O presente ensaio pretende analisar o ativismo judicial a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 que entendeu pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.
A regra básica constitucional para a edição de lei penal está inscrita no art. 5º, inciso XXXIX, quando assim expressa: “não há crime sem anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
A Constituição também em seu art. 5º, inciso XLI, diz: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.”
Vejamos também o art. 1º, inciso III, da CF, que um dos fundamentos do Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana, e o art. 3º, IV, define como objetivo do Estado “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dicriminação.”
Entender as motivações e os fundamentos da decisão plenária da Suprema Corte brasileira por meio da ADO nº 26, é um dos objetivos. Um outro objetivo, não menos importante, é saber se a decisão justifica a crítica de que existe um ativismo judicial que extrapolaria das funções do poder judiciário.
O que levou o Partido Popular Socialista -PPS a propor a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão foi a urgência de se coibir a discriminação praticada contra a comunidade LGBTI+, ainda que a Constituição Federal de 1988 garanta a todos a igualdade e a proteção da sua dignidade e contra qualquer tipo de discriminação, a exemplo, da opção sexual, diante da flagrante omissão do Congresso Nacional em dar efetividade às normas constitucionais no tocante a proteção desse grupo vulnerável.
Desde 2004 tramita no Congresso Nacional vários projetos de lei com essa finalidade, alguns aprovados na Câmara dos Deputados e empacados no Senado Federal. A desculpa sempre foi a necessidade de consulta à sociedade e o debate público, em nenhum momento se preocupou o Senado, em especial, de verificar que a exigência de dar efetividade à norma fundamental constitucional não pode ser esquecida.
Sabe-se que na sociedade persiste no grupo dominante um discurso de ódio contra as questões de fundo da discriminação, como o racismo e outras formas de discriminação, entre elas a homofobia e a transfobia que registra além da discriminação, crimes contra a vida dessas pessoas em razão de suas opções.
O fundamento para que o STF decidisse pelo enquadramento da discriminação da homofobia e da transfobia foi, em primeiro lugar, a demora do poder legislativo em dar efetividade ao comando constitucional e a provocação por meio da ADO a exigir uma decisão judicial.
O STF tem por competência expressa na própria Constituição em seu art. 102, inciso I, letra “q”, processar e julgar “o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal.” A Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão tem a mesma função do Mandado de Injunção que é garantir que a norma constitucional não se torne letra morta por falta de norma regulamentadora por omissão de quem deveria promover a sua elaboração.
Uma crítica corrente é a de que no Brasil são muitas as omissões, especialmente do poder legislativo, no tocante a dar efetividade aos comandos constitucionais. Uma verdadeira inversão de valores, pois hierarquicamente as normas constitucionais estão no topo da pirâmide legislativa, sendo mesmo uma insubordinação do legislador ordinário quando ele não cumpre o seu dever de regulamentar os direitos já previstos na ordem constitucional.
Um exemplo clássico, é o direito à greve dos trabalhadores do setor público, que 33 anos depois da Constituição ainda não foi regulado, se aplicando a Lei de Greve do setor privado por decisão do STF diante da omissão do legislativo federal.
A ausência de normas regulamentadoras pelo legislativo federal ou pelo executivo tem causado uma espécie de negação ao conteúdo programático da Constituição de 1988. Em outras palavras, é como se os titulares do executivo e do legislativo, por discordarem ideologicamente, simplesmente se omitem, ainda que existam iniciativas de leis de grupos políticos minoritários.
A questão é que não se trata de opções político-partidárias, mas de opções do constituinte originário, em última análise da sociedade brasileira. A omissão constitui uma negação à ordem constitucional. Por essa razão, o que se poderia achar que seja um ativismo do judiciário, é muito mais uma resposta devidamente provocada que o poder judiciário não pode negar a decidir por força da própria Constituição.
A decisão na ADO nº 26, a princípio, pode parecer uma ofensa ao princípio da reserva legal da lei penal. No entanto, numa ponderação de princípios, a dignidade da pessoa humana, o direito a não ser discriminado e o combate a qualquer tipo de discriminação, são detentores de uma dignidade constitucional no mesmo nível da reserva legal. Nesse sentido, penso que agiu bem o STF ao suprir a omissão do legislativo brasileiro e enquadrar o crime discriminatório em face da homofobia e da transfobia como crime de racismo, porque em ambos os casos, o que se avista é entre outras coisas o poder de um grupo dominante reduzindo a dignidade de grupos minoritários e vulneráveis, o que acontece com os grupos raciais.
Os fatos que estampam os jornais de todos os dias mostram como é grave e necessária a proteção do estado para com essa comunidade, por vezes, já discriminada em sua família, e destratada por uma maioria de pessoas que não admite as diferenças, muitas vezes de forma violenta, ou de forma a não garantir o mínimo de dignidade humana.
O tratamento isonômico aqui se faz necessário para se dar concretude a Constituição Federal.
Críticas existem ao ativismo judicial, especialmente por aqueles que veem nas decisões judiciais assim nominadas a causa de insegurança jurídica, pois acreditam que essas decisões são tomadas usando fundamentos políticos.
Uma outra crítica é que ao se colocar como legislador, no caso da omissão legislativa, não teriam os juízes a legitimidade democrática, por não serem eleitos.
Apesar do debate, é preciso entender que o judiciário, especialmente o STF, ao tomar decisões que regulamentam políticas públicas por omissão do legislativo está dentro do espírito da Constituição e da última palavra que cabe a Suprema Corte.
O ativismo é analisado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, quando em palestra na XXII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, em 27 de novembro de 2017, disse:
“O ativismo judicial é utilizado com bastante moderação em países do sistema jurídico da common law - como os Estados Unidos e a Inglaterra -, porquanto regidos por forte vinculação a precedentes que norteiam as decisões judiciais, mitigando a possível insegurança jurídica.
Entretanto, nos países de legalidade estrita, do sistema civil law - como se sabe, o Brasil -, os juízes interpretam a mesma lei de forma diferente (ainda incipiente entre nós o denominado direito dos precedentes, trazido com o novo CPC).”
Assim, concluo que apesar das críticas que o STF sofreu por conta dessa decisão histórica, o que se percebe é que prevaleceu a garantia de que a ordem constitucional não pode ser vilipendiada, e se isso for ativismo judicial, que seja.
Bibliografia Consultada
BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. Saraiva, 1989.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2001
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 14. ed. Saraiva, 2009.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. Malheiros, São Paulo: Malheiros, 2011.
https://www.migalhas.com.br/depeso/289426/ativismo-judicial--para-quem-e-por-que, visitado em 30 de maio de 2021.