Nossa lei penal, além de datada, confusa e ultrapassada, é uma "colcha de retalhos".
Precisamos de um novo código penal para ontem, mas não esse PLS do Sarney (PLS 236/2012), que visa, entre outros absurdos, legalizar a exploração da prostituição de meninas de doze anos de idade!
No início do ano passado, atuei em um caso em que um senhor (vamos chamá-lo de "João neste artigo, embora, obviamente, este não seja seu nome real) havia sido preso por vender CDs e DVDs ilegais (cópias piratas). Conforme a lei, houve crime (artigo 184, §2°, Código Penal).
Mas os tempos mudaram e a lei não acompanhou isso.
Quase todos os músicos, atualmente, disponibilizam gratuitamente suas obras, por meios diversos. O que lhes rende maior lucratividade são shows, não venda de discos.
É interessante, então, para boa parte (talvez a maioria) dos músicos que suas produções sejam ouvidas pelo público para que consigam maior público em suas apresentações.
Voltando ao caso, seu João possuía uma loja, numa região periférica bastante pobre, esquecida pela administração pública (não havia nem sequer asfalto).
A loja vendia itens diversos a preço único cada um deles: R$ 1,00.
A loja, além de ser a fonte de sustento de seu João, sua esposa e seus dois filhos, também possuía três empregados, devidamente registrados e que recebiam pontualmente seus salários e todos seus direitos trabalhistas.
Um dia, numa viagem à capital de SP, para comprar estoque para sua loja, seu João encontrou um local que vendia CDs e DVDs a um preço muito baixo.
Assim, comprou vários CDs de músicas e DVDs de jogos para PlayStation II, para vender em sua loja, pela primeira vez. Sabia que era errado, mas não imaginava que chegava a ser um crime.
Em uma ronda de rotina, policiais passaram em frente à loja do Sr. João. Constatando a venda de cópias ilegais de CDs e DVDs de músicas e jogos, o prenderam em flagrante.
Não fui contratado no caso no início. Creio que seu João nem sequer procurou advogado particular. Muito provavelmente não tinha condições para tal.
Mas, com a prisão em flagrante, convertida sem motivos em preventiva, a loja foi fechada.
Uma das funcionárias da loja é filha de um outro cliente meu, que integra uma organização criminosa.
Esse tipo de situação é, de certa forma, rotineira. Um pai de família, que empregava diversas pessoas, por ter vendido cópias ilegais de CDs e DVDs foi preso e - ilegalmente - mantido preso. Quem se preocupou em estender a mão a tal cidadão não foi o estado, não foi nenhuma ONG ou qualquer entidade. Foi um criminoso. Obviamente ele não estava pensando apenas no bem-estar do seu João. Mas, diferente do que muitos possam ter imaginado, não fazia por razões condenáveis.
Embora eu não tenha questionado, me disse que seu João era uma boa pessoa e que, vivendo naquela região, tinha muito receio do futuro de sua filha, caso a loja do seu João fosse fechada de maneira definitiva.
A moça trabalhava para seu João há vários anos e estava iniciando graduação em ensino superior. Estava traçando um futuro bom e o pai, ainda que criminoso, não queria ver a filha envolvida com criminalidade ou drogas.
Estava feliz que, diferente dele, a filha poderia ter um futuro promissor.
Não era apenas dinheiro para os custos da faculdade. Por óbvio o pai da moça poderia providenciar o custeio de tais despesas.
Era o trabalho honesto. Poder vencer de maneira lídima. Estar rodeada de pessoas trabalhadoras ao invés de criminosos.
Assim, o pai da funcionária do seu João custeou meus honorários, sem esperar nada em troca.
No mesmo dia fui ao CDP onde estava detido seu João que, de muitas maneiras, lembrava meu próprio pai.
Não só por ser negro, mas pela história de vida e por prezar pela família e pela honestidade acima de tudo.
Ainda assim, estava preso. Junto de assassinos, ladrões, traficantes, latrocidas e outros tipos de criminosos.
Apesar da situação, não passou por nenhum problema com outros detentos ou com os agentes prisionais.
Tragicômico pensar que um pai de família foi melhor recebido e mais respeitado por criminosos do que por qualquer autoridade envolvida com o caso.
Como de praxe, levei uma procuração já preenchida, para que seu João assinasse e eu pudesse atuar em sua defesa. Após escutar seu lado da história, pedi a um agente prisional que levasse o documento e uma caneta para que seu João o assinasse.
Ao receber o documento e com a caneta em mãos, seu João ficou sem jeito e visivelmente envergonhado.
Confesso, não entendi o motivo e não esperava a razão para tal comportamento. Não em 2020! Seu João era analfabeto. Não conseguia nem assinar o próprio nome.
Se considerarmos todos os pormenores, seu João era um empresário de sucesso. Não é qualquer um que consegue ter três funcionários e sustentar toda a família com uma loja situada naquele bairro pobre. Ainda mais não sabendo ler nem escrever.
Em 2020 vi uma realidade que, na minha ingenuidade, pensava estar perto de ser extinta. Ainda há muitos analfabetos no país.
Falei para ele que não tinha problema algum. Pedi ao agente uma almofada de carimbo, para que seu João pudesse marcar sua impressão digital ao invés da assinatura na procuração.
Quando o agente voltou com a almofada de carimbo, comecei a explicar ao seu João que aquele documento era uma procuração para que eu pudesse atuar na defesa dele. Mas fui interrompido por aquele homem que nem deveria estar naquele lugar:
- Não precisa explicar doutor, não tenho nenhum motivo para desconfiar do senhor.
Dito isso, seu João sujou o polegar direito na almofada de carimbo e pressionou contra o papel, na linha destinada à sua assinatura.
Dali, fui direto ao fórum, despachar com o juiz, tendo levado, junto com a procuração, um pedido fundamentado para que fosse concedida, ao seu João, liberdade provisória.
Como era de se esperar, o juiz pediu para ouvir o promotor antes de tomar uma decisão.
Assim, visando livrar logo seu João daquele cárcere ilegal, me dirigi à sede do Ministério Público e não encontrei o promotor responsável pelo caso, mas consegui seu número de telefone.
Liguei ao promotor, que me respondeu que naquele mesmo dia iria dar seu parecer quanto ao pedido de liberdade provisória.
É triste saber que são poucos colegas criminalistas que atuam da mesma forma que eu. Grande parte dos advogados (talvez a maioria) se limitaria a peticionar e aguardaria o moroso trâmite judicial, que poderia levar semanas.
Antes mesmo da resposta do ministério público, impetrei Habeas Corpus.
Se o promotor concordasse com a liberdade provisória e o juiz do caso a concedesse, o habeas corpus perderia seu objeto e seria extinto sem julgamento.
Se discordasse, já havia me antecipado e ganhado algum tempo.
No final da tarde, verifiquei o parecer que havia sido juntado pelo promotor e a decisão do juiz.
Outra vez, como estou farto em ver acontecer, o promotor se limitou a dizer que não concordava com a concessão da liberdade provisória, pois, os "motivos" que teriam justificado a conversão da prisão em flagrante em prisão provisória ainda existiriam.
O juiz negou o pedido de liberdade, com o mesmo "fundamento".
Como disse acima, não havia NENHUM fundamento para o flagrante ter sido convertido em prisão preventiva.
Juntei os documentos ao habeas corpus e, reforcei o pedido, dizendo que o juiz estaria cometendo crime de abuso de autoridade e que poderia responder criminalmente por não ter concedido a liberdade provisória.
Não fiz a denúncia contra o juiz naquele momento (era ele quem ainda julgaria o caso e criar uma indisposição com ele poderia prejudicar seu João), mas lhe informei, por petição, que havia impetrado habeas corpus, destacando a tipificação da prática de crime de abuso de autoridade.
Tenho a mania de falar diretamente com "quem manda". Eu não podendo ir, no mesmo dia, despachar com o desembargador relator, usei algumas das minhas habilidades de detetive particular para descobrir o número do celular pessoal do desembargador.
Então, telefonei ao desembargador de maneira educada, me apresentei, pedi desculpas pelo incômodo, mas justifiquei que se tratava de um pai de família e empregador e, caso sua prisão ilegal se prolongasse, não apenas ele seria prejudicado, como sua família e as famílias de todos seus funcionários.
O habeas corpus foi concedido na manhã do dia seguinte. A tarde seu João fora solto.
Ficou extremamente feliz, embora ainda receoso de poder vir a ser condenado.
Lhe expliquei que, ainda que fosse condenado (o que eu duvidava, mas não posso garantir o resultado) não cumpriria nem um dia sequer da condenação preso.
Esse é outro problema do nosso sistema penal: mesmo quando a pessoa responde por um crime cuja pena é pequena e, se condenado, não cumprirá pena restritiva de liberdade, muitos juízes insistem, mesmo nesses casos, a manter a prisão preventiva.
Em outras palavras, mesmo se seu João viesse a ser condenado, ele não seria preso. Qual o sentido então dele ser mantido preso antes da condenação? Por óbvio, foi uma das fundamentações do habeas corpus.
Após isso, fui estudar todo o processo e, verificando não ter nenhuma prova ser a produzida além da oitiva das testemunhas, fui ao cartório da vara em que tramitava o processo do seu João e pedi que a audiência de instrução e julgamento fosse agendada para uma data próxima, conseguindo encaixar para dali duas semanas, na data e horário de uma audiência de outro processo que havia sido retirada de pauta por não terem conseguido contato com uma testemunha.
Meu grande amigo e colega, Dr. Paulo Antônio Papini, define advogados que, como eu e ele, vão pessoalmente ao fórum tentar resolver questões de processos, diferente de outros colegas que optam por atuar de maneira menos incisiva, de "barriga de balcão".
Na audiência foram ouvidos, como testemunhas, os empregados de seu João e os policiais que efetuaram a prisão. Os policiais afirmaram que a prisão se deu sem nenhuma resistência, que seu João, apesar de saber que não era correto vender CDs e DVDs pirateados, não sabia que era um crime.
Os empregados do seu João, além de confirmarem a boa pessoa e bom patrão que ele era, confirmaram que nunca haviam vendidos CDs e DVDs antes.
Seu João, visivelmente arrependido, havendo confessado em sede policial que sabia que era incorreto a venda de CDs e DVDs, reafirmou não saber, naquele momento, que chegava a ser um crime e prometeu que nunca mais voltaria a cometer tal ato.
Um dos argumentos da defesa prévia era, justamente, a confissão do seu João. A confissão pode atenuar a pena, em uma eventual condenação. Embora eu duvidava que houvesse a condenação, sempre é bom o advogado destacar tudo que for favorável a seu cliente.
Tendo ele confessado em sede policial e sendo isso benéfico em caso de condenação (lembrando que eu apenas passei a atuar na defesa do seu João bem após sua prisão em flagrante), mantive esse ponto na defesa.
Alguns podem dizer que seu João não poderia afirmar que desconhecia a lei, já que se presume que todos conhecem todas as leis que lhes são aplicáveis (leis federais, estaduais, municipais, portarias, decretos, regramentos diversos, entre outros diversos dispositivos normativos).
Não é errado pensar de tal forma, mas, além de tal presunção não ser absoluta (pode ser afastada a depender do caso), a lei penal também atenua a pena se a pessoa desconhece que o ato que praticou era crime (como ocorreu com seu João e, claro, como também fundamentei em defesa).
Podem também falar que as provas em sede policial devem ser repetidas durante o processo.
Entretanto, para o bem e para o mal, os juízes não são robôs que aplicam a lei de maneira rigorosa. Também há o "livre convencimento" do juiz. Seria inútil, talvez prejudicial, eu tentar sustentar minha defesa negando o que meu cliente havia feito e confessado.
Prefiro usar o livre convencimento do juiz para o bem do cliente, sempre que possível.
Além das duas atenuantes que citei (confissão espontânea e desconhecimento da lei), pontuei na defesa que havia ainda o "relevante valor social" e havia ainda a "circunstância relevante" do avanço da tecnologia e da nova realidade do mercado.
É essencial que o advogado coloque tudo que seja benéfico ao cliente no processo, até para fundamentar eventual recurso.
Mas, sejamos sinceros, grande parte dos juízes e promotores não leem os processos na íntegra. Por isso considero de extrema importância as razões finais orais ou, em recurso, a sustentação oral. Isso força os juízes e desembargadores a, no mínimo, saberem o que estão julgando e os pontos mais relevantes, mesmo quando não tenham lido o processo.
Assim, após as oitivas, foi dada palavra ao promotor, que narrou suas razões finais.
Em resumo e, até de maneira contraditória, o promotor afirmou que houve crime e que houve a confissão desse crime, mas afirmou não serem cabíveis nenhuma das atenuantes. Disse que, embora seu João houvesse confessado, ele não sabia que era crime, de modo que tal confissão não serviria como causa atenuante da pena.
Não faz nenhum sentido tal alegação do promotor.
Eu não entendo essa postura adotada por muitos promotores, que parecem se esquecer que sua função é garantir a aplicação da lei e atuar em defesa da sociedade e agem como se sua função fosse condenar, a qualquer custo, qualquer um que responda a um processo criminal.
Quando me foi dada a palavra, destaquei diversos pontos e, até mesmo, apelei para o emocional (o que é bastante útil para processos do juri, mas também é útil em alguns casos julgados por juiz singular. Embora possa não parecer, juízes também têm coração).
Lembrei que o réu era um pai de família e empregador.
Disse que sua condenação faria mais mal do que bem à sociedade (se é que faria algum bem).
Afirmei que o sistema de som de carros novos de hoje em dia nem mesmo costumam vir com leitor de CDs, mas com tecnologia bluetooth e entrada para pen drives.
Perguntei, de maneira retórica, se o juiz ou o promotor conheciam alguma loja de CDs em toda a cidade de Campinas. Elas não mais existiam.
Destaquei que a Sony, empresa responsável pelo PlayStation II, parou de produzir jogos para a plataforma em 2013 e que, assim, ao vender jogos pirateados, seu João não estava prejudicando a empresa de nenhuma forma.
Disse ainda que duvidava muito que algum artista, detentor dos direitos de quaisquer das músicas de quaisquer dos CDs piratas vendidos por seu João, ficaria feliz com a condenação daquele homem, caso o conhecessem.
Lembrei ainda que os valores referentes aos direitos autorais atingidos pelos atos de seu João eram irrisórios (tais valores, considerando TODOS os CDs e DVDs que haviam sido vendidos pelo seu João ou que foram apreendidos em sua loja, não seriam suficientes nem para custear metade do valor do ingresso de um show de um dos artistas), fundamentando um dos pontos da minha defesa, que era a aplicação do Princípio da Insignificância.
Mas disse mais.
Lembrei ao juiz que o acesso à cultura é um direito constitucional, mas, quem estava levando tal direito aos moradores daquele bairro pobre, era seu João.
Disse ainda que eram pessoas como seu João que, ainda que de maneira ilegal, dava a oportunidade de que crianças pobres pudessem jogar videogames já que, os valores para comprar consoles atuais e jogos originais são proibitivos para qualquer jovem de família pobre, agravando ainda mais o abismo entre as classes sociais.
Falei ainda que se um único cliente de seu João, que tenha comprado um CD de música, gostando do conteúdo e, consequentemente, pagando para ver um show ao vivo daquele artista, até mesmo a indústria musical teria ganho muito mais com o ato ilegal do seu João do que com sua condenação.
Disse que seu João deveria ser um exemplo a ser seguido.
Mesmo analfabeto, abriu uma loja que vendia diversos itens a preços módicos que, além de ser de importância para as pessoas daquele bairro, era essencial para a vida de seu João, sua família e de seus funcionários.
Afirmei, de maneira contundente, que seu João merecia ser tratado como herói, sendo algo totalmente injusto sua prisão e, mais ainda, uma eventual condenação.
Bradei que seu João estava mais que certo, a lei estava ultrapassada e os parlamentares federais errados em não atualizar a lei aos novos tempos!
Finalizei dizendo que uma injustiça social já havia sido feita com a prisão do seu João, já que, por tudo que estava passando, por certo nunca mais voltaria a vender CDs e DVDs piratas, o que dificultaria o acesso das pessoas daquele bairro pobre à cultura e, uma condenação naquele caso, poderia implicar ainda no fechamento da loja e traria dificuldades financeiras a quatro famílias.
Terminado meu discurso, quase pude ver lágrimas nos olhos daquele juiz.
A sentença já estava escrita.
Creio que muitos colegas criminalistas já passaram pela situação de um juiz apresentar uma longa sentença condenatória em audiência, logo após encerrar a instrução.
Não é possível um juiz escrever uma sentença em um par de minutos, mas, "estranhamente", muitas sentenças condenatórias, compostas por várias páginas, são prolatadas tão logo é encerrada a instrução processual.
Sejamos sinceros, prejulgamento existe a rodo em nosso sistema judicial. Algumas sentenças nem mesmo constam os nomes das testemunhas. Como pode um juiz julgar um caso antes de ter ouvido as testemunhas?
Por isso ressalto a importância das razões finais orais.
O juiz comentou algo com o escrivão, visivelmente descartando a sentença que já estava escrita, e por longos minutos, passou a escrever uma sentença do zero, absolvendo seu João.
O promotor declarou que não iria recorrer. Assim, pude dizer ao seu João, logo sairmos da audiência, que ele não devia nada à justiça.
Bastante emocionado e contente, me convidou para almoçar em sua casa. Gentilmente recusei o pedido, dizendo que eu ainda tinha um longo período de trabalho pela frente.
Esse caso me fez refletir muito.
Quanto, de fato, nossos políticos estão preocupados em atuar na defesa dos interesses do povo?
Não sei ainda definir o que é justiça, mas posso afirmar que a justiça não está em nossas leis nem na atuação dos nossos congressistas.
Talvez o Dr. Alessandro Loiola, médico e escritor, tenha razão.
O estamento político visa, tão-somente, defender os interesses das grandes forças produtivas. Todo o resto, como dito pelo Dr. Loiola, "é perfumaria".