É compatível com o ordenamento jurídico pátrio uma indenização, em sede de responsabilidade civil, que ultrapasse o valor do dano para punir o ofensor e, assim, dissuadí-lo da prática de atos lesivos?
O civilista, apegado à tradição reparatória do Direito Privado, expresso na máxima francesa do “tout le dommage, mais rien que le dommage”, continua reticente à essa incorporação da antecipação de eventos lesivos como objetivo da jurisdição civil. Segue, em boa medida, enxergando os frequentes perigos à vida, aos direitos da personalidade, à saúde pública e ao meio-ambiente, “sob a mesma lupa que enxerga o defeito em uma peça de máquina”[1], como se fosse possível entregar o melhor à coletividade agindo apenas após a consumação dos danos. Assim, e diante da inefetividade da técnica penal para a retirada do lucro ilícito do ofensor, ao fim e ao cabo continua-se a confiar a tutela destas posições jusfundamentais ao mercado, “a elas frequentemente indiferente”, como anota Rosenvald. O ordenamento jurídico se vê, dessa forma, relegado a um papel secundário, passivo face às regras ditadas pelos atores econômicos, em descompasso com a própria definição de “Estado Social de Direito”.
Os agentes de mercado, percebendo que sua conduta não é censurada pelo Direito Civil, deixam, sem pudor, que danos graves e irreversíveis relacionados a sua atividade sejam produzidos quando calculam que adotar as medidas de cuidado para evitá-los sairia mais caro que arcar com as indenizações puramente reparatórias. Isso quando não arquitetam uma conduta comissiva, danosa a interesses sensíveis, com vistas a obter lucro por meio dela mesmo após as condenações judiciais.
Diante desse contexto, o desafio aceito por este trabalho é o de demonstrar que além de necessário que a responsabilidade civil volte a lançar um olhar sobre a conduta do ofensor – como o fazia em suas raízes –, isso não viola a Constituição, ou seja, demonstrar a adequação de uma responsabilidade civil preventiva ao ordenamento jurídico brasileiro. Isto deve ser feito através do enfrentamento das críticas normalmente dirigidas a esse intento.
São três as principais objeções que se dirigem a esse intento, podendo ser assim resumidas: a) assumir o controle de comportamentos como papel do Direito Civil seria invadir a seara penal, contaminando o Direito Privado com o instrumental punitivo, na contramão de uma longa evolução histórica que separou as duas esferas e culminou na máxima de que ao Direito Penal cumpre prevenir e ao Direito Civil cabe reparar; b) somente seria possível arbitrar a indenização em questão por meio de expressa e anterior previsão legal, já que se trata de uma pena; c) punir no direito civil e no direito criminal seria consagrar o bis in idem.
No seu enfrentamento, são várias as conclusões alcançadas.
Primeiro, a de que o recurso à sanção punitiva civil – ultrapassar o valor do prejuízo com vistas a dissuadir o ofensor – faz-se, hoje, indispensável para propiciar uma efetiva prevenção de danos a interesses sensíveis, exigência de uma sociedade que não mais valora a liberdade econômica como único nem protagonista anseio social.
A análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mostra que não se trata, outrossim, de teoria elaborada na academia, mas de um fenômeno já em voga. A Corte Superior – e bem assim a de vários países de matriz romano-germânica – há muito aplica uma pena no interno do dano moral, servindo-se da subjetividade na valoração da indenização para aumentá-la na proporção da reprovabilidade da conduta do ofensor. Todavia, tais tribunais não expressam o caráter punitivo da operação, o que dificulta a análise crítica dos julgados sob essa perspectiva.
Dessa forma, o apego à recente tradição histórica de separação entre pena e reparação – isoladas nos Códigos Penal e Civil, respectivamente –, não é argumento, por si só, apto a reprovar a assimilação formal da prevenção de danos pela responsabilidade civil. Acatar essa crítica seria fechar os olhos para uma realidade sedimentada em nossos tribunais e que precisa ser racionalizada e clarificada. Seria, outrossim, primar pela forma em detrimento da efetividade.
Antes de ser instrumento incivilizado de usurpação das liberdades pessoais, a sanção punitiva civil é apta a prevenir de forma mais eficiente e com menos efeitos deletérios as ameaças a interesses sensíveis, se comparada à sanção criminal. Mais eficiente porque a pena civil, demandada através da iniciativa de qualquer cidadão, é dotada de uma capilaridade capaz de abarcar a multiplicidade das relações de mercado hoje existentes, sendo, ainda, munida de uma ampla possibilidade de graduação do quantum punitivo, tornando-a apta a responder às ofensas no plano da lógica econômica, o que o Direito Penal não é capaz de fazer. Menos deletéria porque a sanção punitiva criminal atinge, sempre, a dignidade do réu – seja porque restringe sua liberdade pessoal, seja porque o estigma da condenação o acompanha com a pena inscrita na ficha policial –, o que não se passa com a punição civil, que se restringe a atacar o patrimônio e a liberdade para comerciar do agente econômico ofensor. Enfatiza-se que é justo por isso que os próprios penalistas têm conclamado o avanço punitivo da responsabilidade civil em detrimento da sanção punitiva criminal na tutela de interesses sensíveis. A operação permitiria não apenas uma mais efetiva concretização do direito à prevenção de danos, mas também a viabilização do desígnio constitucional de um Direito Penal mínimo. Conclui-se, assim, que a solução punitiva no âmbito do direito civil poderia ser também uma boa fuga ao dilema da sociedade pós-moderna de ou bem restar à mercê dos agentes de mercado, ou bem recorrer indistintamente a esteios autoritários como o Direito Penal, transformando o “Estado de Direito” em “Estado de Exceção”.
Também essa abissal diferença na gravidade das respostas da sanção punitiva civil e da sanção punitiva criminal que leva este artigo a aderir ao entendimento dos que sustentam que o princípio da legalidade incide às penas civis na sua forma mitigada. Isto é, não exige a rígida tipificação dos ilícitos, mas apenas a previsão de seu objetivo, dos pressupostos que a acionam, bem como dos critérios de quantificação que devem nortear seu arbitramento. Destaca-se que garantir essa maleabilidade à sanção punitiva civil também é crucial para sua efetividade, permitindo-lhe agir de forma dinâmica, respondendo aos ilícitos que hoje se diversificam com incrível rapidez. Frisa-se, no entanto, que apesar de formular menor exigência diante da pena civil, a legalidade não escapa de sobre ela incidir, pois se trata de garantia material contra qualquer sanção que tenha a prevenção como sua finalidade, de sorte que a solução preconizada neste trabalho não fugirá à necessidade de prévia consagração legal, sendo pertinente a crítica sumarizada acima na alínea “b”.
Por fim, a vedação constitucional do bis in idem, se corretamente assimilada, corolária que é do princípio da proporcionalidade, não veda a aplicação de duas punições diante do mesmo ato ilícito. Mas, quando for o caso, prescreve que a punição anteriormente fixada em outro setor do direito seja observada, criando ao julgador um ônus argumentativo de justificar a necessidade de uma reação adicional do ordenamento, bem como acarretando, for a hipótese, a redução do quantum punitivo a ser fixado. Blinda-se, assim, o ofensor contra um possível excesso punitivo. De outro lado, permite-se cumular uma pena civil nas hipóteses em que a criminal não se mostrar suficiente à tutela do interesse em questão.
Em suma, a solução de adicionar à responsabilidade civil a capacidade de reagir a condutas desidiosas a interesses sensíveis, que deve passar pela prévia aprovação legislativa, viabiliza a tutela efetiva do valor maior de nossa Constituição, a dignidade humana – seja porque o protege com mais eficiência (tutelando melhor o direito à vida, à personalidade, à saúde pública, ao meio-ambiente, etc), seja porque implica em menor ofensa à própria dignidade do ofensor.
[1] LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um Direito dos Danos a um Direito das Condutas Lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 19.