, gritos, aclamações, entre outras formas, sem exclusão do silêncio” [3].
Inegável, portanto, que o direito a manifestação é incluído no rol dos direitos e garantias fundamentais, uma vez que cumpre a função de promover e garantir os bens jurídicos tutelados pela Lei Maior, assegurando a dignidade da pessoa humana, sendo dever do Estado impedir a violação dessas garantias e, mais do que isso, promover políticas públicas que visem a preservação dos mesmos.
Como comumente ocorre em democracias, o Brasil não foge a regra tendo sido palco para diversas manifestações populares ao longo da sua construção política. Nos últimos anos, o país se viu imerso nas manifestações de 2013 que ficou conhecida como Movimento do Passe Livre, onde uma série de protestos ocorreu em várias de cidades brasileiras reivindicando, principalmente, a redução das tarifas do transporte coletivo urbano.
Nos anos seguintes (2014 a 2016), o movimento Vem Pra Rua ganhou destaque nacional em razão do grande número de populares que foram as ruas se manifestar contra a, então presidente, Dilma Rousseff, e reivindicar medidas eficientes de combate à corrupção, além de protestaram também contra a utilização do dinheiro público para a construção de Estádios para a Copa do Mundo que seria sediada no Brasil.
Neste último protesto, o Fora Bolsonaro, cujos portais eletrônicos divulgaram em massa a ação dos manifestantes contra o presidente Jair Bolsonaro e cujas hastags #29M, #29MForaBolsonaro, #ImpeachmentDeBolsonaroUrgente, dentre outras, ocuparam por todo o fim de semana o topo dos assuntos mais comentados em diversas redes sociais.
E foi exatamente na manifestação ocorrida dia 29/05/2021, na cidade do Recife – PE, que o autônomo Daniel Campelo de 51 anos – que não estava participando do ato, mas havia passado pelo local para comprar material de trabalho - foi atingido por um projétil de bala de borracha durante ação da Polícia Militar do Estado contra os manifestantes do protesto, culminando em uma lesão ocular que o fez perder a visão do olho esquerdo, segundo dados do UOL que ouviu o médico oftalmologista que atendeu Daniel e segundo o profissional a lesão foi avaliada em amaurose unilateral, com risco de perda do olho [4].
Outro cidadão também foi atingido pela truculência policial no Recife. O jovem de 29 anos, Jonas Correia, foi atingido por bala de borracha disparada pelos policiais militares do estado que, assim como Daniel, não estava acompanhando as manifestações, mas passava ao local após retornar do trabalho em direção a sua casa. O diagnóstico de Jonas é, de acordo com a equipe médica que o atendeu na Fundação Altino Ventura – FAV, que foi observado um comprometimento importante da visão do rapaz que corre risco de ficar cego [5].
Os protestos na cidade do Recife foram marcados pela violência policial, bombas de gás lacrimogênio, tiros de balas de borracha, spray de pimenta e muita correria dos manifestantes na tentativa de se desvencilhar das ações da polícia e, também por isso, a foto de Daniel foi estampada em diversos veículos de comunicação como retrato da ação violenta da PM PE.
Após divulgação das imagens da polícia e, por óbvio, descontentamento e revolta popular, o Governador do Estado, Paulo Câmara, se manifestou se solidarizando com as vítimas, comunicando o afastamento dos comandantes da operação [6].
E, infelizmente, o caso de Daniel e Jonas não foram os primeiros e nem são situações isoladas nos protestos e manifestações populares no Brasil.
Nos protestos de 2013 outra história ganhou notoriedade da mídia quando a publicitária Renata Ataíde, a época com 26 anos, foi atingida no olho esquerdo por estilhaços de bala de borracha em decorrência de explosão de bombas de efeito moral deferidas pela Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Em ação de indenização contra o estado, a magistrada Alessandra Cristina Tufvesson, concedeu medida liminar determinando que o Estado do Rio de Janeiro custeasse todo o tratamento da publicitária argumentando que
“É certo que à teoria da responsabilidade objetiva do Estado também se aplica a regra de causalidade prevista no art. 403 do Código Civil, mas constato, em concreto, e em juízo de cognição sumária mesmo, a presença de elementos de prova que permitem afirmar a configuração desta causalidade direta.
(...)
Desta forma, havendo indícios mínimos da prova da causalidade necessária ao reconhecimento da responsabilidade atribuída ao réu (Estado do Rio), e farta prova do dano causado à autora, defiro a medida pretendida, para que não lhe advenham danos pelo tempo de duração do processo, considerando a lesão à sua saúde e a relevância deste bem jurídico tutelado” [7].
Assim, nos últimos anos e especialmente após o ocorrido com Daniel e Jonas, existe uma enorme discussão sobre a ação da Polícia Militar – que nos casos relatados atual como a instituição estatal e, portanto, tem o dever de agir para garantir o exercício da cidadania - nas manifestações, colocando em voga os métodos utilizados pelo Poder Público e se os mesmos estão de acordo com a norma jurídica.
A responsabilidade do Estado baseia-se no entendimento de que o agente administrativo, servidor público, atua como órgão da pessoa jurídica da qual é funcionário e, em razão disso, o Poder Público responderá por eventuais danos que seus prepostos causem a terceiros.
A ação policial ocorrida no último protesto foi, sem dúvida alguma, comandada por alguém que, em nome do Estado e, teoricamente, objetivando promover a segurança pública, determinou que os policiais contivessem a manifestação popular.
Ora, a segurança pública não pode servir como pano de fundo para que agentes estatais pratiquem excessos – esses comumente vistos nos inúmeros atos populares ao longo da história – que, em verdade, promovem a supressão dos direitos individuais e sociais sob o lastro da falsa ideia de contenção de tumultos e manifestações ilegais.
Claudio Mikio Suzuki e Vinicius Cottas Azevedo ensinam que
“O direito constitucional deve ser exercido de forma plena, sem excessos. A população merece ser ouvida, contudo, quem se aproveita desta situação deve ser punido conforme os mesmos ditames legais, tendo em vista a diferença entre a vontade e consciência de exercer um direito pátrio previsto na Constituição Federal e a vontade e consciência de cometer um ato ilícito, seja o ambiente, lugar e época que for.” [8]
O direito de protestar deve ser preservado contra a violência do Estado, mesmo porque, é dever do Poder Público prover os direitos e garantias constitucionais, devendo assegurar ao cidadão o seu livre exercício à participação em atos e manifestações. Contudo, o que temos assistido inertes em nossas casas é a reação cada vez mais violenta do Estado, fato que tem chamado atenção da Organização das Nações Unidas, o que levou o seu consultor, Felipe González, a esclarecer que
“embora os protestos tenham um papel fundamental nas sociedades latino-americanas, os governos seguem perseguindo-os como se fossem privilégios. Agentes do Estado, como juízes e policiais, não podem restringir arbitrariamente o direito de se manifestar pacificamente. Os limites para protestos devem respeitar a lei e os direitos fundamentais de qualquer pessoa humana e se dão em condições definidas e tipificadas em tratados, convenções, protocolos e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Essas normas têm força de lei”,
conforme dados extraídos do Portal Brasil de Fato [9].
Se diante desses movimentos o Poder Público não empregar todos os meios necessários para prevenir danos a bens e à integridade física dos cidadãos, garantindo a paz pública, sobretudo quando isso era possível (vide os protestos pacíficos), responderá pelos danos decorrentes da sua omissão, o mesmo ocorrendo quando o dano ocorrer das ações comissivas – fato que ocorreu com Daniel e Jonas nos últimos protestos.
Nos casos em que trago como exemplo, a atitude da Polícia Militar do Estado de Pernambuco excedeu o que poderia ser considerado como estrito cumprimento do dever legal que, ao agir de forma desmedida e com violência aos protestos pacíficos e a cidadãos que não apresentavam nenhum perigo aos demais ou risco a segurança pública, deixou de garantir a promoção do exercício da livre manifestação, a manutenção da ordem pública, a incolumidade física dos cidadãos e, consequentemente, mitigou os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, sendo responsável objetivamente pelo danos morais e materiais causados a Daniel Campelo e Jonas Correia, tal qual ocorreu com Renata Ataíde no ano de 2013.
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REFERÊNCIAS:
[1] Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/05/29/brasil-ultrapassa-a-marca-dos-460-mil-mortos-por-covid.ghtml. Acesso em: 31/05/2021.
[2] CANALLI, Rodrigo. Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade. STF Educa Introdução ao Direito Constitucional e ao Controle de Constitucionalidade - Turma 3. 2020.
[3] RAMOS, Maria Lidia apud ANDRADE NETO, Francisco Galdino de. Protestos no Brasil: Uma Abordagem Acerca dos Limites ao Exercício do Direito de Manifestação Estatuído na CF/88. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/protestos-no-brasil-uma-abordagem-acerca-dos-limites-ao-exercicio-do-direito-de-manifestacao-estatuido-na-cf-88.htm. Acesso em: 31/05/2021.
[4] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/29/recife-homem-fica-cego-de-olho-atingido-por-bala-de-borracha-da-pm-em-ato.htm. Acesso em: 31/05/2021.
[5] Disponível em: https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2021/05/31/jovem-baleado-pela-pm-em-protesto-no-recife-chora-ao-contar-que-ouviu-de-medico-que-perdeu-a-visao-210362. Acesso em: 31/05/2021.
[6] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/29/recife-homem-fica-cego-de-olho-atingido-por-bala-de-borracha-da-pm-em-ato.htm. Acesso em: 31/05/2021.
[7] TJ/RJ. Processo nº 0267917-93.2013.8.19.0001. 3ª Vara da Fazenda Pública. Juíza: Alessandra Cristina Tufvesson Peixoto. Data do julgamento: 06/08/2013.
[8] SUZUKI, Claudio Mikio e AZEVEDO, Vinicius Cottas apud ANDRADE NETO, Francisco Galdino de. Protestos no Brasil: Uma Abordagem Acerca dos Limites ao Exercício do Direito de Manifestação Estatuído na CF/88. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/protestos-no-brasil-uma-abordagem-acerca-dos-limites-ao-exercicio-do-direito-de-manifestacao-estatuido-na-cf-88.htm. Acesso em: 01/06/2021.
[9] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/05/10/direito-de-protestar-nao-pode-ser-restringido-aponta-consultor-da-onu. Acesso em: 01/06/2021.