À guisa de introdução, é de bom alvitre não olvidar os traços distintivos entre o Common Law e o Civil Law. Em razão disso, exsurge a necessidade de gizar trazer a lume brevíssimas considerações acerca de suas características.
Pois bem, o Civil Law, de tradição romano-germânica, assenta suas bases no aspecto de que a lei se consubstancia enquanto fonte primária do ordenamento jurídico (TARTUCE, 2019, p. 2). Não é descabido considerar que “lei”, aqui, é um termo compreendido como uma regra ou como um conjunto de regras. Em outras palavras, sob uma acepção mais técnica, uma lei somente existe “quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas” (REALE, 1998, p. 163).
De outro giro, o Common Law, que encontra suas raízes na Inglaterra, é pautado na tradição dos precedentes. Com esteio nas preleções de Álvaro Núñez Vaquero (2018, p. 41), os precedentes são passíveis de serem entendidos como “aquellas decisiones jurisdiccionales que resuelven algún caso genérico o individual, y a las que se reconoce algún grado de vinculatoriedad”. Ora, em sendo uma decisão de natureza jurisdicional[1] que resolve uma lide, sendo-lhes atribuída algum grau de vinculatividade, poder-se-ia chamar-lhe de precedente. Há de se observar, entrementes, que, em seus primórdios, os precedentes judiciais ingleses apenas gozavam de eficácia persuasiva, é dizer, eram apenas culturalmente vinculantes (MARANHÃO, 2018, p. 114).
Ante o exposto, deflui-se que a diferença entre ambos os sistemas reside na importância assumida pelas diferentes fontes do Direito.
Velejando por esta singra, fazendo um lesto escorço histórico, resta nítido que o Brasil optou pelo Civil Law, elegendo a norma legal como parâmetro para estipulação do certo e do errado, do proibido e do permitido, enfim. Destarte, mesmo em face de lacunas do ordenamento, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 4°, preconiza sua colmatação mediante emprego da analogia, dos costumes ou dos princípios gerais de Direito, deixando transparecer sua resistência quanto à jurisprudência (MANCUSO, 2019, p. 19).
Desta forma, por muito tempo, sob a égide do estado de Legalidade, o juiz era considerado um mero servidor passivo do Legislativo, não podendo trespassar as balizas estabelecidas pelos textos legais (hermeneuticamente falando, perquiria-se sempre a intenção do legislador[2], de tal sorte que vigorava a máxima “in claris cessat interpretatio”). Desta feita, o produto da atividade judicial, v.g., as súmulas, possuíam natureza meramente persuasiva (MARANHÃO, 2018, p. 119).
Com a promulgação da Constituição da República de 1988, a relevância jurisprudencial coligiu alguma força (não tanta como nos dias atuais, haja vista que ainda se fazia distinção entre os graus fraco, médio e forte de vinculatividade), notadamente com a atribuição de efeito vinculante às decisões do Supremo Tribunal em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Demais, com o advento da Emenda Constitucional 45, de 2004 (que instituiu a nominada reforma do Judiciário), foi introduzido o artigo 103-A na Carta Magna. Peço vênia para colacioná-lo:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
De toda maneira, o Código de Processo Civil de 2015 possui o condão de engendrar um microssistema processual de precedentes fortes de vinculatividade (MARANHÃO, 2018, p. 125). Para evidenciar isto, o artigo 926 estatui que os tribunais devem (a doutrina é tranquila em entender este “devem” enquanto manifestação de uma obrigação) uniformizar sua jurisprudência, a fim de mantê-la íntegra, coerente e estável (como corolário, nota-se que a segurança jurídica foi alçada a um patamar mais elevado). De seu turno, o artigo seguinte elenca os pronunciamentos judiciais aos quais juízes e tribunais devem observância, dentre os quais pode-se citar, a título de exemplo, os enunciados das súmulas do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e os acórdãos em incidente de assunção de competência.
Neste diapasão, arvora-se o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que, nos dizeres de Rodolfo de Camargo Mancuso, presta-se a combater a dispersão jurisprudencial excessiva. Afigura-se salutar, pois, esclarecer a sua possibilidade quando da presença conjuntiva de dois requisitos, a saber, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia acerca de determinada questão de direito (faz-se necessário haver repetição de processos com vistas a distingui-lo do incidente de assunção de competência) e, também, risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Neste passo, calha asseverar o artigo 985, de compasso com o qual, ao se julgar o incidente, a tese jurídica deve ser aplicada à totalidade dos processos individuais ou coletivos que tratem de idêntica questão de direito, inclusive aos juizados especiais (desde que tramitem na área de jurisdição do tribunal respectivo), e, de mais a mais, aos casos vindouros que versem sobre idêntica questão de direito. Além disso, o parágrafo segundo anota que “se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeito a regulação, da tese adotada”.
No escólio de Rodolfo de Camargo Mancuso (2019, p. 25-26), o IRDR, possui uma eficácia quádrupla: uma em dimensão vertical (aplicável às outras instâncias), uma horizontal (incidindo sobre os órgãos fracionários do tribunal), uma panprocessual (por atingir juízes e tribunais) e eventualmente uma extraprocessual (no caso do supramencionado parágrafo 2° do artigo 985).
Desta feita, o artigo 927 traz à lona o caráter vinculante da tese firmada em IRDR, revestindo-se, como consectário, de atributos similares aos da lei, a saber, generalidade, impessoalidade, abstração e obrigatoriedade. É em face disso que Mancuso argumenta que o modelo jurídico-político é misto, mormente a partir do CPC de 2015, quando se promove, de modo mais hialino, diálogos entre ambos. Em seus dizeres, “no tocante à dicotomia civil law/common law, a doutrina é, hoje, consonante em reduzir tal divisão a uma perspectiva histórica, dada a crescente e notória aproximação e até assimilação entre ambas as famílias”.
[1] O doutrinador resvala pela senda da dualidade jurisdicional, haja vista que se manifesta pela possibilidade de que as decisões de órgãos diversos dos judiciais, a exemplo de árbitros ou dos que compõem o contencioso administrativo, se revistam de natureza vinculante. Inobstante, no Brasil, a jurisdição é una (em que pese entendimento no sentido de que a arbitragem corresponde a uma jurisdição privada, a doutrina majoritária assevera tratar-se de um equivalente jurisdicional).
[2] Nesse sentido, rememore-se o refere législatif, trazido à baila por meio do Decreto de 1790, sob as emoções da Revolução Francesa: em havendo dúvida a respeito da interpretação da lei, o magistrado deveria, forçosamente, recorrer ao legislador (ESPINDOLA, 2019, p. 22). Perelman (1996, p. 520, apud ESPINDOLA, 2019, p. 22, 23) aduz que o escopo consistia em “impedir que o juiz interviesse como legislador; mesmo para melhorar o direito, o juiz não deve completar a lei nem interpretá-la [sic]”.